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maio 21, 2021
Antes de afundar, flutua por Giselle Beiguelman
Antes de afundar, flutua
GISELLE BEIGUELMAN
O colapso nos espreita de todos os pontos de vista. Em meio às manchas de umidade e à alvura das paredes, as plantas crescem, construindo um plano intermediário entre o piso e o teto. Caminhar no espaço instalativo de C. L. Salvaro é como cruzar um rio contra a correnteza. Dificilmente se chegará à outra margem.
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É preciso curvar-se, encontrar os rasgos que nos permitem respirar, contemplar o todo. Da combinação de materiais de demolição, em simbiose errática com a periferia das construções, nasce um anti-mirante. Nele, a máxima elevação a que se chega é a da altura do próprio corpo.
Como náufragos, estamos sós diante de um mapa que não tem pontos de partida nem de chegada. A instalação obstrui o deslocamento. Telas de arame galvanizado se interpõem entre as paredes da antiga sala de estar de um sobrado do Jardim Paulistano, projetando uma espécie de pântano aéreo sobre o qual um jardim radicante disputa a primazia.
Aqui, a natureza rebela-se contra o paisagismo, submetendo a arquitetura às raízes que brotam rizomaticamente e nos colocam diante de um equilíbrio instável. Elas dançam sobre finos fios e, com qualquer movimento que fazemos, lembram-nos de que tudo está prestes a sucumbir.
Estamos em uma casa ocupada. Pelo silêncio vegetal e os escombros do presente. Nessa natureza fabricada pela erosão do cotidiano não cabem ruínas. Isso demandaria alguma “saudade de um futuro alternativo”, como pontuou Andreas Huyssen. Algo imponderável no Brasil de hoje.
Fragmento da história, a ruína presentifica o vivo na morte, escreveu Walter Benjamin, expandindo-se num arco temporal que abrange o seu antes e depois. A ruína nutre-se, portanto, de uma ambivalência essencial: apesar de nostálgica, manifesta a potência de imaginar outros porvires (mesmo que seja a partir de um passado que não foi).
Mas na malha tramada por Salvaro não há um depois. Há apenas a iminência de uma situação entrópica onde tudo se move, ainda que toda a ação tenha sido suprimida.
Não por acaso, quando pergunto ao artista suas referências, ele cita vários filmes. Salvaro me faz recordar do conceito time based arts, que remete a artes, como o cinema e o vídeo, cuja matéria-prima é o tempo. É disso que trata sua obra.
Há um forte odor de Beleza Compulsiva no ar. Ela é diferente do estado de convulsão, que André Breton descreve no poema “Nadja”(1928), imprimindo a força da irrupção não programada à tensão entre natureza e cultura.
Penso no surrealismo aqui não com os olhos de Breton, mas pela leitura de Hal Foster, compreendendo a beleza convulsiva surrealista pela chave da compulsão, como tendência à inércia, à repetição, à presença da pulsão de morte.
Beleza Compulsiva.
Haveria definição mais precisa do nosso agora?
Mas essa compulsão tem também um arfar de resistência. Ao anunciar seu desmoronamento, o paradoxal jardim entrópico de Salvaro indica que, antes de afundar, tudo flutua.
É preciso agarrar-se a essa rota de fuga. Inebriar-se do hiato que o artista sugere. Isso pode restaurar um sopro esquecido entre as distopias que estão entre nós. Flutuemos.
Before Sinking, It Floats
GISELLE BEIGUELMAN
Collapse is awaiting us at every standpoint. Amidst the spots of mildew on the white walls, the plants grow, constructing an intermediary plane between floor and ceiling. Walking through the space of the installation by C. L. Salvaro is like crossing a river against the current. It will be hard to reach the other shore.
It is necessary to bend over, to find the openings that allow us to breathe, to contemplate the whole. From the combination of building rubble, in an erratic symbiosis with the periphery of the constructions, a sort of anti-lookout is born. In it, the maximum height that one reaches is the height of one’s own body.
Like shipwrecked castaways, we are alone in front of a map that does not have points of departure or arrival. The installation obstructs our movement. Planes of galvanized wire netting are interposed among the walls of the old living room of a two-story house in the district of Jardim Paulistano, projecting a sort of aerial swamp on top of which a rooted garden vies for primacy.
Here, nature rebels against landscaping, submitting the architecture to the roots that sprout rhizomatically and place us before an unstable balance. They dance on thin wires and, with any movement we make, remind us that everything is ready to plunge downward.
We are in a house occupied by the silence of plant life and the debris of the present. In this nature fabricated by the erosion of daily life there is no space for ruins. This would require some “longing for an alternative future,” as observed by Andreas Huyssen. Something unthinkable in Brazil nowadays.
A fragment of history, the ruin presentifies the living in death, wrote Walter Benjamin, expanding in a temporal arc that includes its before and after. The ruin therefore feeds on an essential ambivalence: despite being nostalgic, it manifests the potential of imagining other things to come (even if based on a past that never took place).
But the web woven by Salvaro does not have an afterwards. There is only the imminence of an entropic situation where everything moves, even though all action has been suppressed.
Not by chance, when I asked the artist about his references, he cited various films. For me, Salvaro brings to mind the concept of the time-based arts, which refer to arts, such as film and video, whose raw material is time. This is what his work is about.
There is a strong scent of Compulsive Beauty in the air. It is different from the state of convulsion, which André Breton describes in the poem “Nadja” (1928), imprinting the force of unplanned outburst onto the tension between nature and culture.
Here I think about surrealism not with Breton’s eyes, but through the reading of Hal Foster, comprehending the convulsive surrealist beauty through the key of compulsion, as a tendency toward inertia, repetition, the presence of the death wish.
Compulsive Beauty.
Will there now be a definition more precise than ours?
But this compulsion also has an air of resistance. By announcing its own collapse, Salvaro’s paradoxical entropic guardian indicates that, before sinking, everything floats.
It is necessary to grasp onto this escape route. To become inebriated with the hiatus that the artist suggests. This can restore a forgotten breeze between the dystopias that are among us. We float.