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maio 2, 2021
A queda das casas de Atafona por Agnaldo Farias
A queda das casas de Atafona
Talvez porque seu sobrenome nome seja Terra, talvez porque com a morte de seu pai, escultor de carrancas em madeira e barro, a casa onde passou a infância tenha sido demolida, talvez porque quando criança era levada às cidades históricas mineiras, cidades cujas calçadas, casas, igrejas, têm espessura histórica, e lá impressionavam-na os altares e nichos de ouro, ecos distantes de riqueza que ingenuamente julgava maciços, impressão que foi se dissipando quando começou a perceber as mostras da corrosão de tudo pelo tempo: o desgaste das fachadas, as frestas nas juntas por onde germinam plantinhas que começam pequenas mas que senão lhes presta atenção, avançam por tudo, vão tomando de volta a matéria que lhes foi tirada, numa prova de que todo pacto com a natureza, por imponente que seja o que com ela construímos, é temporário. Pode ser por tudo isso, pode ser por alguma causa próxima, como ter certeza sobre o que leva um artista a fazer o que faz? Aliás, como saber o que nos leva a fazer o que fazemos?
Seja como for, seja o que for, esse conjunto de trabalhos de Jeane Terra têm a ver com experiências reativadas com o que ela viu em Atafona, pequeno distrito a beira mar pertencente a São João da Barra, na região norte Fluminense, que vem sendo lentamente engolido pelo Atlântico. Essa queda de braço começou tem mais de 50 anos e já custou mais de 500 casas a Atafona. A culpa? Nossa, é claro, que devastamos as matas ciliares ao longo do curso do rio Paraíba do Sul. Com seu leito assoreado e fluxo a cada ano menos impetuoso, o rio não consegue fazer frente ao mar. E este, gigantesco e ilimitado, vem, implacável, destruindo as casas, calçadas e ruas. Começa pela combinação de batidas e infiltrações intermitentes das ondas, alternada com as pausas curtas das marés. O mar dispõe de tempo e força. E vem assim, sem tréguas, à razão de 25 centímetros por ano, atacando por todos os lado e por baixo, pelos alicerces, até que as casas vergam, tombam de joelhos, vão se afogando, suas paredes partidas, lanhadas pelo martelo d’água, deixam à mostra a ossatura miserável dos vergalhões de ferro, a matéria de seus tijolos vai se dissolvendo, convertendo-se outra vez em terra e chão enquanto tingem levemente a água de vermelho.
Paraíba em Tupi significa rio ou mar difícil de invadir. Atafona, engenho de moer grão. Paraíba se esvai, Atafona vem sendo moída pelo mar e o nome da artista é Terra. Não são mesmo estranhos esses nomes que sugerem destinos?
Para esta sua primeira individual na Galeria Simone Cadinelli, Jeane Terra apresenta trabalhos direta e indiretamente relacionados com os acontecimentos em Atafona, sobre as ruínas produzidas pelo embate do mar com a cidade, acontecimentos que chamam a atenção para o fato de que tudo o que foi, é e será construído, irá se transformar em ruína. É apenas uma questão de tempo, do tempo que habita as coisas, os materiais empregados para a produção do nosso mundo e que envolve dos mais prosaicos utensílios às cidades, a tudo aquilo que as ligam entre si: as estradas de terra e asfalto, os cabos de energia sustentados por torres de ferro, os aviões deslizando por rotas aéreas imponderáveis, os satélites que colhem e distribuem as informações e que amanhã, sucateados, pulverizados quando de seu reingresso na atmosfera, passarão por estrelas cadentes.
A peculiar paisagem afixada na vitrine da galeria, uma vista despedaçada do pontal de uma cidade açoitada pelo mar, avisará visitantes e transeuntes sobre o que ele deve esperar. Quem entrar se deparará, logo à entrada, na parede à sua esquerda, um desenho mural resultante de uma escavação linear, uma calha rasa, irregular como o caminho aberto por um cupim, produzida pela artista ao longo de dias de trabalho, com martelo e formão. Pode-se imaginar o labor árduo de pedreiro realizado pela artista, a percussão seca dos instrumentos associados às suas duas mãos, fabricando um canal na matéria compacta e dura, pulverizando a mistura da areia com cimento e tijolos, enfarinhando o ambiente. O desenho escavado é interrompido aqui e ali por fragmentos de pisos e paredes arruinadas sobrepostos a ele, retendo o olhar, fazendo-o examinar as particularidades de cada um deles – um deles, pedaço de ladrilho hidráulico com o previsível padrão geométrico, dando a entender que um dia pertenceu a uma das áreas molhadas (cozinha ou banheiro) de uma casa; outro, um caco de parede em cuja superfície resiste o vermelho escuro com que a pintaram, por aí vai. Por si só esse jogo de sobreposição vincula os dejetos de antigas construções e a parede da galeria. Mas há mais: cada um deles sofreu o mesmo tratamento de escavação da parede. Por fim, ainda que o visitante não perceba, o desenho na parede não é acidental, corresponde ao que um dia foi o Pontal de Atafona, a teia de suas ruas submersas na água.
