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julho 17, 2006
Na pista de impressões radioativas, de Bianca Tinoco
Na pista de impressões radioativas
Matéria de Bianca Tinoco, originalmente publicada no Caderno B do Jornal do Brasil, no dia 24 de junho de 2006
Alice Miceli
A artista visual de 26 anos prepara-se para captar imagens geradas pela radioatividade em Pripyat, cidade deserta na qual estão os escombros da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia. Vinte anos após o desastre, por sua conta e risco, a carioca se propõe a captar imagens. Não por meio da luz, mas através da radiação emitida por quase toda a matéria existente no local, provavelmente intolerável para o homem nos próximos 300 anos.
Ela não tem certeza se precisará ou não usar roupas especiais, até onde conseguirá caminhar, a que instâncias de governo pedirá autorização. Não decidiu ainda qual é a exata aparência do equipamento necessário para atingir seus objetivos. Mas Alice Miceli, artista de 26 anos, tem uma certeza: em agosto, vai produzir imagens inéditas de Pripyat, na Ucrânia, a cidade deserta na qual estão os escombros da usina nuclear de Chernobyl.
Muitas fotos, ela sabe, foram produzidas no local desde a explosão do reator responsável pela morte, em 26 de abril de 1986, de pelo menos 30 mil pessoas (estimativas arriscam até 300 mil mortos em decorrência do acidente). A carioca, entretanto, é a primeira a propor a captação de imagens por meio da radiação emitida por quase toda a matéria do lugar, cuja reocupação provavelmente será impossível nos próximos três séculos.
A motivação de Alice para visitar o lugar veio da indignação de imaginar uma cidade evacuada em 48 horas. Milhares de lares e lembranças foram deixados para trás e são mantidos em suspenso pela radiação há 20 anos.
- Meu interesse é o de lidar com situações políticas ou extremas - diz Alice, especializada em história da arte e arquitetura pela PUC-RJ, aluna desde 2003 do teórico de arte Charles Watson e professora de videoarte no Ateliê da Imagem, na Urca. - Pripyat é uma cidade fantasma, há um mal invisível contaminando tudo. Eu achava a situação absurda. E comecei a pesquisar a radiação, os modos de capturar essas imagens do invisível. Uma vez solidificada a idéia de produzir superfícies impressas pela radiação, Alice passou a investigar até que ponto é possível obter em chapas radiográficas um resultado próximo ao da fotografia.
A artista partiu da semelhança encontrada entre as ondas de luz e as de radiação e planejou os primeiros esboços de uma câmera pin-hole (uma caixa com um pequeno furo capaz de captar e fixar reflexos de luz) específica para raios gama. Depois das visitas e registros no local, ela pretende apresentar ao público as placas nas quais for registrada a radiação. A principal fonte de gama em Pripyat é o Césio 137, o mesmo do acidente que abateu Goiânia em 1987.
- Equipamentos para captação de radiação à distância nunca foram desenvolvidos porque não há aplicação médica para eles. Não significa que não possam ser feitos. Auxliada por cientistas, Alice criou o protótipo de uma câmera (abaixo) capaz de captar imagens da radiação em Chernobyl
Alice começou as pesquisas sobre radiação com seu tio, o cosmólogo e físico teórico Mário Novello. Por indicação dele, ganhou acesso ao Instituto de Radio-Proteção e Dosimetria (IRD), no Recreio dos Bandeirantes. Lá, estruturou o primeiro protótipo das câmeras que levará para o local, cinco no mínimo. É uma caixa de alumínio blindada por outra de chumbo (material capaz de barrar a penetração da radiação), vedada à luz.
Cada câmera será depositada defronte da "paisagem" que a artista quiser captar, de dois a três dias. As chapas a serem usadas no interior das câmeras, desconfia Alice, serão parecidas com as de gamografia, técnica industrial na qual se verifica pelo raio gama possíveis fissuras na fuselagem de aviões, numa espécie de radiografia para enormes superfícies.
