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fevereiro 26, 2021
Gustavo Speridião: um quebra-cabeça da arte por Miguel Chaia
Gustavo Speridião: um quebra-cabeça da arte
MIGUEL CHAIA
Os trabalhos de Gustavo Speridião e seus fundamentos conceituais compõem um amplo painel, como se fosse um quebra-cabeça com peças que se encaixam, mas também causam fricções que ampliam a potência da produção do artista e reforçam a diversidade de suportes e linguagens, nos quais ele transita com facilidade. Nesse quebra-cabeça, estão as peças decantadas das pinturas, dos desenhos, dos livros de artistas, da poesia, dos tridimensionais, do pensamento filosófico, do ativismo político e urbano e de outras práticas a mais. Trata-se de um multiartista, com aguçada consciência crítica face à arte e à sociedade.
Agora, em duas exposições organizadas pela Galeria Sé, no início de 2021, o artista recorta sua produção e apresenta dois suportes, relacionando-os às respectivas linguagens: a tela–pintura e o gesso–tridimensional. Entretanto, embora haja uma delimitação da produção a ser apresentada, as peças dos dois grupos de trabalhos portam toda a diversidade e especificidades da trajetória de Speridião. Nas diferenças, as peças se encaixam exatamente por possuírem em comum a concepção de arte e de mundo do artista. O fazer artístico está intimamente ligado ao pensamento ético-estético.
“Sobre pintura” é uma parte da atual mostra que ocorre em um galpão, espaço amplo para receber pinturas-monumentos: telas de grande porte, com uma vocação operística, e que aspiram o mural desejando o espaço público. Essas pinturas, geralmente com duas formas retangulares pouco delineadas sobrepostas de cor preta intensa, flutuam no espaço da tela e apresentam, entre essas formas, palavras ou elementos gráficos. Embora ancoradas na síntese e na simplicidade, essas grandes pinturas dialogam com a arquitetura, o desenho, a escrita, a poesia e a política – como uma peça de um quebra-cabeça que tem necessidade da outra.
“Time color” é outra parte da exposição que se realiza no interior da Galeria Sé, espaço intimista, com tridimensionais-textuais, cujas pequenas escalas se opõem às pinturas monumentais: volumes quadrados de menor dimensão que se abrem para oferecer espaços internos, viscerais, como se fossem páginas de um livro ou pequenas bocas de cena com legendas. Esses objetos retangulares repetem sua forma externa em moldes internos, cavados no gesso contendo pequenas manchas de preto e palavras escritas. No conjunto, trazem à memória uma biblioteca. A característica textual desses trabalhos tridimensionais remete a um livro aberto ou a um espaço de representação. Esse conjunto de objetos configura uma instalação. Num sentido inverso, mas complementar às grandes pinturas, esses trabalhos, duplamente retangulares, aspiram a atiçar o olhar: nos fazer ler/ver a expressividade objetual, convidando à reflexão pausada. Os tridimensionais são pesados, multiplicam a gravidade, trazem o peso da matéria e da engenharia, mas com a densidade aliviada pela dimensão intimista e pela presença de suaves manchas de desenhos e grafismos. O artista imprime graus de dimensionalidade a uma página de caderno, criando um jogo de espelho entre um espaço externo e um interno. Esses tridimensionais apontam para o significado recatado do teatro no pensamento de Speridião, uma vez que o teatro remete à apresentação, à atuação e à formação da consciência crítica. Percebe-se, no artista, uma identificação com a ironia e o método de Bertolt Brecht. Também na Sé, reforçando esse caráter textual, são exibidos desenhos, folhetos e o vídeo Time color.
O conjunto da obra de Gustavo compõe um quebra-cabeça, como já indica essa dupla exposição, cujas peças unitárias são tão relevantes quanto a totalidade da produção – a parte e o todo estão conectados organicamente, e se completam para buscar sentidos. Assim, se, nessas duas mostras, há a proeminência da pintura, esta só se fortalece pelas contribuições originadas de outras esferas e linguagens da arte.
Por exemplo, as pinturas da mostra são simplesmente pinturas, mas – e aí entra a potência estética crescente, propiciada pelo fator relacional – também são poemas visuais. Seja pela intencionalidade do artista de se revestir em poeta, seja pela inclusão das palavras que ressignificam as relações formais construídas na tela. A palavra ou frase curta, pelo seu enigma ou abertura para a liberdade do pensar, possibilita uma nova organização dos acontecimentos e signos do plano. Assim, reforçando a imagem do quebra-cabeça para pensar a arte de Speridião, cabe indagar: qual peça se destaca, a pintura ou a poesia? Impossível responder quando essas são duas peças fundamentais e complementares.
