|
setembro 30, 2015
Entradas, de Adriana Amaral, por Carolina Soares
Entradas, de Adriana Amaral
CAROLINA SOARES
No trabalho Entradas, de Adriana Amaral, as portas, em escala real, estão fechadas. A frontalidade com que se apresentam parece recusar desvios ou intromissões de quaisquer outros elementos a lhes roubar à atenção. Nós, observadores, somos, portanto, defrontados com diferentes estilos, formatos e tamanhos, com uma série de singularidades que, no entanto, se impõem por meio de uma dimensão menos física e mais simbólica. Isso porque, embora não escape o interesse pelas características materiais de cada uma, essas mesmas características parecem assumir o papel de estimular a imaginação a ingressar em um universo que diz respeito à intimidade.
O enquadramento escolhido pela artista parece remeter ao de um retrato de grande escala, talvez um produzido por Thomas Ruff que ao solicitar ao retratado que permaneça inexpressivo e olhando diretamente para câmera, oferece uma imagem que, mais que mero espelho, se quer real, como se à fotografia fosse concedida tal capacidade. A suposta fisicalidade com que cada porta se apresenta, assim como os retratos de Ruff, parece querer alcançar algo para além do que está sendo mostrado pela imagem, mas o que uma porta, em sua banalidade, poderia oferecer? Por qual razão Adriana Amaral escolhe como objeto de interesse retratar “portas”?
Em 2010, ao visitar o município de Cássia dos Coqueiros, no interior de São Paulo, a artista deparou-se com antigas portas do colégio em que estudara entre seus 6 e 8 anos de idade. A partir dali, deu início a reflexões sobre a maneira como as memórias se constituem, como um único objeto é capaz de despertar as mais diversas lembranças. E, conforme foi fotografando, outros aspectos subjacentes surgiam: as portas, agora isoladas do todo arquitetônico, pareciam fechar em si segredos, cumplicidades, projetos, intimidades, histórias confinados no interior de algum lugar que deixara de existir, a não ser como recordação.
Entradas não deixa de ressaltar que a memória distingui-se do hábito, representando a conquista progressiva pelo homem do seu passado individual. Na antiguidade grega, a deusa Mnemosine, filha de Urano e Gaia, era aquela que protegia do esquecimento. Era a divindade vivificadora frente aos perigos do esquecimento que na cosmogonia grega aparece como o rio Lete que cruza a morada dos mortos, o Tártaro. Segundo a mitologia, as almas que bebiam das águas do rio Lete quando estavam prestes a reencarnarem-se, esqueciam sua existência anterior.
Na recuperação de experiências contra o esquecimento, o que um dia fora realidade não deixa de ganhar um viés ficcional revogando a linha fronteiriça entre fato e ficção. Embora a artista decida pela fotografia, ainda assim o potencial narrativo que cada imagem traz em si se torna capaz de uma invenção ficcional a ser contada agora pelo observador. Cada porta, uma história. Por certo, portas são instrumentos de acesso para algum lugar, mas, ao nos apresentar muitas, sem delas excluir as peculiaridades, a artista também aponta para o espaço interno tão comumente preenchidos por vidas, por memórias que ali ficam resguardadas (Afinal: “O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa da intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade?” assim investiga Gaston Bachelard).
Mas as portas estão fechadas. Se abertas talvez fossem intrusivas, pois o acesso ao espaço íntimo impõe limites muitas vezes intransponíveis. As fachadas das portas autorizam a imaginação inferir sobre a casa, mas apenas inferir, afinal, ainda há fronteiras entre o público e o privado que não se deixam facilmente banalizar.
Carolina Soares é graduada (1999) em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo pela Univesidade Federal do Ceará. Especialização (2001) pela Falmouth College of Arts, Inglaterra, na linha de pesquisa Photographic Metaphor and Culture. Mestre (2006) pelo programa História, Teoria e Crítica da Arte da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com a dissertação "Coleção Pirelli Masp de Fotografia - Fragmentos de uma memória". Doutora (2011) pela mesma instituição onde desenvolveu a tese "Uma bricolagem virtual infinita: A representação do indígena no trabalho de Claudia Andujar (1960/ 70)". Integra desde 2004, o Grupo de Estudos Arte & Fotografia da ECA USP, coordenado pelo Prof. Dr. Domingos Tadeu Chiarelli. De 2006 a 2008, trabalhou no Museu de Arte de São Paulo. Integrou a equipe de pesquisa da 28° Bienal de São Paulo. 2010 a 2011, coordenou, junto com Thaís Rivitti e Marcelo Amorim, o Ateliê397. Dentre as curadorias estão: Fotografia em perspectiva: acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo. MAM-SP, 2007; Realidades imprecisas, Sesc Pinheiros, São Paulo, 2009; A 4°do Equador, Ateliê397, São Paulo, 2011; Ficções (individual de Nino Cais), Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza, 2012. É coordenadora de conteúdos da Base7 Projetos Culturais onde desenvolve projetos de pesquisa em cultura, museus e artes visuais assim como projetos editoriais.
setembro 27, 2015
Relevos: Olha-Gesto-Objeto por Paulo Venancio Filho
Relevos: Olha-Gesto-Objeto
PAULO VENANCIO FILHO
Luciano Figueiredo, Galeria Leme, São Paulo, SP - 02/10/2015 a 07/11/2015
Mais uma vez, esses Relevos recentes de Luciano Figueiredo atestam uma das mais contínuas adesões ao construtivismo, seja na história ou na atualidade artística. Obra de uma coerente inventividade, profundamente convencida da relevância presente e ainda inesgotada da aventura abstrato-geométrica brasileira, Luciano coloca em ação aquela atitude experimental que nos deu tantas obras decisivas e fundamentais, identificadas logo à primeira vista.
Diante deles – Relevos – ocorre, de imediato, a indagação: relevo, pintura ou objeto? Ou todos os três. Pintura porque se coloca na parede; relevo porque se desdobra da parede, objeto porque impõe sua materialidade própria além da parede. Invenção seria certamente como denominá-los com maior precisão. Sendo invenções estabelecem sua natureza, processo e estrutura únicas. E exigem aquela artesania própria, rigorosa; técnica e exclusivamente concebida para a execução impecável e a clareza ímpar que construtivismo exige. Mais uma vez é o make it new – a invenção -, que se faz e se renova.
Inevitável é a referência que esses Relevos fazem ao jornal – provavelmente o objeto central da longa investigação e pesquisa visual de Luciano Figueiredo. Jornal: um daqueles objetos mais comuns e banais, indispensável ao cotidiano do indivíduo urbano moderno. Não há quem não viva essa experiência integrada que dá inicio ao dia e o faz quase sem se dar conta de tão óbvia e rotineira. No abrir, dobrar, folhear, fechar – gestos em seqüência –, adentramos o espaço de contato com a vida do Mundo. Neles – no abrir, dobrar, folhear, fechar -, a vida das formas informa a imediaticidade significativa da qual os Relevos se apropriam e trans-formam inventivamente, indo muito além da referência inicial – o jornal é ultrapassado.
Aí está uma espécie de síntese entre obsessão artística particular e experiência comum – o jornal como coisa, objeto, matéria visual, também “matéria” palpável, viva e ativa. Objeto diário, portanto objeto unidade de tempo e, ao mesmo tempo, espaço racional da ordenação textual-visual – objeto e espaço, matéria tátil e visual. Daí também, e por contigüidade, sua proximidade com o livro; este que foi outro sistemático objeto das pesquisas construtivas e tão significativas, especialmente no contexto da arte brasileira. Como forma que se renova tal o jornal, a cada dia, esses Relevos estão em íntima contigüidade e continuidade com o Livro do Tempo de Lygia Pape no modo como ambos expõem abstrato geometricamente a particularidade formal dos acontecimentos diários – tempo/vida e espaço/tempo.
A tela crua, a lona branca intacta é o suporte e espaço – tal como o papel jornal – dos acontecimentos e imediato impacto visual dos Relevos. Quadrados, retângulos triângulos, verdes, vermelhos, amarelos, dominam o espaço superpondo-se, entrecruzando-se, afastando-se, aproximando-se, completando-se e revelando a lógica estrutural do corte e do recorte, da colagem e da montagem. Construção ou desconstrução? Montagem ou desmontagem? O gesto corta e recorta cor e espaço e nele se percebe a precisão viva da faca/estilete nos cortes e recortes, na soma ou subtração das telas de lona. O que no jornal é o papel, no relevo é a tela crua e o dobrar e desdobrar são gestos que vêem do jornal – o desdobrar implícito em que cada trabalho parece já anunciar um outro tal é a fluência construtiva que os anima.
Nesses Relevos os acontecimentos abstrato geométricos – retângulos, quadrados, triângulos, as cores monocromáticas – ganham a forma do impacto e o impacto da forma e a obra é o resultado de uma calculada e refinada “edição”. A imediaticidade da forma construtiva é isolada na sua máxima intensidade e o formato requer uma atenção especial o que explica o uso constante do formato diamond tão utilizado por Mondrian. Se é assim; cada Relevo é como um momento de transição para um outro, tal um fotograma de seqüência cinematográfica. Luciano ata então duas vertentes históricas da experimentação construtiva; o cinema e as artes gráficas. Assim, mais uma vez, me parece, esses Relevos também apontam e se encontram num possível e provável encontro (e continuidade poética) entre os Bichos de Lygia Clark e o cinema – entre a ação tátil e o movimento visual.
Na ação de folhear-ler embutida nesses Relevos, os gestos e o olhar se complementam – o olhar-gesto é também um interagir e manipular. Essas idas e vindas pelos acontecimentos diários se tornam uma operação de caráter abstrato, finamente formal, infundida de vida. O diálogo entre cor, elementos geométricos e formato mostra com exuberância a fluência de anos de exercício experimental (da liberdade) do dialeto construtivo. Das possibilidades vividas do cotidiano e das ilimitadas possibilidades do dia-a-dia da invenção. Nada mais, nada menos do que um diário da vida construtiva.
setembro 18, 2015
Do outro lado do espelho: Adrianna eu e os outros por Ivair Reinaldim
Do outro lado do espelho: Adrianna eu e os outros
IVAIR REINALDIM
O que vemos diante de nós? Espelhos. Não apenas isso. Algo a mais, certamente. Espelhos são objetos que concentram em si o fascínio humano pela imagem refletida, mas acima disso, guardam uma dimensão simbólica, a partir da reflexão que são metaforicamente capazes de despertar. Olhar nossa própria imagem numa superfície refletidora é, em certa instância, repetir o gesto de Narciso. Não em sua literalidade, no ato de apaixonar-se por sua própria imagem, como um Outro, mas em seu caráter analítico, no reconhecimento desse “outro” como algo do qual fazemos parte, mas que é diferente de nós, justamente por representar uma natureza inconsciente. Assim, a fixação de Narciso em sua imagem é o índice de seu processo de autoconsciência. Como nos fala Merleau-Ponty, o espelho torna-se dispositivo por meio do qual um “eu” transforma-se em “outrem” (e vice-versa), misturando corpo objetivo e corpo fenomenal, uma vez que a imagem especular é extensão da relação subjetiva e sensorial com nosso próprio corpo e deste com o mundo.