- São as únicas capazes de agüentar a alta concentração de gama no local - explica. A escolha dos locais ideais para as câmeras dependerá da medição da intensidade da radiação - algo parecido com o que os fotômetros fazem com relação à luz para a fotografia. Ela será feita por um aparelho que Alice, brincando, chama de gamômetro. - Os engenheiros e investigadores ligados à medicina nuclear pensam que eu sou maluca - ri a artista. - Mas os pesquisadores de lá acham o máximo desenvolvermos uma tecnologia sem aplicação científica. A ciência, como a arte, tem esse toque empírico: apenas 1% dos experimentos científicos desenvolvidos tem uso. Os cientistas não consideram nada impossível de antemão. O projeto ganhou no fim do ano passado a bolsa de fomento à produção do 6º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia e agora é conduzido com o dinheiro da premiação. A viagem deve durar 15 dias. A equipe prevista para partir rumo a Pripyat, com base na cidade de Kiev, a 100 km do local, inclui apenas a artista e o fotógrafo Alexandre Lima.
Alice, que formou-se em cinema na Ecole Supérieure d'Etudes Cinématographiques (ESEC) de Paris e já trabalhou como assistente de produção em cinema, cuidará do posicionamento das pin-holes e captação das imagens pelos raios gama. Lima fará fotos das paisagens "gamografadas" e registrará o processo em vídeo.
- A referência fotográfica será fundamental para estudarmos as imagens depois - avalia a artista. Colaborou Ana Paula Amorim
Ciência e política permeiam trabalhos anteriores de Alice, na Polônia e no Camboja
A pesquisa sobre Chernobyl não é o primeiro trabalho de Alice Miceli com conceitos científicos, embora seja o mais arrojado. Uma das primeiras obras dela foi Ín terim: um auto-retrato (2003), sobre DNA. No vídeo, seu rosto se transforma no de sua irmã gêmea, Carolina, mestre em literatura inglesa.
Outra série, mais recente e com dois trabalhos expostos na mostra Paradoxos Brasil - Programa Rumos 2005-2006, no Paço Imperial, é Dízima periódica. A artista procura transpor para o vídeo o conceito matemático de números infinitamente fragmentáveis. Em 99,9... metros rasos, ela diminui à metade da metade ad infinitum o tempo de uma corrida de 100 metros rasos. Em 14h54m59,9...s, multiplica o último instante do fotógrafo Robert Capa, fundador da agência Magnum. A obra é um jogo com a foto derradeira dele, do horizonte de um campo minado, antes de Capa explodir com uma mina em 1954, na Guerra da Indochina. O vídeo dura o tempo de Capa entre o clique e a morte.
Trabalhos no exterior também não são novidade para Alice, que faz ano que vem um estágio no centro de pesquisa Fabrica, da Benetton, na Itália. Em 2004, ela conseguiu um financiamento de Anthony Hayward, um dos diretores da rede de comunicação NewsMarket, em Nova York, para produzir o trabalho 88 de 14.000 no Camboja. A obra apresenta retratos de 88 dos 14 mil mortos em uma prisão de extermínio no período do Khmer Vermelho, nos anos 70. As horas ou dias decorridos da entrada na prisão, quando era tirada a foto, até a execução são representados pelo período equivalente no qual cada imagem é projetada em uma parede de areia.
Durante residência na Cable Factory, em Helsínque, na Finlândia, Alice criou o vídeo Little white house (2005), também exposto no Paço. Ele mostra o trajeto do campo de concentração de Chelmno-nad-Nerem, na Polônia, ao vilarejo mais próximo. A estrada é curta, mas o vídeo a distende ao longo de 40 minutos. É a viagem para casa, ampliada instante a instante pela intensidade da volta, experimentada por apenas dois sobreviventes entre os milhares de prisioneiros do local.