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setembro 29, 2009
Cultura refém por Ana Paula Sousa e Thiago Ney, Folha de S. Paulo
Cultura refém
Matéria de Ana Paula Sousa e Thiago Ney originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 19 de setembro de 2009.
Movido a patrocínio público ou privado, mercado cultural brasileiro não consegue se sustentar sozinho; bilheterias, em poucos casos, bancam shows, peças e filmes
Se, numa canetada, acabassem os incentivos fiscais destinados à cultura, os palcos brasileiros esvaziariam. Mesmo aqueles ocupados por artistas que, na discussões sobre a nova Lei Rouanet, têm sido definidos como "consagrados". As bilheterias sozinhas, salvo exceções, não pagam peças, shows e filmes feitos no país. O mercado da cultura brasileiro não é autossustentável.
"O artista famoso precisa de lei", crava Sergio Ajzemberg, que trabalha com marketing cultural. "Existe um circuito fechado de artistas que vivem de Lei Rouanet", diz Juca Muller, produtor de shows nacionais (Detonautas) e internacionais (Earth Wind & Fire). "As empresas querem associar suas marcas aos grandes nomes, não a desconhecidos." As leis, além de tornarem mais visível quem já tem nome, inflaram os custos e agigantaram o mercado cultural. Mas teria o público acompanhado esse ritmo? Os números indicam que não.
O dinheiro de imposto que as empresas destinam à cultura beneficiou certos artistas, mas não chegou à população. É esse descompasso entre produção e acesso que tem feito com que sejam contestados projetos bancados com lei e, ainda assim, caros. "Os automóveis têm redutor de IPI e as pessoas entendem o porquê. No caso da cultura, isso não é totalmente aceito", diz o advogado Fábio de Sá Cesnik. "Todo mundo diz que o teatro é caro. É? Alguém sabe quanto eu gasto para produzir uma peça?", pergunta Antonio Fagundes.
E quanto custa a turnê de um músico? A bilheteria é capaz de bancar todos os custos?
Depende. Leninha Brandão (que trabalha com Vanessa da Mata e Lenine) diz que precisou captar R$ 660 mil de uma empresa de cosméticos para que Lenine fizesse um disco e shows em diversas capitais do país com ingresso a R$ 40.
Já Marcelo Lobato (de Marcelo D2 e Pitty) afirma que a bilheteria paga as despesas. "Faço a agenda de meus artistas e vendo os shows para contratantes locais. Ou esses contratantes pagam os cachês usando bilheteria ou se viram para arrumar patrocínio."
A discussão torna-se ainda mais complexa quando a cultura confunde-se com o entretenimento -em tese, comercialmente viável. "Quem trabalha com entretenimento tende a entregar às pessoas o que elas querem, ou seja, pensa no freguês. Às vezes isso tem ligação com a cultura, às vezes não", delimita Pena Schmidt, superintendente do Auditório Ibirapuera. "Mas essa linha é tênue", diz, lembrando que, do rei que encomendava obras a um artista, passando pelo Estado e pelas gravadoras, a música sempre foi subsidiada.
Schmidt se pergunta se poderia ser diferente. E responde: "Com a estrutura de teatros que temos, não. Fala-se muito nos cinemas, mas os teatros também foram vendidos para igrejas. Por não haver incentivo para a construção de teatros, proliferou a indústria do montar e desmontar palcos. Nas casas pequenas, o que banca um show é a venda de bebidas."
No Auditório Ibirapuera, a bilheteria responde por 10% do orçamento da casa. Parte é bancado pela TIM, sem leis, e parte vem do aluguel para eventos fechados. No Teatro Alfa, a conta é semelhante. A bilheteria responde por 20% do orçamento. Metade da arrecadação vem dos patrocínios e 30% do aluguel para eventos.
Segundo Elizabeth Machado, superintendente do Alfa, um espetáculo orçado em R$ 600 mil rende, na bilheteria, cerca de R$ 100 mil. Por que a conta não fecha? "Porque eu teria de cobrar R$ 400 reais. E aí a conta não fecharia porque o teatro não lotaria." O produtor Emílio Kalil, que trará o grupo de Pina Baush para o Brasil, ainda não conseguiu patrocínio e, apesar dos ingressos esgotados, antevê o prejuízo. "A temporada custa R$ 1 milhão. São 58 pessoas, dois contêineres, dez dias de hotel, locomoção, estrutura técnica. É uma estrutura caríssima, que o público não vê, diz.
E antes das leis, como isso era pago? Em primeiro lugar, é preciso dizer que, pós-leis, cerca de 100 mil empresas prestadoras de serviço -de alimentação a luz- se oficializaram para entrar na engrenagem de notas fiscais e prestação de contas. "Se você quer filmar numa esquina, o dono da padaria te cobra. Há 30 anos não era assim", exemplifica o cineasta Hector Babenco. Mas há outras respostas.
