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outubro 23, 2006
Um país de cegos, entrevista de Paulo Herkenhoff a Ana Paula Sousa, Revista Carta Capital
Um país de cegos
Entrevista de Paulo Herkenhoff a Ana Paula Sousa, originalmente publicada na Revista Carta Capital nº 416, do dia 25 de outubro de 2006
Para Paulo Herkenhoff, o gosto pelo colunismo social e o fim do pensamento crítico deixam a arte num estado letárgico
O prestígio de Paulo Herkenhoff como curador e crítico de arte se mede pelo seu currículo. E não é preciso esticar a lista. Basta dizer que esse capixaba de 57 anos e feições que em certos momentos remetem a Mário de Andrade foi curador do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), da Fundação Eva Klabin Rapaport, da 9ª Documenta de Kassel, da 24ª Bienal de São Paulo e, até janeiro deste ano, dirigiu o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Nova York, Herkenhoff, antes de aderir de vez à arte, foi professor de Direito na PUC do Rio e desenovelou processos num escritório de advocacia. Arriscou também traços e formas. "Fui aluno de Ivan Serpa e tive a ilusão de ser artista por uns cinco anos. Depois passou."
Este ano, após o trabalho de três anos à frente do Museu Nacional de Belas Artes, Herkenhoff voltou às curadorias em duas exposições em São Paulo: Manobras Radicais, que esteve em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, e Pinceladas, que foi exibida no Instituto Tomie Ohtake. Coube também a ele a seleção dos participantes do Arte Pará 2006. Neste momento, está debruçado sobre um texto a respeito de Louise Bourgeois para a retrospectiva que começa no fim de 2007 na Tate Gallery, e sobre um trabalho que ergue pontes entre a arte polonesa e a brasileira.
Se os afazeres são muitos, muitas também são suas preocupações em relação ao estado das artes no Brasil. Após a passagem por um dos mais importantes museus do País, Herkenhoff tem uma constatação a martelar a cabeça: para ser um administrador público da cultura, é preciso consentir em calar, é preciso silenciar sobre mazelas. Foi com essa observação que ele deu a largada à conversa com CartaCapital, no Instituto Tomie Ohtake.
CartaCapital: Trabalhar num museu brasileiro é se debater contra impossibilidades?
Paulo Herkenhoff: Eu aprendi muito sobre museus com duas pessoas: Evelyn Iochpe e Aracy Amaral. São pessoas que têm uma visão da arte e compreendem o que é um museu, desde o corpo técnico até o campo estético-filosófico, passando pelos programas educativos. Museu, para essas pessoas, não é reiteração de papel social, mas sim uma instituição que tem um papel a desempenhar na sociedade. Esse é um dos problemas mais graves da museologia: a elite brasileira confunde soçaite com sociedade. Esse é um nó ético. Os museus são depositários da imagem simbólica que um país faz de si, mas estão tomados por farsas intelectuais e pelo colunismo social com champanhe.
CC: O colunismo social contribuiu para a sua saída do Museu Nacional de Belas Artes?
PH: Eu fui atingido por uma coluna social que participava da farsa que achava que a notinha proposta, o veneno e o elogio poderiam mudar o real. A arte é uma relação com o real e com a poética. Não adianta colocar um tapete vermelho sobre um ladrilho quebrado. O ladrilho quebrado continuará significando a impossibilidade de corrigir o que está decaindo. Mas, na coluna social, o novo diretor deveria ser elegante e mentir, dizer que não achou o museu à beira de uma crise.
CC: O senhor foi criticado por dizer que o museu corria riscos de ter um incêndio?
PH: Falei isso numa entrevista e estou sendo processado pela antiga diretora. Será que todos eles se esqueceram do que aconteceu há 25 anos no MAM? Pois eu não esqueci. Não quero ver o museu da minha cidade se esvair em fogo por incompetência, como aconteceu no MAM. Eu guardei todos os recortes da época e tenho até hoje. Trabalhei nesse museu, dediquei quatro anos da minha vida a ele. Eu encontrei no MAM do Rio de Janeiro lixo de 40 anos acumulado do subsolo, pronto para virar fogo. Papéis, restos de montagem, caixas, obras que viraram pó... Da mesma maneira, encontrei no Museu de Belas Artes salas cheias de lixo. Foram 30 caminhões retirados pela companhia de limpeza urbana do Rio de Janeiro.
CC: Falta de verba não justifica isso...
PH: Não. Tanto que isso tudo foi resolvido. Não precisa muito esforço. Basta ter disciplina e vontade de fazer. É saber que antes da festa é preciso construir a casa. Não adianta fazer festa com o presidente da República, o presidente da França, o rei daqui e de lá, sair nas colunas sociais sempre elegante. Essas cenas não apagam a memória do descaso. Agora, eu sou muito claro. O governo Lula, com o ministério de Gilberto Gil, é infinitamente mais responsável do que o governo Fernando Henrique, com o ministro Weffort.