Mas aqui, diante de nós, não há apenas espelhos e reflexos, uma vez que toda obra não se reduz a seu objeto ou ao fenômeno que este produz. A obra possui igualmente uma dimensão simbólica, que pode ou não coincidir com a do objeto. Vejamos, então. O conjunto de trabalhos expostos – obras, em sentido estético – possui na corporeidade e na função refletidora do espelho sua substância poética. Esses trabalhos constituem um recorte da produção da artista Adrianna Eu, que já há algum tempo utiliza-se de espelhos, vidros e cristais, entre outros materiais, para corporificar certos aspectos de sua investigação artística. Esses sentidos atrelados à capacidade refletidora/reflexiva do espelho parecem assumir uma função tautológica ampliada no trabalho de alguém que possui o pronome “eu” em seu nome artístico. “Eu”, como afirma Adrianna, não se fecha em si, mas tem implícito um “outro”, uma identidade que só pode se constituir através de uma relação de alteridade. Para a artista, essa dimensão de troca, de contiguidade, é fundamental.
Entre os trabalhos que Adrianna Eu apresenta, há O Outro, antigo espelho de mão, sem prata, cuja imagem não é refletida, transpassado por um furo e uma linha – ele inaugura e sintetiza literal e metaforicamente a percepção do espelho não como uma superfície opaca, mas transparente, como um “através”, que mais do que repetir/refletir, mostra aquilo que não se poderia ver, o que está do outro lado. Em Dourados Como a Ilusão, um conjunto de estojos de maquiagem fixados em espelho maior reafirma a identidade fragmentada frente nossa busca por construção de determinadas imagens-disfarces, máscaras cotidianas. Na série Mergulho de Narciso, espelhos de mão ganham ares barrocos, reproduzindo fantasiosamente o instante em que a superfície especular se modifica após o mergulho, através do deslocamento da água. Nesse caso, os espelhos tornam-se objetos delirantes, cujos reflexos transformam-se e modificam a imagem daquele que se coloca diante deles. Em comum nesses trabalhos, o uso de objetos antigos, desgastados pelo tempo, muitas vezes com marcas, falhas, rachaduras – o que aparece potencializado em Autorretrato da Artista, quebra-sol espelhado, decorado com gravação de elementos florais e a presença da expressão “Hei de Vencer”: embora o estado da peça reforce sua aparente obsolescência enquanto objeto de uso, a inscrição direcionada ao futuro afirma a constância projetiva de um desejo compartilhado.
Por fim, incluem-se os trabalhos inéditos da série Lago dos Cisnes, imagens fotográficas de forte poder simbólico e narrativo, guardando uma dimensão fabular. Novamente as superfícies de espelhos emoldurados induzem-nos a pensar na água e no reflexo fragmentado, mas agora, posicionados no chão escuro da floresta, repleto de folhas secas, refletem o céu e a copa das árvores, mostram-nos aquilo que o enquadramento da imagem fotográfica não nos permitiria ver. Como na história homônima, em que uma princesa é transformada em cisne, a identidade da menina em pé sobre esse lago figurado encontra-se velada, ao mesmo tempo em que, ao encobrir seus olhos com as mãos, diferentemente de Narciso, parece evitar o confronto direto com alguma imagem mais específica. O espelho em muitas culturas é um instrumento de adivinhação, pois permite ver para além da realidade aparente, o que nos possibilitaria pensar na natureza do encontro que não é mediado pelos olhos, mas pela extensão do próprio corpo. Aquilo que foi visto ou deixou de ser, só pode ser fruto de uma reflexão dialógica da personagem com seu observador, o espectador, prostrado diante de tais imagens. Eis justamente o momento em que somos confrontados, tal qual Narciso, com esse Outro, perante nossos olhos. Aquilo que a imagem reflete caberá a cada um compreender.
setembro 17, 2015
Adaptável ao espaço que as palavras ocupam por Liliane Benetti e Jimson Vilela
Adaptável ao espaço que as palavras ocupam
LILIANE BENETTI e JIMSON VILELA
Leio com os cotovelos apoiados sobre a mesa. Coço a cabeça e olho para cima quando a leitura fica vertiginosa. Vejo livros à minha frente, à esquerda e à direita. Certamente há livros atrás de mim.
Estou numa clareira ou qual é o nome do lugar dentro de uma biblioteca onde não há livros?
Nessa altura do pensamento, já parei de ler. Apenas observo as estantes repletas de livros. Parecem fechadas mas, aos poucos, meus olhos percebem frestas que deixam ver a estante seguinte e, com sorte, a próxima, assim como o olho que se acostuma com a transparência do branco do papel que aparece por entre as letras.
Levanto-me e caminho entre as estantes e esses espaços se proliferam. Pergunto-me sobre isso. O raciocínio me leva à conclusão de que livros não são como tijolos, objetos de forma definida. Livros são adaptáveis ao espaço que as palavras ocupam.
Adaptável ao espaço que as palavras ocupam, proposta que Jimson Vilela traz ao Piso Flávio de Carvalho,expande-se como um corpo escultórico em proliferação: as páginas de um livro alastram-se pelo lugar, escalam estantes e aceleram-se em quedas. Emaranhadas no chão, as folhas brancas parecem retomar o fôlego e continuar o caminho do piso às prateleiras. No ímpeto de atravessar o espaço e preencher em simultâneo as estantes, o volume indisciplinado e arrítmico oferece um contraste imediato com a distribuição sistemática das fileiras de livros avistadas no piso inferior, onde está localizada a biblioteca do CCSP.
A distribuição de espaços em uma biblioteca é dada por um sistema de catalogação por afinidades de assunto e refere-se, assim, ao conteúdo do livro e não ao ato de preencher prateleiras. São deixados, por conta disso, espaços vazios em algumas estantespara que possam vir a ser ocupados à medida que a biblioteca adquira novos volumes. Na lógica da biblioteca, o crescimento da coleção é algo previsto na própria lógica da biblioteca e quando um assunto extrapola em livros o espaço originalmente destinado a ele, sua seção é remanejada.
Se, por um lado, as estantes de ferro são reunidas ali para duplicar o tipo de “espacialidade esquadrinhada” comum às bibliotecas, por outro lado, não há em Adaptável ao espaço que as palavras ocupam uma distribuição sistemática do espaço, ao contrário disso, o que o trabalho realiza é uma ocupação que se apodera das estantes nas quais infere-se que o mesmo volume de papel seria contido se estivesse subdividido em centenas de livros. Trata-se, porém, da distensão de um único livro em branco de 160 páginas com 300 metros de comprimento. Ao trabalho de Jimson Vilela não interessa propriamente o conteúdo mas o espaço onde o conteúdo é depositado. As páginas alongadas que se entremeiam desdobram o espaço interno do livro enquanto uma potência capaz de rivalizar com o espaço arquitetônico.
Em 2014, visitei o Centro Cultural São Paulo durante o período de montagem de uma das mostras e me deparei com o espaço completamente aberto, sem paredes, e pensei nas potencialidades desse espaço livre das paredes expositivas que, por sua vez, são o elemento que configura aqueles espaços enquanto lugares destinados a exposições.
Aproveitei para caminhar pelo espaço até o momento em que percebi que o lugar onde estava era uma “passarela” sobre a biblioteca. Desci e confirmei minha impressão. Comecei a imaginar os pavimentos do CCSP enquanto nichos de uma estante. Certamente, essa imagem foi deflagrada pelas estantes de livros da própria biblioteca do CCSP e também pelos vãos que marcam aquela arquitetura.
Quanto vale a arte contemporânea? por Tatiana Ferraz
Quanto vale a arte contemporânea? [1]
TATIANA SAMPAIO FERRAZ
Artigo originalmente publicado na revista Novos Estudos, N. 101, sobre arte, valor e mercado, em março de 2015.
RESUMO
O artigo analisa o aquecimento do mercado de arte contemporânea nas últimas décadas no Brasil à luz das recentes transformações dos negócios, cada vez mais pautados pelo capital financeiro. No cenário de financeirização generalizada, é preciso repor o problema da natureza da arte – como mercadoria e como patrimônio cultural, oscilando entre o público e o privado.
PALAVRAS-CHAVE: arte contemporânea; mercado de arte; valor; renda monopolista.
ABSTRACT
The article analyzes the heating of the contemporary art market in the last decades in Brazil through the recent transformations of the business which is increasingly oriented by financial capital. In general financialization scenario, it is necessary to reset the problem of art – as a commodity and as a cultural heritage, oscillating between the public and the private.
KEYWORDS: contemporary art; art market; value; monopoly rent
1. TRANSFORMAÇÕES NOS MECANISMOS DE CIRCULAÇÃO ECONÔMICA DA ARTE CONTEMPORÂNEA E SUAS IMBRICAÇÕES NO CIRCUITO BRASILEIRO
De acordo com o estudo sociológico de Raymond Moulin sobre o mercado de arte, publicado em 1967, [2] os negociantes de arte inserem o artista na economia social transformando os valores estéticos em valores econômicos. Em termos práticos, isso implica a mobilização de outros agentes culturais legitimadores – instituições, museus, críticos de arte, curadores, historiadores, museólogos e especialistas da área em geral – que, junto com os negociantes, formam redes complexas de circulação de capital econômico e simbólico em torno da produção artística.
Sabe-se que o mercado de arte não é algo novo – há mercados muito maduros, como são os casos dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França –, porém o forte incremento nos negócios das últimas décadas chama atenção diante de um cenário de crise econômica mundial (do capitalismo tardio), prefigurada na bolha imobiliária norte-americana, com a consequente desestabilização do sistema bancário naquele país e seu efeito dominó no mundo. Além disso, as mudanças econômicas do capital global implicaram a entrada de novos protagonistas no mercado – como é o caso do gigante chinês (e o seu dinâmico mercado secundário) e da arte brasileira (e sua crescente internacionalização).
O artigo procura analisar as raízes do aquecimento do mercado de arte dos últimos anos num cenário global de crise – principalmente da produção contemporânea, e com especial interesse no Brasil –, à luz das recentes transformações dos negócios, cada vez mais pautados pela lógica do capital financeiro. Para tanto, recuperar o contexto dos anos 1970 parece ser fundamental; ali vimos o despertar do mercado de arte no Brasil, que coincidiu com o início dos processos de financeirização do capitalismo (criação de excedentes de capital fictício dentro do sistema bancário) [3].
A financeirização da cultura e, por extensão, da arte é o cenário encontrado para se repor o problema da natureza do objeto artístico – como mercadoria (produto) e como patrimônio cultural (obra). O horizonte da arte se coloca na notória dialética entre o público e o privado. Na condição de mercadoria, a arte e suas características “especiais” possibilitam um incremento da exploração econômica que vai de encontro às mais recentes estratégias utilizadas pelo mercado de arte – o leilão, a feira e a galeria.
2. O MERCADO: O INCREMENTO DOS NEGÓCIOS E A ARTE CONTEMPORÂNEA
De modo geral, segundo o sociólogo Moulin, o mercado de arte se divide em três segmentos: o de “cromos” ou “quadros por dúzia”, que geralmente são obras de caráter figurativo, respondem aos imperativos do gosto majoritário e aproximam-se dos bens correntes de consumo, não artísticos; o de arte “antiga”, cujos valores estéticos e financeiros estão mais que estabilizados e cujas razões para flutuações residem no campo da autenticação e da expertise; e o de arte “contemporânea”, caracterizado pelas incertezas quanto aos valores estético e financeiro [4]. Sendo essas últimas investimentos de alto risco, implicam, por sua vez, altos lucros.
