|
novembro 12, 2019
Exposição Animal por Anette Hoffmann
Ser pouco ágil, destituído de recursos agressivos como unhas e dentes afilados, o homem do paleolítico tinha a constituição mais próxima de uma presa. Nas paredes dos ambientes mais resguardados das cavernas que habitava, desenhou cenas de seu cotidiano, onde os animais eram presença constante. Não o movia nenhum propósito estético, mas mágico. Como mágica era sua relação com a natureza. Os desenhos o relacionavam simbolicamente com as forças, para ele sobrenaturais, que nela se manifestavam. Temia e ao mesmo tempo respeitava as qualidades dos animais. Dotado de um cérebro diferenciado, desenvolveu artefatos e uma organização social que lhe permitiram dominar a natureza. Domesticou o animal, usou-o em seu proveito. Usou sua força no trabalho e na guerra. Esfolou-o para vestir-se. Nutriu-se de sua carne e de seu leite. Humilhou-o para divertir-se. Mas os mistérios mais profundos da natureza e de suas criaturas não se revelavam ao assédio de seus instrumentos e de sua inteligência. O animal alimentou pelos séculos afora seu imaginário. Viu-o ora como um deus, ora como aparentado aos demônios. Imolou-o em seus altares por vê-lo como um elo privilegiado, capaz de intermediar seu contato com os deuses. Perscrutou suas vísceras na tentativa de decodificar mensagens divinas que lhe revelassem o destino. Na inquietude de se auto-definir, usou-o como um referencial ora próximo, ora distante, ora igual, ora completamente outro. No imaginário e nos mitos de muitas culturas, as fronteiras entre o homem e o animal foram frequentemente cruzadas. No sentido oposto, sobretudo na cultura ocidental, ao propor um ordenamento do mundo natural, o homem atribuiu ao animal uma posição subalterna. No afã de defender seu sistema filosófico, Descartes destituiu-o de sua animalidade, comparando-o a uma máquina, incapaz, pois, de experimentar o sofrimento. Na esteira de seu pensamento, a ciência moderna, em nome de um pretenso progresso, imolou-o no altar dos laboratórios. A partir do século XVIII os naturalistas e na seqüência os etólogos, passaram a estudar os animais independentemente do proveito que poderiam trazer para o homem. Em decorrência destes estudos, as fronteiras entre homem e animal revelaram-se cada vez mais porosas. Primatólogos propõem ampliar as fronteiras do gênero Homo para nele incluir os chimpanzés. Filósofos e cientistas nos conclamam a rever nosso conceito de humanidade. Com isso, surge um conflito crescente entre as novas sensibilidades despertadas pelo conhecimento e os fundamentos materiais da sociedade humana.
Longe de esgotar-se, a complexidade das relações homem-animal povoa, sob novas formas, o imaginário contemporâneo. A obra Bicho de Lygia Clark materializa esta percepção: o animal, como o homem, não é redutível a um plano único. Muitas aberturas são possíveis. Aberturas que a própria natureza propiciou. Mas que, de forma assustadora, a ciência e a tecnologia ampliaram: os trans-gênicos e os clones engendrados nos laboratórios, levam-nos à possibilidade de um futuro pós-humano, como mostram as inquietantes obras de Rodrigo Braga e Eduardo Kac. Isto num momento em que sequer sabemos definir o que caracteriza a nossa humanidade.
No sentido oposto, surge um movimento de resgate de nossa relação com o animal, de renovação de um pacto rompido pela postura utilitarista. Muitos artistas estendem ao animal um olhar indagador, sensível a suas qualidades. O animal, insondável e inquietante, tem um lugar central na obra de Goeldi. Como muitos viajantes que no passado aportaram no Novo Mundo, Ivan Serpa constrói um bestiário pessoal, numa espécie de inquietante transgenia poética. Marcello Grassmann percebe o animal como um espelho no qual se refletem as múltiplas facetas de seu próprio ser. Valeu-se desta percepção para desenvolver a capacidade de evadir-se em outras vidas, num procedimento metamórfico capaz de levá-lo ao fundo de si próprio. Dentro de uma concepção anímica, muito presente em sua produção artística, Mario Cravo Neto promove fusões que propiciam ao homem acesso, mediado pelos animais, ao sagrado imanente na natureza.
A exposição ANIMAL nos mostra o fascínio que em todas as épocas, o animal despertou na mente humana. Pela beleza, como mostram algumas obras expostas, mas também pelo mistério. Mistério que nos envia de forma inclusiva, ao interior de nós mesmos, idéia tão bem expressa nos versos de Oliviero Girondo: “Eu, pelo menos, tenho a certeza que não poderia suportá-la (a vida) sem esta aptidão de evasão, que me permite transferir-me onde não estou: ser formiga, girafa, pôr um ovo e, o que é mais importante ainda, encontrar-me comigo mesmo no momento em que havia me esquecido, quase completamente, de minha própria existência”.
Na contramão desta forma de relação mediada por laços de phillia, as figuras animais, que povoam a intimidade de um quarto de dormir na obra de Ana Elisa Egreja, evocam um movimento de distanciamento. Num mundo dominado por relações mercadológicas e pela cultura de massa, os espaços são preenchidos com zumbis, na mesma medida em que tudo, o animal e o próprio homem são esvaziados de sua interioridade.
Animal, Galeria Marcelo Guarnieri, Ribeirão Preto, SP - 13/11/2019 a 08/02/2020
Animal, Galeria Marcelo Guarnieri, São Paulo, SP - 22/11/2019 a 08/02/2020