CC: Em que sentido?
PH: Este governo teve mais responsabilidade. O ministro Weffort não teve coragem de limpar o Museu Nacional de Belas Artes quando foi preciso. O museu expunha obras do Aleijadinho, cuja autenticidade não era assinada pelos especialistas do Iphan. Isso é um sério desvio ético.
CC: Se houve avanços, por que o senhor deixou a diretoria do museu?
PH: Porque existe uma tendência de entregar os museus à burocracia. Estamos na contramão do que está acontecendo na Europa, onde, cada vez mais, os museus são reconhecidos como entidades autônomas. No Museu Nacional de Belas Artes, eu levei às últimas conseqüências a proposta de uma reforma estrutural que passasse pela recondução de uma ética fisiológica que, antes de tudo, teria de passar pela verdade.
CC: O que é essa ética fisiológica?
PH: O diretor de um museu não pode mentir. Eu venho da arte. Não estou a serviço de um partido político ou de uma carreira pessoal.
CC: Por que o senhor aceitou o convite para dirigir o Museu de Belas Artes?
PH: Esse era o meu grande sonho profissional. É um museu extraordinário, com um potencial incrível. O museu foi posto num estado terminal de sobrevivência e estava sendo maquiado como um defunto saudável. Mas eu acho que fiz bastante. Agora vou voltar às curadorias.
CC: O que faz um curador do MoMA que não faz um curador brasileiro?
PH: O curador do MoMA tem de fazer doações de valor ou de obras de arte ou fazer doações de serviços. Você não é conselheiro para tomar champanhe e conversar com artista. Então, o conselheiro participa do prazer de escolher as obras de arte, mas também vai participar da reunião que vai decidir o destino da biblioteca, por exemplo. São os prazeres e os deveres. Ao se incorporar àquela sociedade, você é convidado a doar o seu tempo. A doar de verdade. É isso que faz um museu se manter independente de mudanças no governo. No Brasil, seria preciso, pelo menos, ligar o narcisismo à produtividade social. Se os jornais cobrassem responsabilidade social na cultura, as coisas poderiam mudar também.
CC: Que o diga o caso Edemar Cid Ferreira, não?
PH: O Edemar sabia lidar com a imprensa. Quando houve um ato de vandalismo na Bienal e beijaram uma obra do Warhol, ele conseguiu fazer com que não saísse nada nos jornais. Eu não quero colocar a imprensa como um bloco irresponsável e homogêneo, mas gostaria que funcionasse como um alerta: ou o Brasil repensa sua posição com relação aos museus ou iremos por água abaixo. Os museus são um retrato da elite brasileira. As coisas se dão por pulsões. Temos um Cicillo ou um Chateaubriand, faz-se uma bela coleção, mas depois aquilo reflui. Não há continuidade.
CC: Ainda falando de imprensa, por que a crítica de arte praticamente acabou no Brasil?
PH: Porque existe um deslocamento ético de olhar. A arte é vista como colunismo social, como mercadoria, como forma de aquisição de prestígio. Só não é vista como essência ontológica. E eu uso esse termo para o leitor da coluna social não entender. A arte está sendo abandonada pela sociedade brasileira em sua essência ontológica. Estamos produzindo um país de cegos. A arte só aparece quando cega.
CC: Como assim, "quando cega"? Quando pode ser embalada como se embala o Superman?
PH: Mais ou menos. De alguma maneira, essas duas coisas se cruzam. O New York Times tem chamada na primeira página sobre artes plásticas quase toda semana e, toda semana, tem duas páginas de crítica dedicada à arte. Mas tem também a contrapartida: o mercado anuncia. É uma ilusão pensar que quem financia o sistema jornalístico, que reduz os segundos cadernos hoje ao entretenimento, não pauta esses cadernos. Nosso artista novinho tem de custar 30 mil dólares, porque é esse o preço de um artista jovem em Nova York. Mas a galeria que paga 30 mil dólares por esse artista anuncia no New York Times.
CC: Por que a galeria brasileira não anuncia?
PH: Porque somos arremedo do mercado de arte internacional. Um artista brasileiro vale o preço internacional se ele tiver um mercado de demanda e de distribuição. Não adianta dizer que fulano vale "x" se não há uma demanda. Ele pode valer "x" no Brasil e "x-10" lá fora.
CC: Mas a moda é dizer que tal artista foi comprado por uma galeria européia ou norte-americana...
PH: Eu espero que o sistema fiscal brasileiro tenha eficiência, ou seja, se as obras alcançam preços internacionais, o sistema fiscal brasileiro também deve ser beneficiado por isso. Artistas e galerias não podem estar à margem do sistema fiscal.
CC: E estão?
