|
setembro 24, 2021
Delicadeza e Resistência, Rubens Ianelli, por Daniela Bousso
Delicadeza e Resistência, Rubens Ianelli
DANIELA BOUSSO
A sensibilidade estética da obra de Rubens Ianelli nos convida a pensar sobre as situações históricas e culturais que demarcaram os seus caminhos. Falar deste artista e de suas andanças significa compreender que o seu trabalho é feito a partir de experiências cultivadas em um espaço de tempo intersticial, que mescla o ambiente paulistano da arte entre os anos 60 e 80 aos processos dialéticos instaurados pelo seu caráter.
Rubens iniciou a sua formação artística na infância ao lado de artistas como Volpi e Lothar Charoux, amigos próximos de seu pai Arcangelo Ianelli e do pintor Thomaz Ianelli, seu tio[i]. Mais tarde cursou a faculdade de arquitetura. De outro lado, a sua vida desdobrou-se nas artes e em ativismos políticos em viagens pelo Brasil e exterior.
O resultado destes deslocamentos é uma visualidade que remete ao geometrismo indígena, aos símbolos de civilizações arqueológicas e à figuração pré-colombiana. Seu imaginário também é fruto de observações nos anos 70, quando entra em contato com a Geometria Sensível[ii].
A militância política começa a partir de 1973, quando ingressa na arquitetura. Rubens desperta para a saúde a partir de uma viagem ao sertão e ao sul da Bahia, em 1978, quando um amigo lecionava a partir do método Paulo Freire. O artista ficou um tempo por lá: viu a miséria e a penúria das gestantes para parirem crianças que morriam de disenteria. Inquieto, ingressou na faculdade de medicina.
Enquanto cursava medicina também desenhava, fazia colagens e ganhou alguns prêmios em salões de arte. Convidado para a Bienal do México em 1990[iii], tomou um trem na Estação da Luz em São Paulo e foi para lá recém-casado. Típico jovem dos anos 1970, viajou com a mulher de todos os modos imagináveis e atendeu aos apelos políticos de sua geração.
Chegando à Nicarágua, trabalhou na frente sandinista e depois seguiu a pé para a Guatemala até alcançar o México, onde o casal ganhou a vida fabricando doces para hotéis. A Bienal do México ficou para trás.
Volta ao Brasil descendo o rio Solimões até chegar em São Paulo. A partir de 1993 participa de uma pesquisa antropológica com profissionais da USP, conhece a medicina tradicional indígena Xavante e atua por sete anos junto às populações indígenas amazônicas.
Após um mestrado em saúde pública na Fiocruz, entre 1995 e 1997, é convidado a coordenar uma equipe no centro do Acre[iv], em Tarauacá. Esse foi o ano mais difícil de sua vida. Condições climáticas erráticas, naufrágio, acidentes na floresta, infecções e riscos de vida o deixaram sem tempo para a arte. O médico nestas regiões desamparadas trabalha 24 horas por dia. Quase não dorme, as demandas são intensas. Em contrapartida, conheceu 40 aldeias e teve sob seu cuidado mais de 2.000 índios de 5 etnias diferentes.
Rubens voltou para São Paulo em 2001 e a partir daí só se dedica às artes visuais. A potência de suas criações reside na multiplicidade de linguagens como a pintura, a escultura e o desenho. São muitas as suas referências: artistas como Picasso, Miró, Klee, Volpi, Ianelli e a geometria dos desenhos indígenas, povoam o seu universo que abrange arquiteturas, cidades encantadas, tudo perpassado pela poesia do traço e pela intensidade das cores, assinaladas em cada obra.
Na sucessão de idas e vindas em sua trajetória evidencia-se o hibridismo. Se por um lado o trabalho dialoga com as abstrações orgânicas e com a geometria do modernismo, por outro, a contemporaneidade de sua produção alude à memória de um apagamento que não se fez apenas pela ação do tempo, mas pela ação dos homens sobre o eixo sul do planeta.
O artista criou um vasto repertório simbólico que nos remete a tradições ancestrais. Ao operar no resgate da memória latino-americana ele reafirma o seu universo dialético, forjado já na infância: “Um dia meu pai voltou do Peru com aquelas cestas de feira cheias de cerâmicas e tecidos pré-colombianos e eu fiquei siderado”[v], diz o Rubens.
Segundo o teórico Andreas Huyssen, nos anos 80 emergiu uma série de pesquisas culturais que colocaram em perspectiva transnacional os discursos da memória, retomando questões pós-coloniais e periféricas. Além de debates sobre o Holocausto, o mérito dessas pesquisas foi avançar para além de uma história hegemônica, focada apenas nos continentes europeu e americano.
