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abril 8, 2010
Venha a nós a Europa “decadente” por Vinicius Lummertz, Diário Catarinense
Venha a nós a Europa “decadente”
Matéria de Vinicius Lummertz originalmente publicada no caderno Cultura do jornal Diário Catarinense em 27 de março de 2010.
*** Leia e assine o abaixo-assinado "Repúdio ao governo do estado de Santa Catarina pela implantação em Joinville da Escola de Belas Artes de Florença da Itália" ***
Santa Catarina mantém relações com mais de 180 países e a sua política cultural internacional é eclética e ampla
“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.
(Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade – maio de 1928)
Nada melhor para a democracia do que o fomento ao debate e o espaço na mídia para o controverso. Saudei, portanto, com alegria o artigo do professor Nildo Ouriques, da Universidade Federal de Santa Catarina, no Diário Catarinense do dia 20 de março, sob o título O governador europeu. Nele, o professor diz o que pensa sobre a política cultural dos governos de Luiz Henrique da Silveira e a acusa de ser “eurocentrista”, ou seja, “uma política a serviço do universalismo europeu contra a indústria cultural dos EUA”, com clara preferência pela França.
Ao recomendar que deveríamos ser mais cuidadosos com a divulgação da arte europeia entre nós, o autor diz que esta ação preferencial pela Europa – que em muitos domínios da arte e da ciência é claramente decadente (sic) – tem a marca de um exclusivismo inaceitável e, na forma, representa uma opção provinciana. A concluir pelo que diz o professor Nildo Ouriques, o balé Bolshoi, a Academia de Artes de Florença, o Museu de Saint-Exupéry, o ENA, a Escola Nacional de Administração, francesa e europeia, a Grande Escola de Engenharia de St. Etiénne, a Lusofonia com os Açores, representam conhecimentos e culturas que nos transformariam em apêndice de uma conspiração dos europeus para nos condicionar como “subprodutos” da cultura francesa.
Talvez por desconhecimento, o autor não fala da Escola Polonesa Mazowsze, do projeto do novo Centro Cultural França Brasil, da nova parceria que se desenvolve com a Ferrari. Na verdade, os países europeus têm um papel central na mais ousada estratégia de cooperação internacional que Santa Catarina empreendeu em toda a sua história. Seria isso ruim, como sugere o autor?
Na prática, temos cooperação com muitos outros países, além dos órgãos multilaterais; cooperação em segurança e alta tecnologia com os EUA, em especial com o MIT (Sapiens Parque); cooperação nas áreas agrícolas com Nova Zelândia; intensos esforços de integração com a Argentina e o Mercosul apoiando o ensino da língua espanhola em nossas escolas; e com o Japão, onde, diga-se de passagem, Santa Catarina vai assinar, nesta transição de governo, um empréstimo para obras de saneamento da ordem de R$ 343 milhões. Isto tudo sem mencionarmos o fato de Santa Catarina manter hoje relações com mais de 180 países, onde comercializamos US$ 18 bilhões anuais contra os US$ 3 bilhões de sete anos atrás. Foi esse sistema multilateral de comércio que maior impacto teve na alavancagem do PIB catarinense – de R$ 65 bilhões, em 2003, para os R$ 104 bilhões atuais.
Minha dúvida é saber se devo ou não relatar a “tese conspiratória” do professor Nildo Ouriques ao ministro do Turismo de Zimbábue, que recebemos, novamente, para tratar de bolsas na Udesc, cooperação com o Epagri e turismo, obviamente. Ou aos iraquianos e indianos com quem estamos discutindo investimentos, ou aos marroquinos que tratam conosco da parceria com o porto de Tanger e o Festival de Mágica de Marrakesh, realizado no ano passado e que já nasceu como o maior da América Latina – a mesma Marrakesh que recebeu tão bem nossa Copa Lord, e que ganhou o Carnaval com este tema. Cederei à tentação ? Como se vê, a política cultural internacional do governo de LHS é muito mais eclética, ampla, do que pensam – ou sabem – os que a criticam.
Voltemos à Europa, que o autor define como “claramente decadente” em “muitos domínios da arte e da ciência”. Não consigo, em primeiro lugar, entender o que é decadência da arte ou da ciência. A arte é de boa qualidade ou de má qualidade. A boa qualidade em arte não decai. Admitir a decadência da arte seria como dizer que a poesia de Baudelaire, produzida há 150 anos, não será mais capaz de nos sensibilizar ou que a França seria incapaz de gerar novos poetas da mesma qualidade, quando sabemos que o útero que gerou Baudelaire ainda é muito fértil. Já a ciência, todos sabemos, é transportada pela pesquisa – e o que faria um país como a França reduzir inversões para pesquisa no apogeu de seu enriquecimento?
