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junho 1, 2010
Premiado, "A Alma do Osso" estreia com atraso de seis anos por Alcino Leite Neito, Folha de S. Paulo
Matéria de Alcino Leite Neito originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 29 de maio de 2010.
Documentário que registra cotidiano de eremita foi vencedor do É Tudo Verdade em 2004
Diretor Cao Guimarães, que também é artista plástico, filmou uma adaptação de "Catatau", de Paulo Leminski
Em 2004, quando foi exibido no festival de documentários É Tudo Verdade, em São Paulo, "A Alma do Osso" arrebatou os dois principais prêmios do evento: o de melhor filme da competição nacional e o da competição internacional.
Em qualquer lugar, essa dupla e prestigiosa premiação seria um incentivo para o longa entrar logo em cartaz. Não foi o caso no Brasil.
"Alma do Osso", que registra o cotidiano de um eremita nas montanhas de Minas Gerais, ficou engavetado.
Seu lançamento nos cinemas do país só ocorreu ontem, quase seis anos após sua exibição no festival.
Enquanto esperava a difusão do filme, o diretor e artista plástico Cao Guimarães, 45, não cruzou os braços.
Fez dez curtas-metragens, outros dois longas ("Acidente", 2006, e "Andarilho", 2007), foi convidado para os festivais de Cannes e Veneza, participou duas vezes da Bienal de São Paulo, realizou várias exposições e acaba de filmar "Ex-isto", a primeira versão cinematográfica de "Catatau", romance do poeta Paulo Leminski (1944-1989).
"O livro de Leminski, na verdade, é infilmável, é um vertiginoso fluxo de linguagem. O que eu fiz foi uma livre adaptação", explica Guimarães, sobre "Ex-isto".
OUSADIA
De fato, "Catatau" (1975) é um dos experimentos mais ousados da literatura brasileira -e também uma reflexão sem amarras conceituais a respeito da cultura do país e da relação entre linguagem e pensamento.
Numa escrita que não faz distinção entre prosa e poesia, Leminski narra no livro as desventuras tropicais do personagem René Descartes-Renatus Cartesius, que ele imagina aportando em Recife, com a esquadra de Maurício de Nassau.
O ator João Miguel (de "Cinema, Aspirinas e Urubus") interpreta o protagonista, cuja crença na razão é colocada à prova pela mixórdia cultural e pelo sensualismo brasileiros -até deparar-se com o fracasso total da metafísica. O filme termina com Descartes-Cartesius inteiramente nu, deitado no colo de uma negra.
Miguel é o único ator de "Ex-isto", feito em 15 dias, por seis pessoas e com orçamento de R$ 200 mil.
ESTRANHAMENTO
Os filmes de Guimarães são diferentes do que costuma ser exibido nas salas de cinema: não se atêm aos esquemas narrativos e estilísticos habituais, nascem de uma linguagem livre e postulam um desejo de experimentação constante.
Se podem causar estranheza no público de cinema e apreensão no mercado cinematográfico, no meio das artes, entretanto, são recebidos com grande interesse.
"As artes plásticas hoje são muito mais abertas a várias formas de linguagem do que o mundo do cinema, cujo sistema de produção industrial se tornou muito pesado, criando um ambiente bastante cruel para os artistas", afirma Guimarães, que já teve seus trabalhos adquiridos por museus como o MoMA (Nova York) e a Tate Modern (Londres).