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novembro 20, 2008
"Vamos reescrever a história da arte", entrevista com Hans-Michael Herzog por Paula Alzugaray, Revista Isto É
"Vamos reescrever a história da arte", Hans-Michael Herzog
Matéria de Paula Alzugaray, originalmente publicada na Revista Isto É edição 2037, no dia 19 de novembro de 2008
Diretor da Coleção Daros-Latinamerica diz que o europeu tem preconceito contra a arte latino-americana e que sua função é enfrentar essa arrogância
Com mais de mil obras de 100 artistas - 17 deles brasileiros -, a Daros-Latinamerica é a maior coleção na Europa de arte contemporânea latino-americana. O acervo começou a ser reunido pela colecionadora suíça Ruth Schmidheiny, no ano 2000, em continuidade à Daros Collection, formada por arte americana e européia da segunda metade do século XX.
O curador alemão Hans-Michael Herzog é o diretor das duas coleções e o responsável pela implantação da Casa Daros, no Rio de Janeiro, um edifício de 12 mil metros quadrados reformado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha e que abrirá suas portas em 2009. A monumentalidade do espaço corresponde à grandeza do projeto: "Dar visibilidade à produção artística latinoamericana", afirmou Herzog à ISTOÉ, por ocasião da abertura da exposição Painted!, em Zurique, que reuniu o artista argentino Guillermo Kuitca, o americano Richard Allen Morris e a alemã Beate Günther.
Crítico em relação ao boom do mercado de arte asiático, Herzog é um otimista quando se fala em Hemisfério sul: "O desenvolvimento do mercado de arte latino-americano é muito saudável, porque está crescendo com estabilidade, passo a passo." Com orçamento regular e um projeto educativo forte, formado por oficinas, residências de artistas, fóruns, seminários, publicações e exposições, a Casa Daros, capitaneada, junto com Herzog, pelo curador cubano Eugenio Valdés Figueroa e a jornalista carioca Isabella Rosado Nunes, aposta no crescimento sustentável do sistema artístico latino- americano.
"Para o público europeu, alguém chamado Regina Silveira pode vir da Espanha, do México ou do Brasil. Ele não faz e não se importa em fazer nenhuma distinção"
ISTOÉ - A arte brasileira vive um momento de grande repercussão internacional. Mas existe um abismo entre o interesse do público e o do especialista. Qual é o real interesse do europeu na arte latinoamericana?
Hans-Michael Herzog - O público não tem o menor interesse em arte latino-americana. Para ele, alguém chamado Regina Silveira pode vir da Espanha, do México ou do Brasil. É a mesma coisa para a opinião pública, que não faz e não se importa em fazer nenhuma distinção. No atual momento, ter um nome chinês ou mesmo indiano é o suficiente para o mercado. Mas não existe o menor conhecimento sobre o resto do mundo. Chamo isso de arrogância e ignorância.
ISTOÉ - A que o sr. atribui essa postura?
Herzog - Tanto aqui como nos EUA, as pessoas acreditam que são superiores e que criaram
tudo. Portanto, para o público e também para o especialista - meus colegas curadores aqui da Europa - tudo o que tiver sido criado na América Latina tem que ser epigonal, tem que ser imitação, adaptação, cópia da cultura européia. Foi por esse motivo que nossa última exposição, Face to face, foi altamente provocativa. Procuramos, de uma maneira didática, fazer o público entender que é evidente que a América Latina criou seus próprios pensamentos e idéias, como qualquer outro lugar.
ISTOÉ - Expor a arte latino-americana, a européia e a americana lado a lado é uma forma de atrair a atenção para essa produção?
Herzog - Sim. Dessa forma, a autonomia dessa produção se torna óbvia. É um absurdo, porque isso deveria estar claro. Mas não estava. Já havíamos feito outras mostras apenas com arte latino-americana, mas teve um público mais restrito.
ISTOÉ - Essa postura européia e americana já dura séculos. Como se pode modificá-la?
Herzog - Esse é nosso principal ponto. Queremos educar as pessoas. Ao colocar no mapa a arte contemporânea feita em países latinoamericanos, queremos mudar a história da arte do século XX. A nossa atividade pode ser uma contribuição pequena ou de médio porte para reescrever essa história.
Vamos mostrar a variedade de possibilidades que existem, criar uma base em Zurique para espalhar um conhecimento sobre a América Latina na Europa.
ISTOÉ - E a atividade da Casa Daros que será inaugurada no Brasil no ano que vem?
Herzog - Esse é o segundo ponto, o Rio de Janeiro. Nossa plataforma na América Latina será muito importante na política de mudança de consciência de outras pessoas que trabalham no campo da cultura. Generalizando, eu diria que o latino- americano não se vê plenamente quando se olha no espelho. Ele tem um preconceito de ser periférico e inferior. Uma censura o faz pensar que, a priori, falta-lhe algo. Mas isso é totalmente equivocado.
Quero mudar a imagem que o latino- americano tem de si mesmo.
ISTOÉ - Mas muitas vezes um artista só é legitimado e reconhecido se ele tem projeção internacional.
Herzog - Esse aspecto é exatamente igual na Europa. Se você é um artista suíço ou alemão que expôs no MoMA, todos vão falar de você. Antes disso, não. O artista latinoamericano pensa que seus problemas são muito especiais e são só latinoamericanos. Mas as dificuldades são compartilhadas com o resto do planeta e não são especificamente locais. Temos que descobrir juntos quais são os problemas específicos e quais são os problemas de todos.