PH: Não sei, eu estou colocando isso. Se um Volpi vale 3 milhões de reais, isso é uma questão da lei da oferta e da procura. Mas, por que não há uma avaliação das heranças, como se faz na Europa ou nos Estados Unidos? Na França, quando morre um artista, parte de seus fundos são revertidos para o Estado. Aqui, certas coisas não são claras. Alguns colecionadores brasileiros pensam que se abrigar do Fisco é um estado de segurança. Mas não é. Eu falo em termos gerais. As galerias querem um preço internacional para os artistas. Mas a arte tem um custo social e, no Brasil, há uma relação disparatada entre sistema fiscal e o que se paga de salário a um ajudante, por exemplo.
CC: É um mercado que vive na informalidade?
PH: Parte dele. Existe todo tipo de nuance, desde um mercado que a gente conhece até um mercado secundário. A minha mensagem básica é que é uma ilusão achar que, a médio prazo, o melhor é ser capaz de sobreviver ao Fisco. O melhor é formalizar a produção e a circulação de arte dentro daquilo que é do sistema de circulação de mercadorias. A informalidade é uma bomba que vai estourar daqui a pouco. A formalização é boa para o sistema de arte.
CC: É arte a serviço da especulação?
PH: Às vezes, sim. Mas não se pode falar disso em termos genéricos e eu prefiro não entrar nessa discussão. O que é certo é que, cada vez mais, o artista é produtor de mercadorias.
CC: Esteticamente, isso se reflete em quê?
PH: Eu acho que o artista se transformou num financista, ele tem de entender das finanças da sua produção.
CC: Isso significa buscar o que dá dinheiro?
PH: Sim ou não. Tem artistas que produzem muito pouco e que sabem que, quanto mais rigor tiverem, mais sua obra se tornará objeto de desejo. Eu não quero moralizar a questão. Quero dar à questão uma dimensão social. Insisto que é importante avançarmos para maiores níveis de formalização do mercado.
CC: Há distorção nos preços de jovens artistas?
PH: Depende da ótica. Trata-se de um mercado de demanda. Além disso, estamos falando de gosto e, muitas vezes, do gosto do ignorante, do novo-rico, o gosto do brilhareco, do cara que compra assinatura.
CC: Esse seria o gosto dominante hoje?
PH: Acho que é uma mistura. O mercado de arte brasileira vai tentado alcançar uma maturidade.
CC: O que é essa maturidade?
PH: Compreender que o mercado é uma força dinâmica do sistema cultural. O mercado de arte é mais maduro quando busca encaminhar determinadas obras especiais para coleções públicas ou privadas especiais e quando vai sendo mais lúcido, nas estratégias políticas de circulação.
CC: Mas quando a Adriana Varejão é mais notícia porque casou do que porque abriu uma exposição ou quando a Beatriz Milhazes se torna um hit das colunas sociais não estamos na contramão dessa lucidez?
PH: Trata-se de duas artistas que, pela maneira como pensam a vida, concedem isso. Mas é preciso dizer que ser reconhecida pelo casamento não é a preocupação da Adriana Varejão. Nesse sentido, elas são muito mais resposta às demandas do que produção de demanda, entende?
CC: Não... Significa que a Adriana, por ser bonita e ter casado com o (colecionador) Bernardo Paz, atende a um desejo desse gosto da elite?
PH: Da elite e da mídia de futilidades. A obra da Adriana Varejão mudou depois do casamento? Não. Ela não expôs na Fundação Cartier depois do casamento. Isso é muito mais sintomático de um sistema de arte querendo produzir um estrelato e de um processo de imprensa onde o pensamento crítico cede lugar ao mundanismo do que de uma busca da artista.
CC: Mas ajuda a vender a obra...
PH: Como diz o Mário Pedrosa, a arte é como um presunto qualquer no sistema capitalista. O artista produz bens. Mas é fato que essa rarefação da crítica começa a colocar a arte brasileira num estado de letargia que pode empurrá-la para o tipo do cânon contemporâneo, com photoshop, conceitualismo simplista etc. De um lado, temos esse sistema e, de outro, a Lei Rouanet, que é uma espécie de colesterol da cultura: está com muito peso e acha que isso é sinal de saúde. A lei deformou o museu como espaço de civilização. Ela raramente é aplicada em etapas fundamentais, como a conservação. O patrocinador gosta dos eventos, mas os eventos deveriam ser, no mínimo, precedidos de pesquisa. O preocupante é que, enquanto isso tudo acontece, o brasileiro desaprende a olhar.
Jóia rara entre nós a franqueza, coragem e clareza de posições de Paulo Herkenhoff. A abordagem da entrevista pode perfeitamente servir de reflexão para todas as áreas da cultura e da política. Ele sabe, como dizia nosso grande dramaturgo, que "...não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo desespero de viver." (Sylvia Rosalem)
Posted by: sylvia rosalem at outubro 28, 2006 11:40 AM