À parede e os fragmentos de ruínas catados no arquipélago de escombros estão unidos pela ação da artista, uma ação destrutiva, premonitória sobre o futuro do espaço da galeria, casa que, como é de se esperar, já sofreu inúmeras modificações. E o que pensar se recuarmos à primeira construção feita ali, quando Ipanema era uma praia deserta? Prosseguindo em outra direção nesse pensamento pelo tempo, qual será o futuro dessa casa de hoje, seu destino, até onde irá a durabilidade dessas paredes de aparência sólidas?
Em frente a essa parede, meio que obstruindo a passagem, um Totem, uma escultura colocada sobre o chão, pedaço de construções arruinadas, maior que os fragmentos fixados nas paredes: um pedaço vertical, resto de uma coluna com partes dos vergalhões enferrujados, nervos à mostra. Simultaneamente escultura e destroço, fragmento de uma das casas arruinadas de Atafona, pedaço de batente (?) vertical, com tijolos, massa e a cobertura de tinta branca. Também na peça, o mesmo tipo de intervenção da instalação na parede: um desenho geométrico estreito, escavado no corpo do objeto, com o mesmo feitio dos produzidos pelos cupins infatigáveis, que trabalham dia e noite alheios ao nosso sono, mas que talvez seja mais justo referir-se a eles como as incisões que os seringueiros fazem nos troncos das árvores, guiando o escorrer da seiva.
Ambos escavados, formando desenhos não se sabe do quê, parecem-se menos com referências ao traçado de Atafona, mais a lembrança de que casas e cidades estão sob o jugo da mesma lógica. Embora totens, essas esculturas não representam nada que não elas próprias, restos insepultos de uma cidade parcialmente desaparecida.
Jeane Terra propõe que toda arquitetura é em essência autodestrutiva, que toda construção traz consigo sua dissolução, que tudo que fazemos é efêmero, que nossos gestos primam pela negatividade, ainda que insistamos em valorizar o contrário. Esta talvez seja a justificativa da presença do dourado recobrindo partes das veias sulcadas na parede, nos pequenos fragmentos, nos totens. Memória da magnitude da Minas Gerais de antigamente, o dourado traz consigo a insuspeitada grandeza das nossas ações, à sua maneira irmanadas aos tempos das coisas. O dourado atua como resquício do orgulho de quando foram construídas, das vidas e sonhos que abrigaram, e que hoje, como o que delas desapareceu, estão adormecidos ou em vias de adormecer, como o último arfar de uma brasa antes de ser extinta pela água. A presença do ouro, metal nobre, que não reage com o oxigênio, não oxida, contradiz o inevitável encontro de tudo o que existe com a decadência e a morte. Mesmo que ambos sejam inelutáveis.
Pertencem a essa mesma direção as impressões, tecnicamente falando as monotipias, obtidas com silicone derramado sobre superfícies de fragmentos de piso e parede, localizadas no andar superior da galeria. Refiro-me a Lajeado 1 e Máscara Gold, dois negativos de fragmentos, duas máscaras mortuárias que podem servir para reproduzir e retardar o ímpeto rumo a autodissolução. Máscara é um pedaço de concreto, sobra de uma parede azulejada, sob a qual ela aplica uma folha de ouro, memória das igrejas visitadas, da Nossa Senhora do Ó, o primeiro impacto, seguida das igrejas de Tiradentes, o entendimento do uso dourado nas construções destinadas à expiação das almas. O recurso a moldagem é ancestral, remonta ao fundamento mágico que guiava a produção de máscaras mortuárias. No afã de manter viva a memória dos antepassados, garantindo sua presença tutelar, produzia-se, produz-se até hoje, máscaras de seus rostos; o fantasma de bronze tangível dos bustos de bronze, estáticos, imponentes, advertência à circulação incessante e inconsequente dos vivos. Digna de atenção a ironia em ver esse procedimento aplicado a um detrito retirado por moldagem da parede do banheiro, esse espaço reservado a limpeza dos corpos, de uma das casas.