ISTOÉ - A Bienal do Mercosul, que acontece em Porto Alegre, tem desempenhado um papel aglutinador?
Herzog - Sim, é uma bienal fantástica. Visitei todas as edições e, honestamente, essa é
realmente uma das melhores bienais que já conheci. Consegue manter uma ótima qualidade.
ISTOÉ - O sr. vai visitar a Bienal de São Paulo?
Herzog - Não vou ter tempo. Não entendo por que visitar uma bienal que, pelo que li até agora, apresenta muito pouco para ser visto. É uma bienal de debates e eu, pessoalmente, não preciso mais de debates. Não preciso discutir "por que bienais, sim ou não". Isso é absolutamente entediante e desnecessário. Estive em oito bienais asiáticas este ano e muitos debates foram sobre esse tema.
É uma discussão fútil que nem chega a ser teórica. É apenas acadêmica, um debate acadêmico chato. Para mim, é perda de tempo.
ISTOÉ - Se a Casa Daros vai fomentar a reflexão crítica e o conhecimento sobre arte, me parece contraditório que o sr. não esteja interessado em discussões.
Herzog - Estou interessado em discutir questões importantes. Falar sobre bienais é um assunto secundário, uma questão muito superficial. As pessoas têm discutido as bienais por anos a fio. Não há nada de novo.
ISTOÉ - Por que o sr. considera estéril a discussão sobre o modelo das bienais?
Herzog - O que é uma bienal? A Bienal de Veneza foi criada em 1895 apenas por razões turísticas e econômicas. Mas isso ficou para trás e as bienais foram declaradas mortas nos anos 1980. Todo mundo dizia: não queremos mais bienais no planeta, nos moldes da Bienal de Veneza, a primeira de todas. Mas aí o pessoal do marketing entendeu que, com as bienais, você poderia atrair pessoas e fazer dinheiro. E colocar sua cidade no mapa. Mas isso é ridículo.
ISTOÉ - Virou apenas um negócio?
Herzog - Trata-se de dinheiro e turismo. Nos últimos anos, as bienais ficaram parecidas com as feiras de arte e as feiras de arte ficaram parecidas com as bienais. Uma feira significa vender coisas - sapatos, batatas, peixe. Mas as feiras têm convidado todos os críticos, curadores, os grandes nomes. E o crème de la crème senta-se para debater. Então, a feira de arte está abocanhando uma fatia da bienal. Se você freqüenta as bienais, como fiz agora na Ásia, vê que os negociantes estão nas bienais convidando você para conhecer suas galerias. Por isso tudo, não levo a sério nem as feiras nem as bienais.
ISTOÉ - Quais as prioridades de sua agenda artística neste mês?
Herzog - Minhas viagens não têm nada a ver com prioridades. Tenho que visitar, por motivos profissionais, a Bienal da América Central, em Honduras, porque temos um projeto sobre essa região. Mas o que estou querendo dizer sobre feiras de arte e bienais é que elas têm uma função muito importante na América Latina, onde, por um bom tempo, não existia um mercado de arte. E, sem mercado, é muito difícil sobreviver. Portanto, é positivo, pois tanto a feira quanto a bienal contribuem para a formação desse mercado.
ISTOÉ - No Brasil se questiona se há um reconhecimento crescente da arte brasileira no mercado internacional ou se isso é algo passageiro.
Herzog - O desenvolvimento do mercado de arte latino-americano é muito saudável, porque está crescendo com estabilidade, passo a passo. Este é um ótimo sintoma de um crescimento orgânico.
ISTOÉ - Como surgiu o seu interesse pela arte latino-americana?
Herzog - Estava entediado com a arte européia e americana, realmente cansado. Isso foi por volta de 1990, quando comecei a trabalhar e a expor na Espanha. Viajei muito por lá, inclusive pelas Ilhas Canárias, onde há um museu muito interessante chamado Centro Atlântico de Arte Moderna. Eles estavam lidando na época com a conexão entre África, América Latina e Europa. Conheci pessoas que me abriram os olhos.
"É uma bienal de debates e eu não preciso mais de debates. Não preciso discutir 'por que bienais'. Isso é entediante"
ISTOÉ - Por que o sr. prefere que os catálogos da Daros tragam entrevistas com os artistas e não ensaios?
Herzog - Adoro escrever, mas acho que seria uma atitude arrogante e mesmo imperialista se o fizesse neste momento. Os artistas latinoamericanos têm tanto a dizer que seria uma estupidez não lhes dar a palavra. Portanto, quero que as pessoas os escutem, e não o que diz o curador. O curador tem seu lugar no jogo, mas não deveria levar-se tão a sério. Os artistas são muito mais importantes. São eles que criam os trabalhos. Eu definitivamente odeio essa idéia, em prática nos últimos 20 anos, de que os curadores são mais importantes.
ISTOÉ - Como isso acontece?
Herzog - A partir dos trabalhos, eles tentam estabelecer uma idéia, que chamam de teoria. Mas isso não tem nada a ver com teoria. Eles colecionam trabalhos para ilustrar suas idéias, o que aos meus olhos é errado. Tento entender o artista através de seu trabalho e então, a partir disso, elaboro uma idéia para uma exposição. E não o contrário. Chamo meu modo de "indutivo" e o outro "dedutivo". E isso é exatamente o que queremos fazer na educação da Casa Daros. Não queremos ser os donos da verdade.