O crescente interesse pela arte contemporânea pode ser mensurado pelas vendas do mercado internacional nos últimos anos. De acordo com o relatório encomendado pela European Fine Art Foundation (que promove a Tefaf [5]), publicado em 2013, 43% das transações globais de obras de arte feitas em leilões no ano anterior correspondem à arte contemporânea, seguidas por 30% de vendas de exemplares modernos. No Brasil, os resultados da pesquisa setorial Latitude 2014, realizada pela Abact (Associação Brasileira de Arte Contemporânea) indicaram um aumento do percentual de artistas que entraram pela primeira vez no mercado em 2013 em relação ao ano anterior [6].
A pesquisa da Tefaf destaca que o aumento da riqueza per capita e, em especial, do número de HNWIs (high-net-worth individual – definidos como aqueles que possuem alto poder de investimentos financeiros, superior a 1 milhão de dólares) levou proporcionalmente ao maior consumo de bens de luxo, aí incluída a arte [7]. O que explicaria, por sua vez, o fenômeno HNWI? O paralelo entre as razões que atraíram os investidores no mercado de arte e a expansão do mercado de ativos é inevitável.
As análises de David Harvey acerca da crise do capitalismo em 2007 mostram que os investimentos da classe rentista nas últimas décadas foram deslocados de uma instância real em direção a uma abstração [8]. No período conhecido como pós-modernidade, o excedente do capital industrial, que antes era reinvestido nas suas próprias empresas, é deslocado para o mercado de ativos, que oferece maiores lucros e mais rápido. Assim, os investimentos de alto risco na bolsa de valores transformaram bens materiais em papéis. O mercado de arte também atraiu esse excedente, uma vez que a sua mercadoria, tão especial, se mostrou um negócio altamente rentável.
No relatório europeu de 2013, os economistas dedicaram-se a estudar os mercados emergentes, inclusive os países do BRIC (e pela primeira vez o Brasil), que apresentaram uma melhor reação aos momentos de crise do que os mercados “maduros”. O Brasil obteve 1% das trocas globais, enquanto a China movimentou 27% do mercado. No ranking mundial, Nova York e Londres lideraram as transações do mercado de arte, somando 64% das importações e 62% das exportações, respectivamente.
Segundo a economista Clare McAndrew (à frente da pesquisa no Brasil), apesar do poder de compra expressivo dado pelo aumento de colecionadores ricos locais – que, por sua vez, explica o aumento da participação do país no mercado global –, o Brasil ainda engatinha no desenvolvimento dos negócios, se comparado ao “bric” chinês [9]. Para os negociantes, um dos principais entraves são os altos impostos de importação e exportação. Para a economista, outro sinal é a pouca expressividade do mercado secundário no balanço final. Se a China movimenta 70% das suas transações em leilões, aqui as casas de leilão representam apenas 21% das vendas. A liquidez do mercado chinês é bem superior, a ponto de obras chegarem a circular quatro vezes no mercado em menos de dez anos. Não à toa, o mercado de falsificações vem crescendo enormemente na China, chegando à bizarrice de artistas falsificarem suas próprias obras [10]. O que significa, então, medir os índices de desenvolvimento do mercado de arte hoje pela alta liquidez de obras comercializadas nas casas leiloeiras?
2.1. Os leilões
O leilão parece ser a representação per se do modus operandi do mercado no seu atual estágio – movido pela lógica do capital financeiro. A sequência de lances, desde o valor de referência [11] anunciado pelo leiloeiro no início do pregão, é o fascínio do jogo especulativo, e pode atingir preços nunca antes imaginados. O elemento “agora ou nunca”, presente na atividade leiloeira, alimenta ainda mais a disputa durante o pregão.
Na arte, o grau de exclusividade dá o tom das oportunidades de negócio, algo que Harvey notou igualmente no mercado internacional de vinhos – a exemplo do terroir francês [12]. Tal como o mercado de arte, o comércio de vinhos se apoia no seu caráter “especial” a fim de obter vantagens rentistas na venda de seus produtos.
Além do caráter exclusivista, próprio da qualidade da obra de arte, o economista Don Thompson levantou diversas estratégias utilizadas para valorizar o valor das obras nos leilões, cuja pesquisa foi publicada no livro O tubarão de 12 milhões de dólares, em 2008 [13]. Um dos exemplos apontados é a representação de um colecionador bilionário (geralmente russo ou chinês) por um negociante local, em que este dá altos lances para a obra de um artista a fim de valorizar a coleção pessoal do representado (que, desse modo, preserva seu anonimato). Da mesma forma, marchands também dão lances em seus próprios artistas representados, e tal valorização induz ao aumento dos preços em outras vendas do mesmo artista – é o que eles chamam de “proteção do estoque” [14].
2008 é o ano do célebre leilão de peças de Damien Hirst, na casa londrina Sotheby’s, onde o artista pôs 223 trabalhos à venda, subvertendo a própria ideia do mercado secundário ao prescindir de consignatários e, desse modo, expondo a artificialidade da estrutura vigente. A estratégia de Hirst foi concebida como uma “performance”, comenta Cildo Meireles em entrevista concedida a Angélica de Moraes. Cildo lembra que, ironicamente, o artista embolsou rios de dinheiros um ano antes de o banco norte-americano Lehman Brothers quebrar [15]. Tal como o colecionador e o marchand, aqui o artista tratou de especular com suas obras ao pedir a amigos que dessem altos lances no primeiro dia, criando um fervor competitivo e contribuindo para a bolha especulativa de seus “ativos”.
“Isso é negócio, não história da arte”, esclarece Brett Gorvy, presidente e representante de arte contemporânea da Christie’s. Nos últimos anos, as casas de leilão dedicaram-se a incrementar o aparato comercial pré-leilão. Impressão de catálogos de primeira linha, dúzias de jantares para angariar comitentes e licitantes promissores (especialmente colecionadores de patrimônio líquido ultraelevado, os UHNW [16]), encontros restritos com os especialistas das casas, mostras com sofisticado arranjo expositivo, entre outras estratégias [17]. Além disso, os especialistas das casas de leilão tornaram-se profissionais de marketing, analisam o comportamento de compra de um colecionador como sinal de sua aspiração a determinado grupo social. Uma das fontes de obras mais procuradas para alimentar os pregões, relata Thompson, são os grandes espólios, na esperança de renderem oportunidades exclusivas de venda.
A relação entre leilões e marchands parece complexa, ambos procuram criar novas condições privilegiadas de compra e venda e meios de potencializar o valor da obra à venda. Mas, ao mesmo tempo em que disputam a mesma clientela, os negócios dos mercados primário e secundário se retroalimentam. A pesquisa de Thompson indica que 30% das consignações das principais casas de leilão – Christie’s, Sotheby’s e Phillips de Pury – são provenientes de marchands. E vai além, algumas casas de leilão chegam a adquirir galerias a fim de atuar simultaneamente no mercado primário. É o caso da Christie’s, que adquiriu a Haunch of Venison em 2007, abrindo uma filial no vigésimo andar do Rockfeller Center [18].
Se os marchands, de um lado, reclamam que “as casas são promotoras comerciais ricas que só querem saber do valor e de seus clientes, sem se preocupar com os artistas”, de outro, os leiloeiros respondem que “o papel deles é aproximar comprador e vendedor, e assim promover o artista” [19]. De todo modo, fica a impressão de que no mundo dos leilões a voracidade do business é maior.
2.2. As feiras de arte
Diante do fascínio do jogo dos pregões e do aporte financeiro das casas leiloeiras, as feiras internacionais se mostraram uma ótima vantagem competitiva para os galeristas. Elas são capazes de atrair um grande número de colecionadores a um único local – arranjo eficiente, se lembrarmos que o grande alvo dos negócios são os milionários, que,embora tenham muito dinheiro, dispõem de pouco tempo.
Apesar de existirem desde as exposições universais de Paris, na era da globalização, as feiras internacionais se desenvolveram como um dos modos mais eficazes de aumentar as vendas das galerias – passaram de 55, em 2001, para 205 feiras, em 2008. No Brasil, o relatório Latitude 2014 mostra que as feiras cumprem um papel muito importante para as galerias nacionais: somam 40% das vendas [20]. No mesmo levantamento, 56% das galerias nacionais declararam que a SP Arte foi a feira mais rentável em termos de negócio.
Dentre as 205 feiras existentes no mundo, há nichos de mercado de diversas escalas, sendo as feiras mais “expressivas” em números absolutos de venda a Tefaf (Maastricht), seguida de Art Basel, Frieze (Londres), Armory Show (Nova York) e Art Basel Miami. A pesquisa de Thompson relevou que a participação nas cinco feiras pode significar um gasto anual de 300 mil libras para a galeria; porém, se o marchand não arcar com os custos, pode parecer que a feira não o aceitou, o que o levaria a perder sua credibilidade no mercado [21].
Tal como as casas de leilão, as feiras desenvolvem seus próprios mecanismos, sofisticados para incrementar seus negócios, desde a precificação do ingresso no evento – que pode aumentar quanto mais cedo o colecionador chegar ao evento e, assim, dispor das primeiras oportunidades de compra – até a exclusividade de acesso concebida a certos colecionadores do chamado UHNW antes mesmo da abertura do evento.
De modo geral, o incremento das vendas nas feiras representa uma mudança cultural na compra de arte, pois substitui as compras individualizadas – espacial e temporalmente – nas galerias pelo frenesi do vai e vem do público no evento. Em um único local, os estandes de venda das galerias oferecem com segurança o que há de mais “novo”. Além da praticidade, a feira significa um alto grau de conforto em termos de risco, uma vez que a simples quantidade de pessoas e de etiquetas “vendido” diminui as incertezas do comprador. É o que Thompson identifica como psicologia de rebanho: “[...] quando um colecionador não dispõe de informações suficientes para tomar uma decisão racional, ele se sente tranquilizado imitando o comportamento do rebanho” [22]. Comportamento semelhante se faz notar no mercado financeiro, com o uso do termo “bullish” para designar as ondas de compra induzidas – a figura do “touro” de Wall Street.
As feiras têm se tornado o meio mais importante para conhecer o que os artistas contemporâneos estão produzindo – mais do que curadorias feitas em galerias, museus e centros culturais. Tanto é verdade que somente 15% das vendas são feitas a instituições, nacionais e internacionais, o que colabora ainda mais para a privatização da arte – se você não for a uma feira, a oportunidade de rever uma obra vendida no evento é quase nula, a não ser no caso de alguns poucos colecionadores que têm consciência da dimensão pública de seus acervos privados. (Cabe citar a posição singular do artista Eduardo Berliner, que só autoriza a venda de suas obras pela galeria depois de terem sido expostas “publicamente”).
No Brasil, parece sintomático que a maior feira de arte ocorra no mesmo edifício histórico que a Bienal. Em 2013, a SP Arte teve recorde de público em relação ao anos anteriores, com 22.500 visitantes pagantes durante cinco dias (4.500 por dia). Comparativamente, a última edição da Bienal, em 2012, teve 520 mil visitantes não pagantes, com média diária de 5.500.
2.3. As galerias
Comprar em leilões e feiras se tornou um hábito para os investidores; as vendas em galerias parecem ter se restringido aos amantes da arte. O depoimento de João Carlos de Figueiredo Ferraz concedido a Angélica de Moraes exemplifica a diferença de comportamento: o colecionador prefere ver exposições nas galerias e se deixar “enamorar” por uma obra até decidir adquiri-la para sua coleção. Aos olhos de Ferraz, o mercado da arte não pode se restringir a investimentos. Para ele, sua coleção tem um valor inestimável, “é um valor cultural, é um patrimônio da humanidade, que vai muito além dessa ideia quantitativa do valor patrimonial” [23].
