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outubro 21, 2009
Uma carta aberta para César Oiticica Filho por Sergio Cohn, Jornal do Brasil
Uma carta aberta para César Oiticica Filho
Carta de Sergio Cohn publicada originalmente no Caderno B do Jornal do Brasil em 20 de Outubro de 2009.
Fiquei orgulhoso de sua força. A obra de Hélio não morreu e será reconstruída
Querido Cesinha, no momento em que acontece uma fatalidade dessas dimensões, não posso me furtar de dar o meu testemunho desses dois últimos anos de nossa convivência – que se iniciou profissionalmente e cresceu para a amizade e a irmandade.
O nosso primeiro contato foi em 2007, quando começava a organizar para a Azougue Editorial a Coleção Encontros, de livros de entrevistas com artistas e pensadores brasileiros. Ericson Pires, nosso amigo em comum, perguntou por que eu não tentava o Hélio Oiticica.
Respondi para ele que era impossível. Ele retrucou, e imediatamente marcou uma conversa entre nós. Ficou claro, para o meu espanto, que para o Projeto HO o interesse cultural estava muito acima do interesse financeiro.
Digo “meu espanto” porque existe uma lenda urbana no Brasil de que as famílias dos artistas são bichospapão, que estão apenas interessadas em usurpar a obra da sociedade, para fins financeiros.
Não há a construção real de parcerias culturais entre as diversas partes, artistas, autores, herdeiros, curadores, críticos, instituições, no intuito de criar um pensamento e uma política cultural eficiente no Brasil.
Isso precisa ser revertido.
Desde então, começamos a elaborar projetos em conjunto, compartilhando nossas inquietações em relação ao cenário cultural brasileiro.
A primeira coisa que percebi em todo esse processo é que havia em você uma preocupação ampla, não apenas restrita à obra do Hélio, mas das artes plásticas contemporânea.
O primeiro projeto que concebemos juntos, e que se encontra em franca conversa com o Ministério da Cultura, é a Rede Arte Brasil, uma rede digital que abrange um veículo para exibição permanente de filmes de artistas brasileiros e uma rede social de disponibilização de documentos e da agenda de artistas brasileiros, sejam eles consagrados ou iniciantes. O projeto, que conta com a participação de Raul Mourão, Luiza Mello e Romano, é uma tentativa de possibilitar que outros artistas digitalizem e disponibilizem seus acervos documentais, como realizado pioneiramente pelo Projeto HO.
Conversamos também sobre a elaboração de um museu que pudesse abrigar os artistas brasileiros contemporâneos e colocar disponíveis as suas reservas técnicas. Sobre isso, tivemos uma reunião importante com Alfredo Manevy, secretárioexecutivo do Ministério da Cultura no sábado, dia 10 de outubro. Foi um almoço na Nova Capela, na Lapa, no dia seguinte em que Jandira Feghalli, secretária de Cultura da prefeitura do Rio de Janeiro, desmarcou de última hora uma reunião que Alfredo havia marcado para tentar intermediar um diálogo entre vocês. O argumento dela para desmarcar a reunião virou até uma brincadeira entre nós: “Estou irredutível: o outro royalties movimentaram políticos, empresários e a sociedade civil e ainda prometem ser combustível para muitas outras negociações.
O percentual de 0,6% do Orçamento da União destinado ao Ministério da Cultura em 2008 dá a dimensão do problema.
Sem dinheiro em caixa, a Cultura se submete à lógica de mercado e as obras artísticas ao valor de troca. Como no exemplo do pré-sal, a Cultura precisa de aplicações de recursos a longo prazo. E a constituição de acervos artísticos ainda é um dos investimentos de mais alta rentabilidade no patrimônio cultural.
A preservação do trabalho de Helio Oiticica, a guarda de importantes bibliotecas que acabam vendidas para o exterior e uma política eficiente de aquisição de obras de arte contemporâneas – um campo ainda mais sensível pela falta de tempo de divulgação e de reconhecimento – esbarram na mesma barreira monetária. O resto é enxugar gelo. Ou apagar incêndios.
Mauro Trindade é jornalista especializado em literatura e artes plásticas.
lado é irredutível”. Seria engraçado, se não fosse triste. Conversamos longamente com Alfredo sobre a proposta de criação de um Museu na Rua Passos, no lugar onde era a primeira escola de artes plásticas do Brasil e que hoje hospeda tristemente um estacionamento.
Daí, na quinta-feira, em almoço com Carlos e João Vergara e José Bechara, pude ver novamente a sua generosidade, ao falar para eles que não interessava um Museu apenas para o Hélio Oiticica, mas um trabalho coletivo com artistas contemporâneos.
Ontem, quando conversamos, fiquei orgulhoso da sua força: cabeça erguida, disse que a obra do Hélio não morreu e será reconstruída.
E que temos que seguir em frente. Assim faremos, pode contar comigo para tudo o que puder ajudar. E gostaria de deixar claro aqui a minha admiração pelo seu trabalho e pela sua pessoa. O que aconteceu com o acervo Oiticica é uma tragédia espetacular, mas há tantas outras tragédias silenciosas acontecendo. Outro dia, visitando a casa de um importante artista plástico da geração de Hélio, senti um forte cheiro de vinagre.
Perguntei, e a resposta foi: “são os meus super-8, que estragaram”.
Acervos não apenas de artes plásticas, mas de todas as áreas culturais, estão se deteriorando dentro das casas e ateliês, sem nenhum trabalho sério das instituições para reverter isso. Não conheço outro artista que tenha recebido no Brasil a seriedade do tratamento que Hélio recebeu da sua família. A fatalidade não pode apagar isso, mas espero que seja um aviso para que não ocorram outras.
Com toda amizade, Sergio Cohn
Sergio Cohn é diretor da Azougue Editorial
uma das cartas mais bonitas, porque esclarecedora.
a amizade deve ser pública, como a luta pela preservação dos acervos.
a solidariedade despida do espetáculo é algo muito bonito.
as estórias são dispensáveis nesse momento, indispensável é a presença declarada.
gostei e fiquei emocionada.