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maio 27, 2010
Traço barroco por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo, em 27 de maio de 2010
Em entrevista à Folha, artista carioca Adriana Varejão lembra vozes e saunas da infância e reclama
da "armadilha" do mercado
No celular, aparece a mensagem. "Aqui ventou muito esta noite", escreveu Adriana Varejão. "Te espero."
Foram sete palavras carregadas de drama antes do encontro em seu ateliê no Rio.
Num dia de céu de chumbo, ela ouve Cartola enquanto tenta fazer as luzes saírem pelas bordas na pintura de um prato gigantesco para a sua próxima mostra.
"Sou meio samba", diz. "Muito samba e choro."
Também é teatro. Ela é a artista que canibalizou o barroco, reencenando o gênero em suas paredes de azulejos e carne cenográfica. Rasga suas telas para revelar convulsões vermelho-sangue.
Um livro recém-lançado analisa as ruínas que usa para construir seu trabalho, o que ela resume como "construção da desconstrução".
São textos de Silviano Santiago, Lilia Moritz Schwarcz e outros intelectuais que tentam mensurar as dimensões de Varejão. Falam do azul da artista, de como ela conseguiu fugir à tradição concreta e arquitetar uma via estética com paredes de charque.
Na superfície, estão quadrados assépticos. Pelas bordas, vazam entranhas de poliuretano. A sangria congelada começou com "Ruínas de Charque", há dez anos, e é hoje sua obra mais cara.
Uma dessas paredes foi arrematada em abril por R$ 551 mil num leilão em São Paulo.
No balanço geral, sua obra se valorizou 5.000% na última década, mais do que qualquer outra artista brasileira.
"Estou longe de ser uma unanimidade", dispara.
"Tem dias que acho tudo uma maravilha, outros em que acho tudo um horror."
São polos opostos também na sua obra. "Lido com esquartejamento, carne e sangue", diz. "Preciso desse teatro, claro e escuro, a assepsia em contraponto à volúpia, é uma estratégia barroca."
Na vida real, Varejão aprendeu outra estratégia.
Não está nos vernissages, estampada em jornais, badalando em festas. Passa os dias no Jardim Botânico, escondida no ateliê em forma de caixa, aberto à mata.
"Quando senti que ia cair nessa armadilha, eu resisti", diz. "É uma sinuca de bico."
Armadilha, no caso, é o jogo nada teatral do mercado.
São valores reais inflados num ritmo tão acelerado que parecem de mentira, cifrões que ofuscam qualquer obra. Beatriz Milhazes, sua colega de geração com ateliê perto dali, foi a primeira brasileira alvo do furacão especulativo, batendo US$ 1 milhão num leilão nova-iorquino.
"Ficou chato ter uma etiqueta de valor no trabalho dela", diz Varejão. "Você para de ver a pintura e passa a ver outra coisa no lugar."
Talvez por isso, Varejão quer distância do dinheiro.
Mesmo casada com o megacolecionador Bernardo Paz, o homem por trás do Inhotim, onde investiu R$ 400 milhões em arte contemporânea, ela vive no Rio e vai a Brumadinho, no interior mineiro, uma vez a cada 15 dias para ver o marido.
"Distância não atrapalha, ajuda", diz Varejão. "Nosso casamento está ótimo."
CONSTRUÇÃO
Tanto no Rio quanto em Minas, suas obras ficam num cubo suspenso, espaços de linhas retas projetados pelo arquiteto Rodrigo Cerviño.
É uma casca neutra e impenetrável para a latência sanguínea de seus trabalhos, do mesmo jeito que brigam as entranhas das obras com a pele plástica do lado de fora.
"É como se tivesse dentro de uma igreja barroca e ouvisse uma buzina lá fora", descreve. "Tento fazer essas associações inesperadas."
Mas, voltando ao próprio passado, não vê traumas por trás das chacinas emparedadas de agora. "É afetuosa minha relação com arquitetura.
Quando era pequena, tinha a sensação de estar dentro de um corpo, a casa era um ser e havia pessoas nas paredes."
Depois dos quartos cheios de vozes, ela grudou os olhos nos azulejos das saunas que visitava com a mãe.
"Foi a primeira vez que vi mulheres peladas naquele contexto de intimidade", lembra. "Ali estava aquele chão azulejado, isso ficou preso na minha cabeça."
ADRIANA VAREJÃO - ENTRE CARNES E MARES
AUTORES Silviano Santiago, Lilia Moritz Schwarcz, Karl Erik Schollhammer, Luiz Camillo Osório, Zalinda Cartaxo
EDITORA Cobogó