Uma mudança de perfil também pode ser notada do outro lado dos negócios. Grosso modo, em São Paulo, a partir dos anos 2000, boa parte dos novos marchands são homens provenientes do mercado financeiro (afinal, a bolsa de valores é um universo essencialmente masculino), enquanto diversas galerias importantes criadas entre os anos 1970 e 1980 têm por trás mulheres, as quais, no início, trabalhavam (afetivamente) motivadas a ajudar os amigos artistas a venderem suas obras.
De todo modo, as galerias não ficam longe nas estratégias de mercado para o incremento da valorização do valor da obra. Duas histórias ilustram os mecanismos distorcidos da precificação de um trabalho de arte: a primeira trata da escolha do colecionador “certo” para uma determinada obra (ora, se um marchand se recusa a vender uma obra porque fulano não é digno daquele objeto estético, o desejo por este é ainda mais fetichizado e o preço aumenta); a segunda se dá pelo controle da produção de um determinado tipo de trabalho que já se mostrou rentável ao mercado (é necessário controlar a venda da produção por meio da limitação de obras em circulação e da criação de “listas de espera”, o que não significa necessariamente que o artista tenha vendido todas as obras, mas que o marchand deve torná-las ainda mais cobiçadas a fim de valorizá-las).
2.4. O caso brasileiro
Uma das conclusões a que chegou a pesquisa Latitude 2014 [24] no Brasil foi “o crescente número de galerias que o circuito de arte tem absorvido nas últimas décadas, de 2 novas galerias na década de 1970 para 15, em 2010”. Das 45 galerias pesquisadas, 30% foram criadas na década de 2000; destas, 33% depois de 2010. Grosso modo, a “evolução” do mercado de arte no país desde os anos 1970 [25] equivale ao processo de profissionalização do meio, que se desenvolveu igualmente pari passu com as mudanças econômicas na geografia mundial do capital (a virada da financeirização).
O pós-guerra forçou o início da profissionalização do mercado de arte brasileiro, por meio das atividades de imigrantes recém-chegados ao país, tais como Giuseppe Baccaro, Arturo Profilli, Franco Terranova, Jean Boghici e Pietro Maria Bardi. Surgiram as primeiras galerias a representar arte moderna – Azkanazy, no Rio de Janeiro, e Domus, em São Paulo. Os anos seguintes foram mobilizados pela criação de grandes museus – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Museu de Arte Moderna de São Paulo. As primeiras bienais colaboraram igualmente para o fomento da produção artística, das trocas internacionais e dos negócios locais.
Mas é somente nos anos 1970 que o mercado de arte passa a crescer de fato. O pano de fundo no Brasil era tomado pela ditadura e pelo “milagre econômico”. Um dos protagonistas desse crescimento é José Paulo Domingues da Silva [26], dono da Galeria Collectio, que promoveu os primeiros leilões na cidade de São Paulo. A galeria tinha como seu credor o Banco Áurea de Investimentos, por meio do qual emprestava dinheiro a seus próprios clientes. Em 1973, suas ousadias financeiras acabaram – o banco declarou falência e a galeria fechou as portas [27].
O conhecido boom dos anos 1980 tem por trás a explosão da pintura no país. A jovem geração de pintores, tais como o grupo Casa 7, desde muito cedo participa das bienais de São Paulo. As razões do crescimento desse mercado também podem ser apontadas na própria qualidade singular da pintura – que mantém sua aura de obra única até hoje. Como tal, ela se mostra a expressão artística preferida entre os compradores do mercado de arte. Na última pesquisa Latitude, liderou as vendas nacionais em 24%, seguida por 23% de fotografias, 19% de esculturas, 11% de desenhos [28].
A internacionalização do mercado de arte brasileira se acelerou a partir da década de 1990, com o incremento dos mecanismos de intercâmbio de artistas por meio de programas de residência, o aumento da participação das galerias em feiras internacionais e a expansão das fronteiras da Bienal de São Paulo – em especial, da 24ª Bienal, com curadoria de Paulo Herkenhoff, que pela primeira vez atraiu um grande número de colecionadores estrangeiros [29].
Há quem diga que o momento atual do mercado de arte é preocupante. Depoimentos de alguns dos maiores galeristas paulistas por ocasião da SP Arte em 2014 relatam o desmanche de marchands que iniciaram suas atividades na última década e que não conseguiram manter suas portas abertas. Fica a pergunta: será que existe espaço para os amadores no grande round do atual capitalismo? Na escala econômica global, isso parece ir de encontro à lei dos mais fortes, das fusões e incorporações. Sabe-se que a chamada competitividade saudável do mercado apregoada nos primórdios do capitalismo industrial culmina hoje na era dos grandes conglomerados.
3. ARTE COMO MERCADORIA
O sociólogo Quemin recorre às análises de Raymond Moulin (1992) sobre o mercado de arte na França nos anos 1980 para demonstrar que o valor da arte se constitui a partir da articulação entre o mercado e o museu – a valorização de mercado e a valorização estética – que se apoiam uma sobre a outra. “A certificação do valor estético condiciona o preço, ainda que o preço seja, por sua vez, um dos critérios de certificação do valor estético” [30].
O relatório Latitude esclarece que, apesar dos números de colecionadores particulares serem maciçamente superiores em aquisições em 2014, se comparados às vendas para instituições, nacionais e internacionais (que somaram apenas 15% das transações), a pequena participação dos museus é fundamental para atribuir valor à obra [31].
Para Ana Letícia Fialho, os processos de formação do valor de uma obra de arte são ainda mais complexos, envolvendo pelo menos quatro instâncias fundamentais, cujas dinâmicas são distintas mas interrelacionadas: produção, reflexão crítica, institucional e mercado [32]. Em nota, Fialho alerta para o fato de que a proporção entre as quatro instâncias é variável: em sistemas de arte consolidados, há um equilíbrio entre elas, e todas ajudam a fomentar a produção; em sistemas menos consolidados, há uma desproporção entre as partes, e muitas vezes, como é o caso do Brasil, o mercado assume função preponderante na definição do valor diante da fragilidade institucional do circuito.
Atualmente, há diversos indicadores internacionais publicados na plataforma da internet que atualizam permanentemente índices de preços e valores de obras de arte, tais como Artnet, Artprice, Artfacts e o brasileiro Catálogo das Artes. Em geral, os índices são medidos pelos lances no mercado secundário. A sofisticação da formação do valor da arte como mercadoria e o crescente interesse do mercado pela produção contemporânea não escapam ao entendimento de que fazem parte dos processos recentes de “financeirização da cultura”.
A economia global nos ensina que o crescente mercado de arte não se deu pelo aumento do gosto pela arte – nem por parte dos colecionadores, nem por parte dos galeristas (lembrando que um contingente significativo de novos dealers paulistanos veio do mercado financeiro), mas pelos altos lucros a curto prazo. O exemplo paradigmático é o fenômeno “Milhazes”, que teve uma obra vendida em 2001 e leiloada em 2008 cuja valorização alcançou 6.000% [33].
Como bem durável, diferentemente de outras commodities, a arte permite que quem nela invista não corra o risco de ter seu patrimônio desvalorizado. São raras as depreciações de valor. Como diz Thompson, “Quando o martelo bate, o preço se transforma em valor e este se inscreve na história da arte” [34]. A arte vira um bem altamente rentável; por ter alta liquidez, passa a circular dentro da lógica do mercado de ações, cujos mecanismos são regulados tão somente pela lei de oferta e procura.
Constatados os mecanismos de financeirização, faz-se necessário entender as especificidades da arte como mercadoria e como elas determinam um modo singular de transações comerciais, potencializado na era do capital fictício. Sabemos que a mercadoria possui um duplo caráter, como valor de uso e como valor de troca. Um objeto só se torna mercadoria quando se insere no circuito das trocas. O mesmo acontece com o objeto de arte. Conforme observa Svetlana Alpers, “a obra [de arte] não tem nenhum uso prático a não ser como meio de estoque de valor e como expressão do valor na sua função de troca; é um valor criado ao repassá-lo; é, por assim dizer, uma valor partilhado” [35].
Um dos artistas que mais exploram a noção de valor na arte é Cildo Meireles. Exemplos não faltam:Árvore do dinheiro (1969), Projeto cédulas da série Inserções em circuitos ideológicos (1970), Zero dollar (1978), para ficar na década de 1970. O trabalho que mais esgarçou a fantasmática do valor e, em especial, do dinheiro parece ter sido Eppur si muove (1991), comissionado para a exposição inaugural do Museu de Arte Contemporânea de Montreal, Pour la suite du monde. O artista usou a verba de produção da obra (US$ 1.000) para efetuar 150 operações de câmbio – trocou por dólares canadenses, libras, francos e assim sucessivamente. Ao final restaram apenas CAN$ 4 em espécie e algumas moedas. Na exposição, Cildo apresentou três cofrinhos transparentes (em forma de porquinho) – no primeiro, os recibos do valor inicial; no segundo, as notas e moedas que tinham restado; e no terceiro, a mesma quantia como simulacro do troco dessas transações [36].
Ao revisitar os mistérios da mercadoria, Anselm Jappe indica que o valor tornou-se uma forma de mediação social (é puramente social), é a forma fetichizada do trabalho [37]. O dinheiro, por conseguinte, seria a forma visível do valor, uma abstração real.Nos leilões, o preço não tem mais nada a ver com o valor, é o deslocamento total e cada vez maior e representa a maioria das relações econômicas a partir dos anos 1980, financeirizadas. Como vimos, o excedente dos mais ricos passa a ser investido em ativos, capital cultural (como o surgimento de novos museus e a expansão de grifes museais e bienais de arte mundo afora) e mercado de arte.
3.1. Uma mercadoria tão especial...
“Como a condição de mercadoria de tantos fenômenos culturais se harmoniza com o seu caráter específico?” [38] Harvey contribui para desvendar os mistérios da mercadoria “arte” por meio de suas análises sobre a relação cultura e capital tecidas à luz do caráter muito “especial” da primeira. Segundo o autor, a cultura diferencia-se das mercadorias “normais” por sua qualidade especial, ela seria o plano mais elevado da criatividade e do sentido humano.
A economia da cultura teria, assim, se beneficiado do caráter especial de sua mercadoria para extrair os maiores lucros possíveis. A operação, segundo Harvey, se dá por meio da obtenção de renda monopolista.
A renda monopolista surge porque os atores sociais podem aumentar seu fluxo de renda por muito tempo, em virtude do controle exclusivo de um item, direta ou indiretamente, comercializável, que é, em alguns aspectos, crucial, único e irreplicável [39].
A categoria abstrata da renda monopolista, usada na economia política para cálculos financeiros, ajuda a entender analogamente como o vinho e a obra de arte tendem a ser cada vez mais valorizados pela sua singularidade. O leilão, por exemplo, tem o poder de fazer uma obra voltar ao mercado diversas vezes, e a cada vez especular sobre seu preço monopolista.