Gustavo Speridião se coloca no interior de uma consistente tendência da história da arte brasileira - aquela que recorre à palavra escrita, ao texto, para se fazer inteira. Assim, ele se inclui naquele grupo que poetiza e/ou politiza a palavra nas artes plásticas, ampliando os recursos disponíveis ao artista. O trabalho de Speridião remete também aos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, poetas concretos que fazem o caminho inverso, da base da literatura para as artes visuais. Esse aspecto literário de Speridião é reforçado pela obsessiva dedicação à produção de cadernos / livros de artista – fonte do seu fazer artístico. E essa qualidade reverbera nas pinturas-monumentos e nos intimistas tridimensionais.
As pinturas e os tridimensionais trocam referências e signos entre si – possuem o quadrado, os retângulos com as bordas irregulares, a cor preta sozinha ocupando as áreas, grafismos rápidos e palavras indicativas – mas mantendo suas autonomias. Uma abre gentilmente espaço para o outro, mesmo utilizando os mesmos recursos visuais.
Speridião, no seu trabalho artístico, cria repetitivamente manchas que insinuam formas geométricas, geralmente o retângulo. E, também, registra palavras nos suportes, com grande frequência, que insinuam verdades. Essa repetição frequente das formas retangulares e dos quadrados inconclusos, nas telas e nos tridimensionais, talvez desvele uma estratégia de trabalho que inclui e valoriza a palavra desenhada e, por meio dela, explicita a sua verve política, filosófica e política. As cores utilizadas, principalmente a preta, mas também a vermelha, são cores gráficas, aquelas dos jornais e dos folhetos. Tons de cores que circulam no cotidiano urbano.
Todos os dois conjuntos dessa atual exposição são parcimoniosos, sintéticos. Nas pinturas, há o predomínio da larga escala e da cor preta dos quase retângulos. Os objetos guardam a escala do corpo humano, e se impõe o branco do gesso com suaves manchas cinzas ou pretas. Os retângulos, ou delineados irregularmente pelo pincel ou moldados no gesso, constituem construções modulares e repetitivas que estruturam o plano da tela ou o espaço circundante do objeto. Constantemente, nos dois conjuntos, estão presentes palavras, sozinhas ou em frases, que amplificam a reflexão e instigam a indagação.
Dessa reflexão nasce outra peça do quebra-cabeça montado por Speridião: a filosofia. Seu fazer artístico é uma forma de arte-conhecimento, que gera ideias e conceitos a partir do olhar decifrador. E o filosofar visual/literário/poético vem constantemente acompanhado pelo bom humor, também desafiador. Assim, as formas, as manchas, as linhas e as palavras se unem na criação de um jogo lúdico para introduzir pistas de saberes. Deixando muito espaço a ser preenchido pelo observador, interessa ao artista abrir frestas para produzir um saber da arte sobre si mesma, um conhecimento das relações políticas e uma consciência da realidade.
“Persistence of time” – escreve duas vezes Speridião na mesma tela com enigmáticos retângulos brancos e pretos contrastantes, ritmados e de forte presença: um paredão. Pode-se pensar numa atualização das intervenções humanas nas cavernas, agora com apontamentos geométricos indicando a continuidade do tempo, numa sociedade pós-tecnológica. Esta pintura desafia o observador a se deslocar no espaço-tempo, no itinerário propiciado pela extensa horizontalidade da tela. De um ponto ao outro, o tempo persiste.
O tempo, a práxis, a realidade e a arte são alguns dos temas recorrentes em Speridião. Por isso, pinta nas suas telas (ou desenha nos papéis) palavras, como: "hora", "era", "parece", "foi", "perfect", "pintura", "ilusão", "tempo", "arte", "missão", "estrofe", "lançamentos", "amanhã", "melodia"; ou frases, como “The adventure begins now. It is over.” e “Sempre é temporário”. Na arte, entre outros temas, questiona a potência e o significado da pintura – reflete sobre o plano pictórico, indagando sobre os desdobramentos da ação do artista sobre a superfície do tecido, da madeira... para pensar o conflito ilusão–realidade.
Em seu caderno de anotações, Gustavo Speridião escreveu: “‘o inventário de problemas’. Aborda as questões: – das divisões do plano pictórico (e as divisões políticas do espaço); - da evidência da simplicidade das duas dimensões; - dos (plano) (plano 2D) (plano 4D). Essas preocupações se verificam em vários trabalhos, inclusive em uma tela onde escreve “sobre pintura” entre dois retângulos em formação, como se fossem manchas pretas inaugurais.
O artista está espreitando a realidade – existencial, social e política – em seus paradoxos e insuficiências, buscando se situar nos diferentes fluxos de linguagens. Coloca-se um desafio constante para testar os limites do poder da arte, para dar conta do real. Maria Montero escreveu que Speridião “se refere ao ateliê como sua caverna”, para, em seguida, constatar que “da pele brota sua geometria, seus triângulos e círculos. Tudo feito na proporção do corpo e na relação com a vida, o entorno, a história da arte, os afetos, os caminhos que percorre, as aventuras de uma mesa de bar, as viagens no tempo” (2017). Seus trabalhos, brotados da intersecção da vida com a arte, estão entre o trágico e o simbólico, pois reverberam as tensões entre razão e impulso, sobriedade e absurdo, sério e engraçado. A suspensão de uma única lógica e a escolha de diferentes intermediações permite melhor aguçar o olhar e a consciência.
