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fevereiro 26, 2020
Floriano Romano - Poema tornado por Marisa Flórido
Floriano Romano - Poema tornado
MARISA FLÓRIDO
O poema é vórtice. Pois o que seria o verso, senão um reenvio, um giro implícito em seu étimo e que o reconduz, no fim da frase, à sua dobra no próximo verso... Do latim “versus, a, um” “voltado, virado, retornado”. O verso é tal precipitação, um tornado que gira de forma potencialmente temerária, pois que arranca a linguagem de sua determinação fechada, a palavra da cristalização dos costumes, e, da língua, sua potência de nomear mundos. A poesia é essa voragem que escava, da palavra, silêncios, cismas, cesuras... Mas para que tudo possa falar... “O poeta é o ladrão do Fogo”, disse na carta o jovem Rimbaud. O verso é uma virada, um reverso de sentido. Um giro que desafia e incorpora os deuses da palavra. O poema é uma gira. O poema foi canto e fala antes de se tornar refém da página escrita. Partilha e repetição de vozes e ritos, de rimas e ritmos: ditirambo, trova, rap, cordel ... Na improvisação dos versos sob olhos e ouvidos encantados, qual o lugar do poema? Na estrofe, uma estância (stanza), um abrigo sem abrigo. O poema é eco sem destino fixo. Sedução pelo abismo das palavras - de onde elas surgem e se desviam em eterno recomeço. Poema tornado, de Floriano Romano, é um poema-instalação em que imagens (escrita), sons, e sentidos se tramam e se espacializam na galeria. Poesia expandida (a outros meios, suportes, corpos e lugares) cuja filiação remete a tantos outros como Mallarmé e Apollinaire, Duchamp e Maiakóvsky, a poesia concreta e visual, a arte sonora e as instruções fluxus. São versos-invocações-confabulações que ecoam em ressonâncias, dobras e fugas, em redemoinhos e ventos: da imagem-escrita do poema na página transparente à sua récita; do som gravado de sua enunciação ao lugar em que se instala. Um abrigo-labirinto de fontes sonoras e visuais, pequenos vórtices cujas ondas se espraiam, se interceptam e envolvem os corpos membranas-olhos que nele deambulam. “Respira”, “olha”, “siga”: um jogo verbivocovisual que arquiteta e trama, ao infinito, o visível e o enunciável. O que pode o poema, a arte, nestes tempos de cólera, quando a palavra e imagem são conduzidas a um achatamento vil, lacrando-se sobre si mesmas? Perdem-se na literalidade das interpretações, nas loquacidades vazias, nos imperativos inflexivos. Como estilhaçar a clausura dos códigos, para devolver às imagens e palavras, sua compleição enigmática e aberta? A palavra, o poema, o verso instala-se entre o silêncio e a infinita possibilidade de significação. O poema é acesso, abismo e abrigo do sentido em dias opacos. É sua demanda exorbitante.
Marisa Flórido
curadora