A contradição reside em que uma obra não pode ser tão especial assim a ponto de não poder ser precificada – mesmo que seu valor estimado seja assombroso, o mercado precisa garantir que haverá sempre meia dúzia de possíveis compradores para um autêntico Rafael. Uma segunda contradição é que necessariamente o mercado precisa ser competitivo e, portanto, precisa estimular suas negociações; ocorre que, quanto mais facilmente negociáveis se tornam os produtos, menos únicos e especiais eles são, o que significa dizer que menos eles proporcionam a base para a renda monopolista [40].
A unicidade da obra de arte é extremamente controlada pelos artistas e por quem os representa no mercado – mesmo que a técnica empregada no trabalho de arte seja reprodutível, como é o caso da gravura, da fotografia, do vídeo e até mesmo da instalação. Na entrevista de Cildo supracitada, o artista conta que quando resolveu começar a vendar suas instalações, nos anos 1990, ele passou a fazer uma tiragem de três exemplares para cada uma. Em conversa informal com Marilá Dardot, a artista relatou que,apesar de ter produzido uma série de múltiplos para uma galeria, constatou que os colecionadores preferem comprar obras únicas, em vez de investir R$ 500 em um múltiplo. O que reforça a tese da criadora do Multiplique Boutique, Gabriela Inui, de que a venda de múltiplos não tem um retorno financeiro significativo, mas serve como instrumento para divulgar o trabalho em outros nichos de mercado, para outros públicos, não necessariamente colecionadores investidores, mas para potenciais formadores de opinião. A unicidade também é um atributo requisitado pelo colecionador que deixou de adquirir uma escultura de Tunga por ela possuir cinco cópias (segundo ele, só compraria se a tiragem fosse de três exemplares, não importando aqui o aumento do preço).
3.2. A arte entre o público e privado
Toda renda se baseia no poder monopolista da propriedade privada. A condição do objeto de arte como propriedade privada não escapa, assim, do caráter dialético do estatuto da arte como mercadoria. Como fazer conviver em harmonia a propriedade privada de uma obra, do ponto de vista do colecionador, e sua dimensão pública, pressuposta na atividade do artista ao conceber o trabalho para ser visto ad infinitum (como patrimônio cultural)?
A complexa condição da obra de arte – como mercadoria (propriedade privada) e como patrimônio cultural – é ainda mais estressada quando o colecionador particular se sente no direito, como proprietário daquele bem, de alterar o trabalho a seu bel-prazer. Até que ponto o colecionador pode fazer o que bem quiser com a obra? Teria ele o direito, enquanto “dono” daquela mercadoria, de destruí-la? Sabe-se que há casos em que obras de arte, principalmente de caráter instalativo, são alteradas sem constrangimentos por parte de seus proprietários, em detrimento de uma certa adequação aos recintos onde se instalam. Caberia, assim, aos artistas e dealers buscar estabelecer, quando necessário, certos contornos para esses “usos” da obra, e garantir sua dimensão pública [41]. (Vale relembrar aqui a saída criativa de Berliner para o problema da dimensão pública.)
Raiz do mesmo problema aparece no polêmico decreto 8.124/13 do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus) [42], publicado em 2013, ao sugerir que obras de coleções privadas possam ser designadas pelo Estado como de interesse público, e, nesse caso, proibidas de ser comercializadas no exterior. A ideia por trás disso é evitar a evasão de obras e coleções importantes para a história da arte brasileira – tal como se viu com o Abaporu, de Tarsila do Amaral, e a coleção de arte concreta e neoconcreta de Adolfo Leirner.
A dialética público-privado se alastra em diversas instâncias do circuito da arte atual. Em abril de 2014, por ocasião da SP Arte, a crítica Thais Rivitti publicou o artigo “Escalas: o muito e o pouco na arte brasileira”, onde expressa seu inconformismo quanto às relações distorcidas entre a esfera pública e o mundo privado que vêm sendo desenhadas no circuito da arte no Brasil [43]. Nesse caso, o MinC teria investido na feira de arte mediante renúncia fiscal de R$ 2 milhões, montante que equivaleria a 30% dos gastos para o evento de cinco dias.
Ora, se a arte é um investimento rentável, porque será que o mercado de arte tem de ser financiado com dinheiro público? A pergunta que está por trás vem a seguir: será que existe alguma instância ou ocorrência no mundo globalizado em que a circulação de mercadoria se dá livremente, sem a intervenção do Estado? O mercado imobiliário norte-americano nos mostrou que não, nem mesmo o grande protagonista do jogo capitalista foi capaz de se autorregular, e seus maiores bancos tiveram de ser socorridos pelo governo. Algo semelhante se passa no caso da ajuda financeira do MinC para a realização da SP Arte.
O cenário deixa claro que o mercado (ainda hoje, por mais sofisticado que seja o desenvolvimento da circulação capitalista de mercadoria) não consegue se autorregular. Nem o mercado de arte seria “puramente” autorregulador. Mais adiante vem outra indagação: se o poder público é coautor desse mercado por meio do fomento às negociações da circulação de obras de arte, como ele desfruta de sua rentabilidade ao final?
Os investimentos públicos no fomento ao mercado de arte no país parecem somar porções muito pequenas dentro do grande caldo das negociações do mercado primário e secundário da arte. Haveria uma reversão sob a forma de tributação? Está por ser feita uma pesquisa aprofundada sobre a regulamentação do mercado de arte, buscando entender por meio de dados estatísticos se há retorno dos investimentos públicos na forma de imposto, seja ele pago pela galeria que vende, seja pela declaração de IR dos colecionadores.
Por outro lado, o governo também é parte do jogo econômico das trocas simbólicas, e nesse sentido tem interesses políticos em tomar parte em um evento que está inserido no mercado global. A feira acaba sendo mais uma estratégia para transformar a imagem da cidade (e do país, por extensão) em um polo de interesse econômico na geografia do capitalismo global.
De volta ao texto de Rivitti, o desequilíbrio dos investimentos públicos nos diversos sistemas da arte no país, das mais variadas escalas, faz pensar no que parece ser o problema central: como equalizar os investimentos via leis de fomento, e de políticas públicas para a arte em geral, direcionados aos grandes eventos, aos acervos públicos e de interesse público (a exemplo do Masp) e a microempreendedores?
O quadro se agrava ainda mais se considerarmos que o Brasil vive uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que o mercado de arte se mostra vigorosamente em expansão, alicerçado sobre uma produção profícua que se internacionaliza cada vez mais, as instituições em geral se mostram frágeis, com poucos recursos humanos (gestores e políticas de gestão) e escassos aportes financeiros (principalmente, do ponto de vista das aquisições), mostrando-se pouco capazes de fomentar, exibir, refletir e, sobretudo, colecionar a produção contemporânea.
Nesse sentido, de novo, as feiras parecem sair à frente na concorrência com as bienais, pois muitas vezes acabam expondo obras inéditas que resguardam seu futuro encaixotadas no “estoque” de uma coleção e/ou investidor privado.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A DIALÉTICA DO CIRCUITO E O PODER DE FOGO DA ARTE
Do ponto de vista do mercado, as escalas de precificação e valorização da arte contemporânea se fazem em graus crescentes – do artista à galeria, da galeria à feira, da feira ao leilão. Quanto mais o objeto de arte circula de volta ao mercado, mais se requerem conhecimentos e estratégias muito próximos à economia do mercado de ativos – taxas de juros, bolhas especulativas e assim por diante. As estratégias para incrementar os negócios da mercadoria “arte” passam necessariamente pelo seu caráter “especial”, cuja exclusividade lhe atribui o poder de extrair renda monopolista.
De outro lado do circuito, o artista, o crítico, o curador, o historiador, a instituição, o museu – aqueles que não pertencem diretamente ao grupo dos UNWI – colaboram de maneira direta e primordial para o incremento dos valores negociados. Tal como enuncia Fialho, “Antes de mais nada, é o capital simbólico acumulado pelo artista que sustenta e alavanca o preço no mercado” [44]. O marchand, de certa forma, opera nos dois lados da moeda, pois o trabalho da galeria consiste igualmente em fomentar a valorização simbólica cumprindo uma função cultural em parceria com o seu artista representado.
A valorização em escala passa, então, do artista (obras e currículo) à apresentação e/ou à representação de seus trabalhos em galerias, seguindo o desempenho das obras nas feiras, podendo ser exploradas com mais vigor no mercado secundário dos leilões. O crivo institucional viria a colaborar por meio das exposições culturais temporárias, das bienais afora e da presença em acervos museológicos, entre outras dimensões.
No Brasil, tal como vem ocorrendo com a esfera institucional já mencionada, a explosão do mercado de arte dos últimos anos não tem sido acompanhada de um fortalecimento da reflexão (crítica) em proporções equivalentes. Um dos sinais dos tempos é o desinteresse das galeristas em incluir nos portfólios de seus artistas textos que possam elucidar e/ou instigar a fruição do trabalho de arte – e assim fomentar igualmente o interesse do colecionador pela compra. A chancela das participações em determinadas exposições e em determinados acervos parece mais eficiente.
Sob a égide do capitalismo financeiro, será que a dimensão da construção do pensamento crítico e da reflexão dentro do circuito das artes visuais não é suficientemente capaz de atribuir o valor simbólico na mesma velocidade que o mercado? Para Moraes, a crítica implica igualmente um tempo de trabalho similar ao tempo de produção da obra [45], e esse tempo parece não alcançar a velocidade das engrenagens frenéticas do mercado.
Será que o lugar da crítica, assim, foi posto de lado, na dimensão paralela sob o rótulo “alternativo” e “independente”? Seria a crítica capaz de realizar suas atividades de forma autônoma, desinteressada, exclusivamente fora do mercado? Ou será que a arte e sua dimensão reflexiva são capazes de persuadir o próprio sistema capitalista de trocas simbólicas e produzir conhecimento dentro dele?
Quando Rivitti expõe que os espaços independentes servem inclusive como uma experiência formadora para um artista maduro comercialmente, prefiro acreditar que essas duas instâncias devem conviver mutuamente, sem separar gerações, e que os artistas devem nutrir-se de ambas, infinitamente. O mais saudável seria o circuito da arte contemporânea operar com as duas instâncias concomitantemente – como mercadoria e como pensamento crítico, sem prejuízo de nenhuma delas – e os espaços institucionais e alternativos coexistirem em constante dialética – pois são mutuamente formadores, sem ser um a preparação para o outro.
Vale lembrar, para concluir, da obra de Rubens Mano exposta na Galeria Milan em 2011; nela, o artista inscreve sobre uma espécie de lápide negra a frase apócrifa “Artista sem galeria é artista morto”.
Tatiana Sampaio Ferraz é pesquisadora, com formação em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da Unesp (2000) e em Arquitetura e Urbanismo pela Escola da Cidade (2007). É mestre em História da Arte pela ECA-USP (2006) e atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo da FAU-USP.
NOTAS
1 Este artigo não teria sido possível sem o debate ocorrido durante o curso Cidade e cultura: tensões contemporâneas em relação à Arquitetura e à Arte Urbana, ministrado por Vera Pallamin e LuisRecaman, dentro do Programa de Pós-Graduação da FAU-USP, no primeiro semestre de 2014.
2 Moulin, Raymonde. Le marché de lapeintureen France. Paris: Éditions de Minuit, 1967.
3 Harvey, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 33.
4 Raymon de Moulin apud Quemin, Alain. “Evolução do mercado de arte: internacionalização crescente e desenvolvimento da arte contemporânea”. In: Quemin, Alain (org.).O valor da obra de arte. São Paulo: Metalivros, 2014, p. 12.
