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maio 24, 2010
Na prática é diferente por Ferrreira Gullar, Folha de S. Paulo
Matéria de Ferreira Gullar originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 23 de maio de 2010.
Um carro esporte da marca Bugatti foi vendido em leilão por US$ 40 milhões. Não foi uma escultura de Rodin nem um quadro de Picasso, mas simplesmente um automóvel, ou seja, um produto industrial feito em série. É verdade que desse Bugatti só foram fabricados três exemplares, mas há casos de outros, de muito maior tiragem, que alcançaram vários milhões de dólares.
Tais fatos, sem dúvida, deixariam perplexo o pensador alemão Walter Benjamin, segundo o qual os produtos industriais não possuem aura, como as obras de arte consagradas.
O que então explicaria a verdadeira idolatria de certos colecionadores por automóveis antigos? Talvez o leitor não esteja entendendo por que Walter Benjamin ficaria perplexo. É que ele é o autor de um célebre ensaio intitulado "A Obra de Artena Época de Reprodutibilidade Técnica", no qual expõe a teoria da aura que envolve as obras de arte, que são originais únicos, como, por exemplo, "A Guarda Noturna", de Rembrandt, ou "Le Déjeneur sur Lherbe" (almoço sobre o gramado), de Manet.
Aliás, é próprio da pintura, por ser produto artesanal, criar originais únicos, contrariamente à fotografia, produto tecnológico, que possibilita a criação de numerosas cópias, sem original: o original da fotografia era, até recentemente, antes da câmera digital, o negativo.
As fotos assim obtidas eram cópias. Ou todas elas originais? Mas, quando Benjamin escreveu seu ensaio, nem sonhava coma foto digital. De qualquer modo, naquela época, como hoje, um automóvel também não tinha original, isto é, tinha, mas era o projeto do designer. Essa constatação levou o ensaísta alemão a desenvolver uma teoria, segundo a qual o conceito fundamental da obra de arte havia sido destruído pelas novas técnicas de reprodução das obras criadas.
Nascia, assim, segundo ele, um novo conceito de arte que eliminava a concepção tradicional de obra única e consequentemente o conceito de artista como indivíduo dotado de genialidade ou talento. É como consequência dessa tese que Benjamin afirma que as novas técnicas de reprodução extinguiram a aura que envolvia e sacralizava a obra única.
Por trás dessa tese está a concepção da sociedade de massa, vista como um avanço na história humana, quando, enfim, a coletividade se sobrepõe à individualidade, dispensando, portanto, o conceito de gênio, indivíduo superdotado, que seria na verdade fruto de uma mistificação da arte. Em seu entendimento, a aura que envolve as chamadas obras-primas nasceu da visão religiosa que estava na origem das criações artísticas da Antiguidade. Confundia-se a devoção aos deuses com a expressão estética, e assim a aura mística contaminava a expressão artística.
Mais tarde, quando a arte se libertou da religião, aquele sentimento místico se transferiu para a contemplação estética. A arte pela arte não seria outra coisa senão o resultado dessa transferência do místico para o estético. Tese perigosa que desconhece a diferença entre as pessoas, ao pressupor que todas têm as mesmas qualidades, o mesmo gênio de um Albert Einstein ou de um Leonard DaVinci. Mas os fatos foram suficientes para pôr abaixo a teoria.
Ao contrário do que afirmava, as reproduções da Mona Lisa, em vez de destruir-lhe a aura, a aumentaram, tornando-a mais admirada, já que todos desejam conhecer o original daquela reprodução que lhe caíra nas mãos. Cada ano, novos milhares de pessoas se a cotovelam no Louvre, atraídos pela aura da obra de Da Vinci.
Contrariando a previsão de Benjamin, a reprodução veio garantir e ampliar a aura. É evidente que ele se equivocou. A aura que envolve esse ou aquele objeto -seja um quadro ou um automóvel- depende de fatores muito diversos, que tanto pode ser a qualidade estética, sua condição de objeto raro ou extravagante, como a história ou lenda que o envolva.