A exposição Escombros, peles, resíduos remete a outras perdas, já não foi indicado a marca deixada pela demolição da casa paterna? As outras perdas familiares são, todas elas, femininas. A começar pela memória da avó da artista, a lembrança dos seus bordados em ponto cruz que ela fazia: tapetes, toalhas, caminhos de mesa, guardanapos, camisas etc, realizadas a partir das tramas quadriculadas, as retículas uniformes, largas e rígidas ou estreitas e delicadas, por onde fios coloridos são passados em forma de “x”, obedecendo um desenho, um esquema, um diagrama, na linguagem técnica das bordadeiras, uma “receita”. Jeane retomou essa trama para suas pinturas, mas em lugar dos ornamentos abstratos habituais ou da esperada representação de flores, foi às fotografias de destruição de Atafona, vistas do casario sob risco, e aplicou-as sobre essas telas de ponto cruz. Por que? Vai saber. Talvez impulso de contenção, de compreensão, por meio da geometria, dessa máquina de produção de escombros. Talvez porque assim, sobrepondo os gestos de sua avó aos seus próprios gestos, elas se reencontrem e nem tudo fica perdido.
A partir da fotografia dos despojos traseiros e laterais de uma casa suspensa sobre a praia alisada como se até ali nada houvera acontecido, o retrato de uma violência calma, ela produziu desenhos, pinturas e um filme, disposto no térreo e o andar superior.
Os desenhos têm o feitio de receitas de ponto cruz, quer dizer, um esquema composto por um quadriculado mais fechado que a página de um livro de aritmética com as indicações em preto e branco das cores das linhas a serem aplicadas. Embora o desenho seja a transposição de uma imagem clara e forte de uma ruína, ele mesmo é abstrato, ou quase abstrato: só se adivinha seu conteúdo quando perto da imagem que ele tomou de referência. As indicações das cores são feitas por intermédio de hachuras distintas, os assim chamados modelos gráficos, com os quadradinhos ocupados por pontos, riscos, círculos claros rodeados de preto, círculos pretos rodeados de branco, linhas diagonais etc, tudo pequeno, minucioso, produzindo regiões mais ou menos sombreadas, num conjunto confuso para qualquer um que não seja profissional, que não tenha o olho bem treinado, sobretudo quando a porção do desenho se refere a construção, à casa dilacerada no alto da encosta. Aí o desenho se estilhaça em uma miríade de pontos, como a superfície de uma pintura antiga, toda ela povoada de rachaduras microscópicas, com algumas falhas provocadas por perda de aderência. Pois também o desenho tem falhas, tem perdas, como se o mapeamento de um desastre lento como o retratado também fosse acometido pelos mesmos efeitos.
O que nos leva à pintura de Jeane. A lembrança da avó, da lida diária com os bordados em ponto cruz, linhas redes e receitas, os cálculos e revisões sistemáticas, intensivas, de modo a não fugir do pretendido, levou-a a reinventar sua pintura. Começou aproveitando as sobras de tinta derramadas no chão. As variações cromáticas somada à plasticidade da película, a pele da pintura, propriamente falando, sugeriu a ela que recortasse e colasse pedacinho por pedacinho na receita tomada por base. Menos um bordado, o procedimento faz pensar na construção de um vitral, de uma pintura pontilhista, nos pixels de um monitor. Cadeia de acontecimentos que faz pensar no quanto cada um desses passos implicou na chegada ao outro.
A pesquisa do desenvolvimento dessa pintura feita por fragmentos quadriláteros de pele foi assunto que demandou muita pesquisa, até desembocar numa mistura de tinta, aglutinante e pó de mármore, decisivo para sua firmeza e maleabilidade. Esse mesmo material estendido sobre a superfície de uma mesa serviu para impressões a frio, monotipias resultantes de imagens de Atafona. No conjunto ora trazido pela artista, uma outra imagem da mesma família gerou uma impressão dessas, estampada sobre uma pele mole, cartilaginosa, uma paisagem arruinada dos corpos de casas.
Escolheu-se o alto da escada que conduz ao piso superior, levantando a vista para além dos degraus, para a colocação do filme. A câmara fixa captura a imagem do ir e vir do mar batendo impiedosamente numa parede deitada no chão. O filme em looping amplia a sensação de um castigo monótono, obsessivo, ao mesmo tempo em que passa a ideia do ritual de lavagem dos corpos, presentes nas mais variadas comunidades, espalhadas por todo o planeta. Mas essa lavagem, não há margens para dúvidas, não é nada superficial, apressará a dissolução do corpo, sua transformação em areia. Um processo que atravessa a vida de tudo o que existe, ainda que não nos apercebamos dele, ainda que sigamos a vida com a naturalidade de quem sobe uma escada, sem se dar conta do quanto está envolvido em gestos simples como esse.
Agnaldo Farias