5 The European Fine Art Fair, realizada em Maastricht, é a feira mais cobiçada do mundo; possui diversas restrições quanto à participação das galerias, chegando a ter inspetores que fazem a aprovação final das obras expostas nos estandes um dia antes da abertura do evento.
6 Fialho, Ana Letícia (coord.). Pesquisa setorial: o mercado de arte contemporânea no Brasil. 3. ed. São Paulo: Latitude/Abact, 2014.
7 TEFAF Art Market Report 2013.
8 Harvey, David. “ACrise”. In: O enigma do capital,op. cit.,pp. 9-40.
9 Cypriano, Fabio. “Brasil representa 1% do mercado global”. Folha de S.Paulo, 16/3/2013.
10 Padilla, Ivan. “Qual o valor da arte?”. Época Negócios.
11 O valor de referência geralmente é estabelecido em 60% do valor estimado da obra.
12 Harvey, David. “A arte da renda: a globalização e transformação da cultura em commodities”. In: A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005,pp. 221-39.
13 Thompson, Don. O tubarão de 12 milhões de dólares: a curiosa economia da arte contemporânea. São Paulo: BEI, 2012.
14 Thompson, op. cit., p. 197.
15 Moraes, Angélica de. “Criação de valor”. In: Quemin, Alain (org.), op. cit., p. 108.
16 A sigla UHNW significa ultra high net worth, conhecidos vulgarmente como os multimilionários.
17 Para conhecer exemplos concretos desse mecanismo, ver Thompson, op. cit., pp. 153-173.
18 Thompson, op. cit., pp. 240-241.
19 Thompson, op. cit., p. 232.
20 Fialho, op. cit., p. 27.
21 Thompson, op. cit., p. 251.
22 Ver Thompson, op. cit.,p. 250.
23 Moraes, Angélica de. “O fiel depositário”. In: Quemin, Alain (org.), op. cit., p. 204.
24 Gonçalves Filho, Antônio. “Galerias já vendem mais obras para as instituições de fora”. O Estado de S. Paulo, Cultura, 31/3/2014.
25 Sobre o histórico das galerias de arte no Brasil ver Fioravante, Celso. “O marchand, o artista, o mercado”. Forum Permanente, 2001.
26 Seu nome verdadeiro era Paulo Businco, um italiano estelionatário procurado pela Interpol.
27 Rodrigues, Rachel Vallego. “Transitoriedades: uma coleção, diversos museus”. In: Monteiro, R. H. e Rocha, C. (orgs.).Anais do VI Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual. Goiânia: UFG/FAV, 2013.
28 Fialho, op. cit., p. 28.
29 Ver depoimento da galerista LuisaStrina sobre a 24ª edição da Bienal Internacional de São Paulo em Moraes, Angélica de. “Expansão de valor”. In: Quemin, Alain (org.), op. cit., p. 224.
30 Quemin, op. cit., p. 13.
31 Fialho, op. cit., p. 29.
32 Fialho, Ana Letícia. “Expansão do mercado de arte no Brasil: oportunidades e desafios”. In: Quemin, Alain (org.), op. cit., p. 33.
33 Padilla, op. cit.
34 Thompson, op. cit., p. 260.
35 Svetlana AlpersapudMoraes, Angélica de. “Valorações do transitório”. In: Quemin, Alain (org.), op. cit., p. 90.
36 Moraes, Angélica de. “Criação de valor”, op. cit., p. 104.
37 Ver Jappe, Anselm. “A mercadoria, essa desconhecida”. In: As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006.
38 Harvey, David. “A arte da renda”, op. cit., p. 221.
39 Idem, p. 222.
40 Harvey cita, por exemplo, o desapontamento de um turista ao visitar a Eurodisney: “Na Disney alguma coisa sempre acontece, e as pessoas ficam felizes”. Harvey, David. “A arte da renda”, op. cit., p. 223.
41 Muito pouco se sabe sobre essas relações contratuais; o tema mereceria uma pesquisa mais específica, com depoimentos dos agentes culturais envolvidos, tarefa difícil de se lograr no métier artístico atual.
42
43 Rivitti, Thaís. “Escalas: o muito e o pouco na arte brasileira”.
44 Fialho, Ana Leticia. “Expansão do mercado de arte no Brasil: oportunidades e desafios”, op. cit., p. 38.
45 Moraes, Angélica de. “Valorações dotransitório”, op. cit., p. 92.
setembro 7, 2015
A presença da ausência por Marcio Doctors
A presença da ausência
Eduardo Berliner é o primeiro pintor a ser convidado a participar do Projeto Respiração. Parecia-me natural não convidar pintores devido às características da Fundação Eva Klabin, que, por ser uma casa-museu, tem suas paredes totalmente preenchidas pela Coleção, não sobrando espaço físico para absorver mais pinturas. E, por isso, tornou-se mais simples trabalhar com instalações.
Para além dessa constatação, há subjacente outra intencionalidade, presente nos dois projetos de longa duração que criei, o Respiração e o Espaço de Instalações Permanentes, na Floresta da Tijuca, que reflete minha formação ao lado de Mário Pedrosa e que norteia minhas opções como curador. Meu objetivo nessas duas propostas é o mesmo: dar continuidade à experiência da ruptura pós-neoconcreto – marco fundador da arte contemporânea no Brasil –, que, ao aproximar arte e vida, rompe radicalmente com o conceito de representação.
Como, então, convidar um pintor, para quem a questão da representação ainda se coloca, mesmo que de outra maneira? Em razão da forte atração que sinto pela qualidade da pintura de Berliner, que mobiliza minha percepção, acreditei que deveria dar atenção à minha intuição e pensei que a experiência de um pintor participar do Respiração seria uma contribuição importante para o projeto, ao mesmo tempo em que me daria a oportunidade de explicitar a mim mesmo os limites do meu pensamento a partir do desafio que a potência de sua obra me propõe, buscando evidenciar questões de seu trabalho que vão para além da representação.
A pintura de Eduardo Berliner trabalha com a técnica da “colagem”, como percebeu Daniela Labra, no primeiro texto produzido sobre o artista, em 2008: "As técnicas utilizadas na composição das obras são diversas, indo desde o desenho de observação minucioso até a colagem. Esta última, porém, é percebida como mote conceitual da produção total de Berliner. Recortes são justapostos a lastros de memórias e estes são semiencobertos por camadas de tintas, de lápis, de outros recortes, de espaços vazios." [1]
Daniela tem razão: a colagem pode ser vista na obra de Berliner como o mote conceitual de sua produção. Eu a relaciono, num primeiro momento, como resultado da proliferação de imagens da realidade do mundo digital, que cria um estado de confluência de forças das mais diferentes origens, possibilitando, para a pintura, a construção de imagens que vão além da história da pintura, ao inseri-la no cruzamento de diferentes formas de expressão e informação, replicando, em certa medida, um dos conceitos do Respiração, que propõe intervenções a partir da ideia de espaços contaminados. Em outras palavras, espaços que já vêm carregados de diferentes camadas de informação, até mesmo conflitantes, como é o caso da Fundação Eva Klabin – uma casa e um museu –, que tem obras de diferentes períodos históricos convivendo numa mesma sala, que conserva a presença ausente de sua fundadora, fazendo com que seja um museu de uma vida, tornando presente, em cada visitante, fragmentos de memória de uma existência não convivida, com seus desejos, conflitos, dúvidas e sonhos. Cruzamento de memórias, de informação e de diferentes áreas de conhecimento e de formas de expressão aproximam a pulsão fundadora do Respiração e as imagens “superpostas” da obra de Berliner, que faz com que sua pintura não tenha qualquer sentimento fetichista ou nostálgico.
Porém, na medida em que fui convivendo com o artista e com a sua riquíssima produção, fui percebendo que a origem da “colagem” na sua obra teria outra dinâmica e preencheria talvez outra função, apesar dela ser evidente e de nos saltar aos olhos, e apesar do fato de o próprio artista e os que escreveram sobre sua pintura se referir à colagem ou à edição de imagens como uma prática constante na sua criação. Mas como em todo pensamento há rachaduras, minha reflexão sobre o tema foi penetrando nesses espaços vazios e fui me questionando, à maneira de Merleau Ponty, se não seria graças às colagens e não apesar delas que poderíamos nos aproximar não do que elas mostram – do que nelas está evidente –, mas do que está implícito nessa fabulação imagética. Em outras palavras, o que me interessa é desmontar o brinquedo para ver como ele funciona, tronando visível o processo de sua geração. Acredito que esse procedimento nos ajudará a perceber o diagrama (para usar uma expressão foucaultiana), que permite trazer à superfície do entendimento o visível e o dizível da obra de Berliner. Se conseguir chegar a bom termo, acredito que perceberemos que a potência de sua obra está na maneira singular com que aborda a “colagem”, muito reveladora dos procedimentos da arte da atualidade.
Suas “colagens” não são como o papier collé do cubismo sintético ou das colagens de Matisse (não há nelas nenhuma preocupação estetizante); não são uma visão de composição por fragmentos; não são justaposição de imagens como ocorre nas telas dos computadores; nem tampouco são imagens oníricas ou inconscientes como nas pinturas surrealistas, mas há algo nelas que as aproximam da pulsão das obras de Magritte e Milliet, que reveste a realidade com silêncios suspensos e situações ensimesmadamente estáticas, que nos indicam o vazio da presença da ausência; ou ainda, da pintura de Courbet, na sua apreensão direta da realidade, como nos indica Alcino Leite Neto³ no seu texto “A pintura inquietante de Eduardo Berliner”. As imagens de Berliner são imagens sonambúlicas de uma realidade surpreendente e inquietante, que contêm todos os indícios da realidade. Por vezes são bem-humoradas, mas, muitas das vezes, trazem o prenúncio de acontecimentos, como se estivessem em suspensão, aguardando a ocorrência de uma situação trágica ou íntima por vir.
Ainda na tentativa de desmontar o brinquedo para ver como ele funciona, fui levado a refletir sobre o museu dos acidentes idealizado por Paul Virilio, cuja proposta era reunir registros da memória dos diferentes tipos de acidentes produzidos pela sociedade contemporânea. Acredito que essa reflexão poderá nos ajudar a pensar a questão da “colagem” de uma maneira diferente. O que é, para mim, a estética do acidente? É a proliferação de imagens que nos bombardeiam cotidianamente (que nos atrai e nos horroriza) em que nos confrontamos com todo tipo de destruição resultante da violência produzida pela guerra, pelo trânsito, pelos conflitos pessoais, pelas intempéries da natureza. A característica fundamental dessas imagens é que, como dois corpos físicos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, o resultado visual é uma imagem de um corpo físico sendo atravessado por outro.
Imaginemos um carro que se choca contra uma árvore. A imagem resultante é um híbrido entre uma estrutura maquínica e uma estrutura orgânica, que não é nem mais carro nem mais árvore. É um terceiro estado em que a composição é dada pela falta de partes de cada um dos elementos que a compõem. É uma imagem em que a presença da ausência de partes do carro e da árvore se dá por subtração e não por soma, como ocorre na colagem. Podemos imaginar, então, que essas imagens são o resultado de estados híbridos e metamorfoseantes, como se estivesse sendo gerada uma “terceira natureza”, cuja matriz é a falta tornando-se presente.