Em defesa da Europa, certamente o professor Nildo Ouriques vai-me permitir ampliar o debate, alargando o entendimento para o sentido de cultura ocidental. A Europa, que já foi o centro do mundo, chegou a tal condição pelo Renascimento e pela Era das Luzes, que a tirou do sono da Era Medieval e do dogmatismo cristão, como ilustrado por Umberto Eco, em seu O Nome da Rosa. As culturas grega e romana, estocadas no Bizâncio, explodiram em Florença sob os Médici – e seguidas as revoluções científicas, comerciais, e a revolução industrial, a reforma protestante –, além das revoluções dos comuns na Inglaterra e dos burgueses na França, transformaram o mundo. Mesmo o socialismo e o marxismo são invenções claramente europeias. Freud e Einstein, também.
Assim, não se pode entender cultura como uma expressão estanque, que nasce e morre numa redoma. A cultura ocidental começa em Atenas, que, por sua vez, tem passado que remonta ao Egito, ao norte da África, à Mesopotâmia e às relações com o Oriente. A Grécia, por sua vez, está presente nos Estados Unidos, não só na ideia seminal de democracia, mas avulta na arquitetura neoclássica. Washington é uma cidade jefersoniana, neogrega, como são praticamente todas as universidades e escolas norte-americanas – o que não é grego reflete o gótico europeu, como em Nova York. Tudo é perene e, ao mesmo tempo, passa por grande transformação. Temos de admitir, professor Nildo, que os Estados Unidos não estariam transformados em potência não fossem essa continuidade e essa oposição. Isto é puro Hegel, lembra-se? Veja ainda o caso da Espanha: é europeia, mas é também moura. E assim são os EUA do folk e do jazz.
As escolas de gestão de economia e de engenharias dos EUA e da Europa estão mais lotadas de chineses, hoje, do que estiveram de japoneses e coreanos no passado. A mesma coisa ocorre nas escolas de música da Inglaterra e da Áustria, e de artes em toda parte. Os orientais não têm medo de levar o Ocidente para lá – toda esta ideologia começou com a revolução Meiji em 1880, quando o imperador japonês repetiu Pedro, o Grande, e foi buscar a cultura ocidental. A síntese das potências culturais de Índia e China com os elementos ocidentais é o maior fator vivo de transformação planetária, do qual esperamos muito. Das artes à tecnologia, o cerne de tudo é a busca da mais alta excelência. Assim a celebrada engenharia tem o DNA de Aachen, como a USP nasceu francesa.
Estamos nos homogeneizando com o Brasil, para o bem e para o mal, nas palavras de Ignacy Sachs – que, como Domenico de Masi afirma, apontam nosso Estado como o mais preparado para a era pós-industrial. Somos parte do Brasil Novo, do Sul, como diferenciou Darcy Ribeiro, e não nos envergonhamos de nossas raízes europeias, ao contrário. Nosso festival de dança, o maior do mundo, nossa Oktoberfest, quase uma Oktober-Carnaval, são manifestações culturais com grande legitimidade catarinense.
Ao final da apresentação do Bolshoi do Brasil na inauguração do Teatro Oscar Niemeyer em Ravello (Oscar, o amigo de Lecorbusier, o francês, que juntos projetaram o prédio das Nações Unidas) – um templo branco e curvo, brasileiro, incrustado em dois mil anos de história arquitetônica amalfitana –, com a técnica russa, nossas crianças dançaram Cazuza e arrancaram aplausos de pé de uma das mais cultas plateias da velha Europa. Bravo!
Não estamos, portanto, a fortalecer bandos em disputa. Nem queremos ser recolonizados por nós mesmos. Damos as cartas. Por fim, não estamos, enquanto defensores da linha dominante na política cultural do Estado, pretendendo evitar o debate, como argumenta o professor Nildo Ouriques – nem virar apêndice de ninguém.
Talvez seja mais fácil entender esta parte da política cultural do governo de LHS lendo o Manifesto Antropofágico. Nada fica impune nem imune à força cultural de transformação do Brasil.