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outubro 14, 2019
Respiração #15 anos por Marcio Doctors
Respiração #15 anos
MARCIO DOCTORS
“Talvez se pudesse dizer que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes encarniçados do espaço”.
Foucault [1].
O projeto Respiração é uma proposta de dessacralização; de permitir que a densidade do tempo histórico seja permeada pela voracidade pulsante dos “habitantes encarniçados do espaço” (Foucault)[2] no maior dos templos da contemporaneidade, que é o museu de arte. É nele que são guardados os vestígios sagrados, que secretamente sobrevivem ao tempo, insistindo em permanecerem no espaço, como sopros de vidas que não querem ser desfeitos pelo tempo.
É no museu que guardamos o tempo e foi nesse templo que ousei há 15 anos pensar em fazer que o espaço respirasse pelos poros da epiderme sensível do tempo. Do tempo agora. Do tempo aqui. Experimentar vendo como era possível que o clamor do atual se defrontasse com o sono parestésico do tempo, que sobrevive através das ficções históricas, alimentando o devir, que se faz futuro no presente. É desse tempo (quase atemporal) que o RESPIRAÇÃO trata porque anseia pelo espaço. Quer tanto a força da presença do espaço, que ao tempo museu não restou alternativa a não ser curvar-se e resignar-se a que, um dia, aqueles vestígios de espaço do tempo contemporâneo serão vestígios de tempo histórico também.
Todos os que por aqui passaram, e fizeram o RESPIRAÇÃO, fizeram-se tempo presente. Alimentaram a vaidade desse espaço que ansiava por ser para além do sonho de Eva Klabin. Fizeram-se tapetes voadores levando-nos de um tempo a outro, reinventando o espaço, nesse templo do tempo. Ah! A nostalgia do tempo… que insiste em ser como a procura do cego com sua bengala a beira do abismo, buscando o espaço tátil do vazio. É sobre esse risco que vos falo. Sobre esse limiar inebriante do cotidiano, que palpita entre as certezas e as incertezas de sermos para além, sendo aqui. São esses os poros da epiderme tempo, que se contrai e se dilata reconhecendo-se e desconhecendo-se, fazendo o espaço respirar.
Paul Valéry foi quem matou a charada ou a cilada ou quem talvez tenha chegado mais próximo do segredo que alimenta a esfinge arte (decifra-me ou devoro-te), ao enunciar: “O mais profundo é a pele”, que é o lugar onde estamos enquanto somos: no limiar da epiderme. O fora do dentro, o dentro do fora. É nesse lugar que a arte se reinventou, quando a ruptura pós-neoconcreta (Lygia Clark | Lygia Pape| Hélio Oiticica) ousou pensar que a obra de arte, só se faz quando se realiza na impregnação vivente de quem a experimenta. Entende-se fazendo. Não há uma supremacia da transcendência monopolizada pela alma privilegiada do tempo (o artista), nem a presença monolítica e enigmática do espaço (a obra de arte), mas a pulsão ativa de quem a vivencia, abrindo os flancos da respiração, produzindo o acontecimento arte, que não é outra coisa senão a identificação no fazer: a empatia. Reconhecer-se na identificação: encontro-me enquanto faço; descubro-me ali, experimentando; ali me reconheço, reconhecendo as setas do espaço, no meu tempo. É um ato em processo, que pertence a um, nenhum e cem mil (Pirandello).
O RESPIRAÇÃO tem, na sua origem, fazer a exegese da ruptura pós-neoconcreta. O projeto busca explicitar a pulsão que existe em nós entre o dentro e o fora. Entre o Eu e o outro, quando somos também o outro do outro. Quando percebemos que o espaço fora de nós no qual vivemos não é um vazio, mas um espaço tão real e concreto quanto o nosso corpo, como se fôssemos ora o verso, ora o anverso desse espaço. É o vazio pleno (Lygia Clark). Se há um espaço interior pleno, não significa que vivemos, em contraposição, em um espaço exterior vazio. O espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo ². É desse e nesse espaço heterogêneo, que o RESPIRAÇÃO quis fazer-se real. O projeto nasce do desejo de provocar a colisão de dois espaços, que desencadeasse em um; a transparência do tempo do outro. Um outro museu possível dentro de um museu, fazendo com que a irredutibilidade de um brilhasse ao encontrar-se com a irredutibilidade do outro.
[1] Foucault, M. 2013. Outros espaços. In: Barros da Mota, M. (org.). Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 142.
[2] Ibid., p. 414