Para clarear melhor a questão, gostaria de citar a resposta dada por Berliner em uma entrevista realizada por Wang Fang, em 2013, para a revista Art World China, quando perguntado como ele tratava a relação entre o humano e o animal:
Assim como para muitas crianças, meu primeiro contato com a morte se deu através de um animal querido. O cachorro que considerava meu, um grande fila brasileiro dourado, teve câncer e precisou amputar a pata traseira. A caminho do veterinário minha mãe tentou explicar o ocorrido, mas ao ver o animal tive minha primeira lição no que diz respeito ao abismo existente entre a compreensão oral de um fato e a coisa em si. Quando vi o animal enorme sem a pata de trás, não consegui acreditar nos meus olhos. Pensando com distanciamento, percebi que talvez esta tenha sido minha primeira experiência visual com a ideia de colagem. O poder da ausência e a violência do corte. Onde havia perna, restou uma área desprovida de pelo e uma cicatriz desenhada com linha cirúrgica preta.
O que me chama a atenção nesse depoimento é o fato de Berliner declarar que essa talvez tenha sido sua primeira experiência visual com a ideia de colagem e que ela esteja relacionada exatamente com o poder da ausência e não com o poder da presença. Em outras palavras, a colagem para o artista não é provocada pelo que é adicionado, como no papier collé, por exemplo, mas pelo que desaparece quando uma imagem é interceptada por outra; tal como em um desastre, em que a imagem do mundo físico é reconfigurada pelo que foi perdido ou pela presença da ausência do que era antes, criando uma polifonia de imagens que dá expressão à forma como metamorfose.
Outro dado importante desse depoimento é quando ele menciona o abismo entre a compreensão oral de um fato e a coisa em si. Esse vazio é responsável por impulsionar a imaginação criadora e a enorme capacidade de fabulação do artista. De fato, existe esse abismo, que Foucault apresenta como uma irredutibilidade entre as palavras e as coisas. Imagens e palavras não se comunicam diretamente entre si, como tendemos a imaginar, mas, ao contrário, uma não pode ser reduzida a outra; são como duas pedras que ao se chocarem provocam uma centelha, que nos ilumina a realidade. Portanto, por haver um gap entre o mundo das palavras e o mundo das imagens, o não dito pelas palavras é expresso nas coisas do mundo, assim como o que é silenciado pelas ações e pela materialidade do mundo é expresso pelas palavras. Apesar de não ser possível reduzir uma a outra, só percebemos o diagrama sobre o qual a realidade se sustenta quando fazemos ver por meio das palavras e quando conseguimos ler as coisas e suas imagens. Essa conjunção é que permeia e o que agencia o sentido de uma época.
No caso de Berliner é a consciência da intransponibilidade entre o dizível e o visível (entre a compreensão oral e a coisa em si) que fará que ele busque outra sintaxe visual, cuja narrativa vai impregnar a imagem não mais pela ideia da forma como fôrma, mas através da forma que se transmuta constantemente pela metamorfose. Suas pinturas são guiadas por um olhar que procura nos apresentar a imagem na sua incompletude, tal como a percebemos, pela simples razão que uma imagem esconde sempre o que está por detrás dela. Suas pinturas, então, não usam, de fato, o artificio tradicional da colagem, mas nos apresentam aquilo que realmente vemos quando vemos. Isto é, uma imagem encobrindo a outra. Ao apresentar a imagem dessa forma, ele nos indica a radicalidade da intransponibilidade entre as palavras e as coisas. São puras associações imagéticas que não permitem a entrada da palavra como costura de sentido. Ele nos apresenta pela sua pintura a radicalidade do visível e é por isso que elas têm essa aparência fantástica.
Quando percebi que a questão de Eduardo Berliner na pintura era a radicalidade do visível, entendi, então, o que me atraía na sua obra: diante da realidade e do real não há recuo possível. Não há transcendência. Essa questão me é muito próxima na medida em que eu acredito que a potência da arte resida nesse fato. Foi isso que a ruptura pós-neoconcreto nos trouxe. Em outras palavras, a arte é em potência; não representa nada: é expressão da radicalidade do real, que é a via que temos para nos aproximar do caos, que é o magma que alimenta a poesia: pura imanência.
A Fundação Eva Klabin foi um território fértil para o trabalho que Eduardo Berliner pôde realizar no Projeto Respiração. A possibilidade de atravessamentos de tempos e imagens permitiu que seu olhar fosse descobrindo incessantemente novas formas que iam sendo formadas pela metamorfose que seu olhar é capaz de construir, erigindo uma polifonia de imagens que ressoam ao longo do percurso de sua intervenção. Nenhum artista conseguiu aproximar-se tão intensamente da história das imagens que é apresentada pela coleção. Percorrer a exposição de Berliner é rever os múltiplos detalhes do acervo que nos passam despercebidos. O que apresenta nessas pinturas e esculturas são extrações e afecções da coleção ou remissões a outras obras já realizadas, que são memórias despertadas pela sua intensa convivência com o acervo da Fundação Eva Klabin. É incrível poder percorrer o circuito expositivo da fundação através de sua experiência e ver como as obras são transmutadas em novas formas que podem nos revelar, no mais singelo vaso, uma violência avassaladora ou ainda nos surpreender com a familiaridade de animais, que descobrimos estar espalhados nos desenhos dos tapetes, ou personagens das pinturas que retornam em um novo contexto.
Poderia me estender longamente sobre como os “encobrimentos” e as “revelações” do artista estabelecem relações polifônicas com o acervo, criando um território de metamorfoses; mas acredito que o mais importante é percorrer sua intervenção nos permitindo ser atentos, assim como ele foi, ao visitar várias vezes a fundação, e permitir-se simplesmente ver. A maior potência do seu trabalho é seu poder arrebatador de nos lançar diretamente em contato com a crueza do visível. Essa maneira direta de relacionar a imagem ao visível abafa a representação no que ela tem de desviante da intensidade do caos, que é o que permeia a apreensão poética do mundo, e nos permite atravessar a realidade e descobrir que o mistério é transparente – lembrando Octavio Paz – e, por isso mesmo, ele é a própria realidade manifesta. Por essa razão não há representação, ou melhor, tudo é expressão. Esse é o fulcro que me interessa na arte e Berliner consegue manifestá-lo ao criar uma sintaxe visual que não se sente tributária às palavras porque, como nos indica Daniela Labra, ele manifesta uma “[...] vontade consciente de desafiar novas possibilidades na difícil prática de retornar à pintura para conseguir tocar no mundo”. Eu acrescentaria: a difícil tarefa de tocar na realidade através de imagens que carregam consigo a presença da ausência.
[1] LABRA, Daniela. “Colagens”. Texto de parede da exposição realizada na Galeria Durex, São Paulo, 2008.
setembro 5, 2015
Quarta-feira de Cinzas por Luisa Duarte
Quarta-feira de Cinzas
LUISA DUARTE
Em 1989, ano da queda do Muro de Berlim, Leonilson inscreveu em dois trabalhos: “Leo não consegue mudar o mundo” e “Leo can’t change the world”. Entre “conseguir” e “poder”, outra versão possível para “can’t”, a frase denuncia sua impotência política.
Leonilson não está presente nessa exposição, mas surge como inspiração para o processo conceitual da mostra “Quarta-feira de Cinzas”. Note-se que a despeito de um enunciado pessimista, o próprio gesto criativo do artista põe em questão sua consciência do fracasso, uma vez verificada hoje sua permanência enquanto artista fundamental para compreender a arte dos anos 1980-90.
“Quarta-feira de Cinzas” deseja tocar justamente no intervalo promissor entre a sensação de impotência (donde o ceticismo) e uma esperança de transvaloração possível. Não seria o que teria levado Nietzsche a postular um “niilismo ativo”?
Hoje, nossos gestos mais íntegros parecem se desmanchar, nossas palavras esperançosas têm, repetidamente, um contraponto cruel em uma época que faz o elogio incessante da “eficácia”, da “competência”, da “agilidade”, retirando de ambos – gestos e palavras – seu quociente de vida e poder próprios, autônomos. Tudo opera para que nos adequemos ao que está aí, querendo nos fazer crer que qualquer desejo de transformação estrutural seja visto como sinônimo de ingenuidade. Facilmente podemos nos somar a legião de zumbis ventríloquos.
Como pode a arte apontar para uma zona de maior liberdade e pensar por si? Como habitar o presente, criar um futuro mais palpável (sabendo que o futuro já não é mais o que era), e escapar do tempo fadado à repetição, que é o tempo dos corredores dos shoppings, das feiras – homogêneo, circular, serializado. O tempo das subjetividades botox é repetitivo na mesma medida em que os objetos que a cercam são eternos, porque infinitamente substituíveis – eternos porque infinitamente descartáveis. A eternidade promovida pelos ciclos brevíssimos de consumo é a suspensão do futuro; permanecemos na cíclica manutenção do presente, em um tempo que se pretende sem máculas nem rachaduras, pior ainda: sem passado. Imersos nos desdobramentos de uma época pós-utópica, vivemos constantemente absortos porém distraídos, correndo, atrasados sem saber ao certo o porquê ou a direção, vítimas de uma “frenética imobilidade”.
Estas são algumas das questões que deflagraram a organização das obras reunidas aqui em torno do título “Quarta-feira de Cinzas”, em uma tentativa de construir outras temporalidades. Ao longo da exposição, determinados trabalhos lidam com a incompletude, outras acolhem uma quebra na linearidade temporal, sugerem desacelerações, pausas, ou, ainda, caminham em direção a ruínas, sabendo que ali reside um solo fértil para outros mundos (im)possíveis.
Ir até as ruínas de um tempo não significa paralisia ou niilismo. Aprendemos com Walter Benjamin a potência que reside no que aparentemente é digno de esquecimento. Trata-se de narrar o presente a contrapelo, olhando uma outra vez para sua face às vezes bárbara, às vezes melancólica, mas quem sabe, ali mesmo, se encontre a dimensão crítica e subversiva, delicada e poética, do mundo em que vivemos.
Robert Kelly: From Here to There por Jorge Sayão
Robert Kelly: From Here to There
JORGE SAYÃO
Nascido em Santa Fé, Novo México, em 1956, Robert Kelly reside e trabalha em Nova York desde que se formou em 1978 na prestigiosa Harvard University, Cambridge, MA. Antes de se dedicar inteiramente à pintura, em 1982, Robert Kelly trabalhou como fotógrafo comercial para a Polaroid. Desde então o artista tem realizado exposições individuais nos mais diversos centros de arte ao redor do mundo como: São Francisco, Copenhagen, Turim, Santa Fé, Monterey, Houston, Vancouver e Nova York e agora apresenta seus novos trabalhos no Rio de Janeiro.
As obras de Robert Kelly se inscrevem na ampla tradição construtiva moderna, linhagem de artistas que abrange alguns dos nomes mais importantes do modernismo. O holandês Piet Mondrian, do De Stijl e o suprematista russo Kazimir Malevich são dois dos artistas, de primeira hora, que influenciaram Kelly. A eles se somam os artistas e professores da Bauhaus, no que poderíamos chamar de a primeira grande geração de artistas construtivistas. Mas as influências são mais abrangentes, tanto temporalmente quanto geograficamente, não se restringido ao momento inaugural do construtivismo. Igualmente importantes são artistas que gravitam, com maior ou menor proximidade, à volta do núcleo construtivista: o escultor romeno Constantin Brancusi, o pintor uruguaio Joaquin Torres-Garcia, o escultor americano Alexander Calder, Tony Smith com suas estruturas pré minimalistas, artistas alemães de diferentes gerações, os modernos Kurt Schwitters e Hans Arp e o contemporâneo Blinky Palermo. As influências de Kelly são extensas e abrangentes, quase sempre relacionadas com as formas geométricas do construtivismo, mas guardando lugar para alguns artistas que escapam a esta designação: Bill Traylor, Louise Bourgeois, Philip Guston e Richard Diebenkorn.