"Muitos produtores iam chorar no colo dos governos", diz Kalil. "O governo brasileiro, historicamente, trabalhou com incentivos. Nos anos 1970, as gravadoras tinham desconto nos impostos se investissem em artistas nacionais", diz Cesnik. Há quem vá mais longe. "Tínhamos uma população acostumada a ir ao teatro, ao cinema", diz Ajzemberg. É essa uma das diferenças entre o Brasil e os países europeus. "A média da população brasileira não consome cultura."
Na música, patrocínio divide os artistas
Arnaldo Antunes recorre a apoio; Teatro Mágico vive só de bilheteria
Produtores culturais reclamam que sem o incentivo de empresas, ingressos ficariam ainda mais caros no Brasil
É possível para um artista sair em turnê pelo Brasil, cobrar preços razoáveis pelo ingresso e bancar os custos apenas com dinheiro de bilheteria, sem o apoio de patrocínios ou incentivos fiscais? No universo da música, essa questão motiva respostas diversas.
Arnaldo Antunes, por exemplo, acaba de lançar disco e sair em turnê. A série de shows terá 17 apresentações, com o ingresso mais caro valendo R$ 30. Esse valor só foi possível porque as despesas totais da turnê (R$ 1 milhão) foram custeadas por uma empresa de cosméticos.
"Sem o patrocínio, o ingresso iria para R$ 60. E teríamos que torcer para empatarmos os custos", afirma Ayrton Valadão Jr., da Agência Produtora, responsável pelos shows.
Segundo Valadão Jr., o patrocinador solicitou ao artista que fossem cobrados ingressos a preços populares e que a turnê passasse por cidades como Campinas e Ribeirão Preto.
No caso de artistas como Roberto Carlos, por exemplo, as turnês podem ser bancadas inteiramente por patrocínio direto (sem o uso de leis de incentivo). As apresentações do Rei neste ano vão passar por 18 cidades, e estão sendo custeadas por um banco. O cachê de RC pode chegar a R$ 450 mil, segundo produtores ouvidos.
O que o patrocinador recebe em troca? "Montamos camarotes, temos acesso ao camarim e usamos a imagem do artista em campanhas institucionais", diz Fernando Chacon, do Itaú, que patrocinou Roberto Carlos.
O cantor Lenine segue esse mesmo exemplo. Para gravar um disco e sair em turnê pelas principais capitais do Brasil, captou R$ 660 mil com uma empresa patrocinadora. Dessa forma, argumenta a empresária Leninha Brandão, Lenine pôde cobrar R$ 40 por ingresso.
Se no panorama nacional as opiniões são divididas, no internacional são quase unânimes: para trazer grandes artistas de fora, é necessário o amparo de patrocinadores.
Isso porque, nesta década, o Brasil tornou-se uma espécie de "paraíso dos cachês". Devido aos festivais corporativos, que inflacionaram o mercado ao competirem para trazer os mesmos artistas, aqui paga-se cachês semelhantes aos do Japão, os mais altos do mundo.
Uma exceção é o festival Maquinaria, que acontece em São Paulo em 7 e 8 de novembro, na Chácara do Jockey. Seu custo total, de cerca de R$ 4 milhões, está sendo bancado pelos organizadores -que esperam reaver o investimento com a venda de 50 mil ingressos, ao custo médio de R$ 200 cada um.
A Folha apurou que a principal atração do evento, a banda americana Faith No More, foi oferecida a outros produtores por cachês de US$ 300 mil.
Até alguns anos atrás, os artistas recebiam das gravadoras uma verba chamada "tour support", para auxiliá-los nas turnês. O Planet Hemp chegou a receber, nos anos 90, US$ 50 mil de tour support.
"Isso acabou há quatro anos", diz Alexandre Schiavo, presidente da Sony. A razão é a crise do mercado fonográfico.
Fenômeno comercial forjado no boca-a-boca e na net, o grupo musical/performático Teatro Mágico já passou por 160 cidades desde 2008. Os shows são organizados inteiramente pelo grupo (o custo total de cada apresentação é, em média, de R$ 40 mil, apurou a Folha).
Alexandre Schiavo, da Sony, diz que outro problema são as despesas com gravação de CDs, que podem chegar a R$ 400 mil -fora a verba de marketing, em alguns casos, de mais R$ 500 mil. Dinheiro pago pelas gravadoras. A Sony é casa de artistas como Zezé Di Camargo & Luciano e Roberto Carlos.
Já a o Mundo Livre S/A tem dificuldades para captar R$ 40 mil para custear o lançamento de seu próximo disco. (THIAGO NEY)