A política é outro pedaço do fazer artístico de Speridião que atravessa esses atuais trabalhos. Nesse sentido, o artista circula, pendularmente, entre o ativismo das intervenções no espaço urbano e as referências da teoria política. Ele escreveu em um trabalho: “um desenho de resistência”, que induz à formulação geral da arte como forma de ação/participação. Cabe ao olhar atento descobrir quando um “manifesto” está mergulhado nas dobras dos trabalhos de Speridião!
A arte, o seu significado e a sua história permeiam a produção de Speridião. Ou escrevendo ou recortando o tecido da tela, o artista discute a arte como ilusão, bem como os limites da representação e o poder da arte. O poder da arte atravessa toda a produção de Speridião e esse aspecto se deixa entrever num certo “brutalismo visual” - menos rígido do que o brutalismo arquitetônico original (movimento europeu que atinge seu ponto máximo na década de 1960), mas marcante nas obras de Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha. Para este arquiteto, a presença do brutalismo no Brasil ocorre porque, sendo um país pós-colonial, está “condenado a ser moderno” (Heathcote, 2021).
As pinturas-monumentos e os tridimensionais-teatrais, dessa atual exposição de Speridião, acenam para esse movimento histórico e relevante na arte brasileira e, principalmente, paulista. Nas artes plásticas, um bom exemplo a lembrar, nessa possibilidade de aproximar brutalismo e artes visuais, é o escultor estadunidense Richard Serra. As pinturas de Speridião, que almejam o mural, quase requisitam o espaço público e insistem na presença dos vãos entre eles. Os seus tridimensionais pesados e abertos, em boca de cena teatral, expressam dignidade, solidez e afirmam a presença urbana. A parcimônia no uso de materiais, a síntese na construção das formas, a sobriedade no plano e no espaço, o uso exclusivo de uma cor trazem lembranças do brutalismo. Essa aproximação transparece ao se acrescentar a dimensão política enquanto desejo, do artista, de intervenção pública e de transformação social. Esse aspecto também se deixa perceber no detalhe da montagem dos trabalhos. Geralmente, as pinturas de Speridião são fixadas em uma estrutura de madeira, com cerca de 15 centímetros de profundidade, resultando num bloco compacto e sólido que ocupa tridimensionalmente o espaço. Nas duas séries ora apresentadas pelo artista, percebe-se a geometria; a recusa do acabamento; a explicitação da matéria, tanto da tinta quanto do gesso ou da madeira; a visualidade imediata sem mediações; a eliminação da representação; o desapego ao maneirismo e ao adorno; a valorização do retângulo; a justaposição de quadrados; a construção deliberada de espaços vazios; e, ainda, o destaque do peso, seja das formas pictóricas nas telas, seja dos tridimensionais.
Gustavo Speridião reinscreve a questão do projeto modernista nos seus trabalhos visuais, descortinando novas possibilidades, desde que passem pela poética subjetiva e existencial, ou seja, desde que essas questões sejam norteadas pelo reino experimental da liberdade, conforme Mário Pedrosa. O artista se localiza em uma situação da “arte crítica”, na qual a consciência política do artista se sobrepõe à ideologia ou a um projeto institucional, de modo que seu esforço se dirija ao avanço da linguagem e, simultaneamente, ao embate com a realidade circundante. Se aproxima, mas não incorpora uma “politização da arte”, na qual o artista atua politicamente de forma sistemática e institucional (Chaia, 2007).
Speridião produz uma poética visual baseada no desencanto trágico e no humor sem riso, que nascem da absurda realidade para oferecer outras possibilidades de uma arte constantemente revigorada. Para tanto, aceita o desafio de vivenciar um constante quebra-cabeça, uma vez que os seus trabalhos são partes que dialogam entre si, avançando numa estética libertária.
Miguel Chaia
Fevereiro de 2021
Doutor em Sociologia pela USP. Professor na área de Ciências Sociais e no curso de Arte: História, Crítica e Curadoria da PUC-SP. Coordenador e pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política). Autor de várias publicações sobre Arte e Política e Arte Brasileira.
Bibliografia
ARANTES, O. (org.). Mário Pedrosa: Política das Artes. São Paulo: Edusp, 1995.
BENEVOLO, L. História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
CHAIA, M (org.). Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.
HEATHCOTE, E. Arquitetura de estilo brutalista corre risco e vira alvo de Trump. Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 de janeiro de 2021.
MONTERO, M. Gustavo Speridião: Quilômetros. São Paulo: Galeria Sé, 2017.
SPERIDIÃO, G. Anotações de caderno do artista.