O binômio história/memória voltou-se aos africanos, à América Latina e a outros povos, cujas linguagens e histórias estavam relegadas ao esquecimento e à aniquilação. Este foi o início de uma historiografia que contemplava questões de memória coletiva. É deste lugar que proponho atualizar a análise e o estudo da obra de Rubens Ianelli, que tem como foco central a memória latino-americana desde os seus primeiros esboços[vi], ainda adolescente.
Na evolução visionária ao redor do imaginário geométrico, o artista se antecede ao tempo atual via uma atitude decolonial em sua obra já no final dos anos 60, quase vinte anos antes dos estudos pós-coloniais se voltarem a uma nova historiografia. Neste ponto podemos perceber como ele coloca em xeque a temporalidade em relação ao espaço global.
Para Didi-Huberman, estar diante de uma imagem é estar diante do tempo. Interrogar estas pinturas de Rubens Ianelli realizadas em 2021 é indagar sobre o tempo atual, feito e desfeito em palimpsestos, camadas quase arqueológicas de tradições que se sobrepõem. Nesta exposição o artista constela os ecos dos tempos modernos no presente. É a história do modernismo latino-americano que perpassa suas telas, tratadas com a máxima delicadeza.
Tempo sem fim, tempo estendido na paleta elegante de cromatismos básicos do mural italiano. Ocres, brancos, terra índia, verde, negro fumo, em camadas e pinceladas onde óleos e têmperas repousam sobre a estrutura das grandes ortogonais, traçadas antes dos pigmentos pousarem sobre as telas. As figuras evocam civilizações Incas, Maias, Astecas, Pré-Colombianas e outros povos indígenas sul-americanos.
Mergulho imersivo nas horas, aperfeiçoamento e superação das lições de um passado recente da nossa História da Arte. Destreza ao aplicar a têmpera, delicadeza gestual da pincelada e domínio do desenho - menos visível agora - sempre presente em sua obra. Rubens Ianelli reconta a história de um continente à margem, em três conjuntos de obras nesta mostra de desenhos e pinturas.
Dos quadrados e triângulos vem as cidades, acesas por uma luminosidade ora velada, ora animada por laranjas e amarelos. Dos povos indígenas vem as setas, a compor ficções que aludem a civilizações de outrora. E dos mares vem as ondas, que se esvaem nas brumas dos movimentos fluidos. Tudo sob o trato sensível de mini pinceladas. Afinal sensibilidade é política de resistência, pois refaz em pequenas narrativas uma história fora do eixo.
Texto escrito por ocasião da abertura da exposição “Delicadeza e Resistência”, com curadoria de Daniela Bousso. Galeria Contempo, São Paulo. Setembro de 2021
Referências
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant les temps. Paris: Les Editions de minuit, 2000.
Geometria Sensível. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3788/geometria-sensivel. Acesso em: 1 agosto 2021. Verbete da Enciclopédia.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do Passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Contraponto, Museu de Arte do Rio, 2014.
MUSEU AFRO BRASIL. (Org.) Rubens Ianelli. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.
Notas
[i] Desde cedo Rubens aprendeu a dominar os aparatos do desenho e da pintura em sua casa, num vaivém de pessoas como Fiaminghi, Volpi, Emanuel Araújo, Odeto Guersoni, Lothar Charoux, o crítico Paulo Mendes de Almeida, amigos próximos de seu pai Arcangelo Ianelli, e o pintor Thomaz Ianelli, seu tio, que conversavam sobre arte: a cor, a linha, o desenho, a representação, a cozinha e a matéria prima da pintura, tal como o óleo e a têmpera, da qual Volpi ensinava a receita para quem quisesse saber.
[ii] No final dos anos 1970, a Geometria Sensível começa a ganhar força entre nós com a realização da mostra “Arte Agora III, América Latina: Geometria Sensível”, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ em 1978. Sob curadoria de Roberto Pontual, expuseram artistas latino-americanos em busca de uma expressão especificamente latino-americana, segundo o crítico Juan Acha. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL) Mais tarde, em 2001, o artista conhece a obra do pintor uruguaio Joaquim Torres Garcia, conhecido internacionalmente pela sua prática com a Geometria Sensível.
[iii] Em 1990 é convidado a participar da Bienal do México pelo curador da mesma, Marc Berkowitz.
[iv] Rubens vai para o Acre em 2000, durante a gestão Ministerial de José Serra no governo de Fernando Henrique Cardoso, como chefe de equipe técnica.
[v] Depoimento do artista à autora em 20/05/2021.
[vi] Ao voltar de uma viagem à Europa em 1967 - ainda menino quando foi morar em Paris e Roma com a família - traz uma série de desenhos, com características presentes até hoje em sua obra e já em São Paulo inicia a série de totens entalhados em madeira, pintados com uma figuração geométrica.