Mais recentemente, a partir dos anos 1990, quando sua produção artística já estava bem consolidada, Kelly travou contato e se aproximou da obra de alguns dos nossos principais artistas construtivos e neoconcretos, notadamente Sergio Camargo, Lygia Clark e Hélio Oiticica. A corrente de influência que se verifica na arte brasileira, até então predominantemente uma via de mão única e no sentido norte-sul, na obra de Robert Kelly, inverte a direção tornando suas obras particularmente interessantes para o público brasileiro.
Não obstante o contato tardio, a influência das obras dos artistas brasileiros se faz notar pela convergência dos processos de construção das formas, não determinadas por um axioma, mas geradas a partir do próprio processo de seu aparecimento. Não há um princípio racional anterior, gerador da forma, que venha a guiar as ações do artista. Kelly afirma: “eu não quero pintar algo, eu quero deixar a pintura ser ela mesma”. O processo é predominante na construção da forma fazendo com que a dinâmica da pintura estabeleça o que é pintado.
Por vezes o processo se torna perceptível na maneira como as formas de uma obra anterior geram descendências. Formas que nascem de outras formas, em uma série de variações que se auto engendram, sem no entanto estarem regida por nenhuma lei detectável ou formula redutiva. As formas são claras e simples, sem serem simplistas, como demanda o entendimento. Em um elegante e refinado jogo de variações formais, a superfície da pintura é acionada e os limites da tela são ativados nas tangencias de um círculo ou na contiguidade de um retângulo. Os limites entre o dentro e o fora são questionados tencionando as relações entre o mundo da arte e o mundo da vida.
Vez por outra uma transparência deixa entrever uma espacialidade nova aos cânones concretos, o que em outro momento histórico poderia parecer uma heresia, se mostra na tela perfeitamente coerente e assimilável, e assim como nas sobreposições, a ordem sensível da forma se sobrepõe à ordem dos axiomas racionais. A autonomia da forma é reafirmada, e com ela são enfatizados nestas telas sua independência, tanto de um mundo referencial sensível, como de um mundo puramente racional. As formas valem por si próprias no seu modo de vir ao mundo como obras. “Não quero me ver tanto nas pinturas”, declara ele, “tanto quanto quero que as pinturas assumam sua própria autoridade”.
A emblemática conjunção entre o construtivista russo Malevich e o existencialista argelino-francês, Albert Camus, é a síntese da obra de Robert Kelly. Em seu processo de construção Kelly deita camadas de papéis impressos, envelopes de cartas, pôsteres, manuscritos que servem como uma base para a recepção das elegantes formas geométricas. Camadas de existência são pacientemente adicionadas, umas por cimas das outras, em um lento e meticuloso trabalho de estratificação. São o tempo e a vida que lentamente se depositam na superfície das obras, uma localização geográfica obtida através de uma língua estrangeira, uma referência temporal no estilo da diagramação de um impresso, uma carta, um selo, uma data. Particularidades, o mundo das contingências, as vidas individuais se impregnando e deixando os rastros do seu dia a dia. As camadas de tinta deixam perceber tenuamente a sua existência, marcas quase apagadas, o tempo esmaecendo as definições das coisas, a memória que só retém os traços gerais. O mundo da vida, os fenômenos cotidianos enterrados por camadas de tinta e esquecimento. Reinando por sobre este mundo a forma geométrica, autônoma, pura, não contaminada pelas contingências fenomenais. Em sua limpidez se sobrepõe aos fenômenos impondo sua presença. Articula-se com o mundo da vida, mas dele não depende. Insere-se na matéria, mas tem sua existência garantida como ente da razão. Flutua para além do material e do temporal. Qual a relação entre estes dois estratos da realidade. A filosofia sempre se esforçou por articulá-los, mas só a arte foi capaz de fazê-los conviver.
As obras de Robert Kelly fazem parte das coleções de alguns dos museus e instituições culturais mais prestigiosos da Europa e dos Estados Unidos, entre eles: The Whitney Museum of American Art, New York, NY; The Brooklyn Museum, Brooklyn, NY; The Museum of Fine Arts, Santa Fe, NM; Milwaukee Art Museum, Milwaukee, WI; Smith College Art Museum, Northampton MA; Jane Voorhees Zimmerli Art Museum, Rutger’s University, NJ; Montgomery Museum of Fine Arts, Montgomery; The Fogg Museum, Cambridge, MA; The Margulies Collection, Miami, FL; and the McNay Art Museum, San Antonio, TX.
Jorge Sayão é doutor em História da Arte pelo Departamento de História na PUC-RJ
setembro 3, 2015
Projeto Planta Baixa Exposição por Malu Fatorelli
Projeto Planta Baixa Exposição
MALU FATORELLI
A natureza é o todo indistinto, do qual somos uma ínfima parte, mas uma parte que é o todo. [1]
O Projeto PLANTABAIXA propõe um espaço de pesquisa e experimentação artística que tem o Jardim Botânico como base de reflexão e referência. Indagações e diálogos poéticos acontecem nesse lugar-paisagem que acolhe o verde, escorrido da floresta da Tijuca,para encontrar o limite da cidade.
Assim como a construção de uma casa onde a planta baixa permite visualizar os primeiros traços do desenho, espaço bidimensional para os ensaios do início de um projeto, a exposição no espaço Tom Jobim do Jardim Botânico apresenta experiências artísticas que, estruturadas em diferentes poéticas, tocam domínios da imagem, da matéria,da memória e da vivência de quatro meses de atelier neste precioso lugar.
Projeto e processo se articulam no trabalho das artistas Débora Mazloum, Júnia Penna, Nena Balthar e Susana Anágua que compartilharam este jardim em movimento e apresentam nesta exposição não só a obra artística finalizada, mas diversas camadas que formam e caracterizam aspectos do trabalho contemporâneo.
Débora Mazloum pesquisa a história do Jardim Botânico e associa o lugar a um gabinete de curiosidades. Diferentes configurações do espaço da planta baixa do Jardim Botânico aludem a questões estéticas e históricas. No trabalho intitulado Jardim de Aclimatação XXI,fabulações constroem híbridos botânicos, dispositivos de história e memória atualizados neste gabinete contemporâneo.
Júnia Penna acompanhou o corte de árvores. A enorme Árvore de Contas se transforma em fragmentos onde os planos provocados pelos cortes da serra deixam rastros partilhados na disputa entre geometria e memória original da natureza. O grafite registra o gesto da artista e evidencia a marca do corte mecânico. O pigmento negro vibra entre os planos dos fragmentos das árvores dispostos no chão - Corte/Mato/Mata - e os desenhos verticais que se expandem além do limite das paredes da arquitetura na série Aleia.
Nena Balthar em seu trabalho opera deslocamentos na percepção do espaço. Desenho e vídeo são dispositivos que transformam os sentidos de céu e terra, chão e copa das árvores ao tratar a paisagem como uma experiência de espaçamento e intervalo. A obra Vertigem apresenta uma técnica gráfica na qual o pigmento grafite é transferido para o papel pela mão da artista deixando um rastro, de mergulho ou de voo, no limiar da imagem.
Susana Anágua em Mecano-jardim busca explorar uma ordem submersa na aparência organizada e tranquila do Jardim Botânico. As ferramentas de manutenção das plantas, assim como todo o aparato necessário a sua conservação e irrigação são elementos da instalação da artista, que tem na escolha dos materiais e na exploração de métodos automatizados uma questão em processo.
1 CAUQUELAIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. P. 125.
O que ainda existe? por Daniela Bousso
O que ainda existe?
A série fotográfica que compõe a exposição Hominini, de Lucas Lenci, nos coloca diante de múltiplas possibilidades de leitura. Em um primeiro nível, podemos logo apreender mundos distintos, constelados no território das paisagens. Sejam elas urbanas, de interiores ou naturais, elas incluem necessariamente os seres humanos e nos falam de universos silentes e solitários, mesmo que estes homens, por vezes, sejam captados coletivamente. Quando sós, ao protagonizarem os frames, estes seres nos dão a sensação de melancolia; esta cresce aos nossos olhos já inquietos, diante do impacto psicológico que as figuras anônimas emanam. Impacto este e inquietação que encontramos também nas imagens do filme “Melancholia” (2011), de Lars Von Trier.
Em uma segunda mirada, podemos já distinguir duas genealogias de imagens na mostra. A primeira faz-se representar por uma série de três fotos em preto e branco, criadas a partir da divisão do espaço fotográfico em quatro plataformas, aonde aparecem muros, cercas, paredes, que determinam diferentes espaços na superfície das fotos, são divisões geométricas, que aludem a uma apreensão do tempo a partir de instantâneos colocados em relação. Este tempo comprimido em quatro tempos, por quatro plataformas, nos fala de uma solidão ancestral, marcada de forma mais incisiva pela alusão a uma estrutura piramidal em segundo plano na foto (nome da foto, Lucas), a qual designa um conjunto perspético, com planos de fuga.
Mas não é só a presença das piramides que se repetem no espaço da foto que determina estas diferentes temporalidades. As outras duas fotos também são marcadas pela multiplicação dos planos e pela repetição das estruturas dos muros, cenários de passagem e de evoluções da espécie humana ainda existente; é isto que resgata o sentido da palavra Hominini, do qual trataremos mais adiante.
Nestas três fotos podemos, ainda, perceber uma alusão à história da fotografia, a partir da evocativa das lições do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904), com seus estudos sobre o movimento a partir do “Zoopraxiscópio”, dispositivo de observação da vida em exercício. Vida + práxis é = ao exercício da vida humana em grego, eis a chave para lermos esta série de trabalhos de Lenci.
Na segunda família de imagens, Lenci apresenta mais quatorze fotos que abrem outras duas camadas de leitura. Na primeira camada, o artista revela as suas referências na história da fotografia e da arte: podemos perceber o seu olhar atento a produções artísticas instigantes da arte moderna, como por exemplo a fotografia de Harry Gruyaert, ou a pintura de Edward Hopper (1882-1967). Do primeiro, o artista traz os jogos de luz e sombras, as penumbras e os claro-escuros, que por vezes emanam luminosidades dramáticas e artificiais. Do segundo, transparecem nitidamente o senso de espacialidade e o vazio, os silêncios e a solitude humana.
Já na segunda camada de leitura, percebemos a sua relação com a fotografia e com a arte contemporânea. Homens, mulheres, velhos, crianças, a sós ou em coletivos, revelam um olhar voyeurístico do fotógrafo, que pode nos fazer lembrar das capturas e dos instantâneos roubados e intimistas das lentes de Nan Goldin, por exemplo. Ou, por fim, que pode nos propor um mergulho, uma viagem por espaços insondáveis e desolados, na trajetória de vulnerabilidade do caminhante solitário, silencioso, mas que ainda existe, resiste e se multiplica no absurdo ambiente da atualidade.
Na biologia, Hominini refere-se à evolução humana, à preservação da espécie, ao oposto do extinto, ao que ainda está em existência. É disto que tratam estas imagens de Lenci, que nos chamam a atenção por referirem-se à vida e à subjetividade nos nossos dias, ao que ainda existe.