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outubro 10, 2019
Camila Elis - Da alma, e as coisas suspensas por Bruna Fetter
O amor, sentimento tão desejado e, por vezes, temido. Que nos descola do chão e desloca o centro de gravidade, podendo levar do êxtase ao desespero, da alegria ao ciúme.
Amor carnal, amor platônico, amor que se apodera do nosso corpo, sono, fome, dos nossos pensamentos, da nossa alma. Esta mostra é sobre o amor. Não qualquer amor. Ela parte de um enamoramento da jovem artista Camila Elis pelos afrescos realizados por Rafael sobre a representação do mito de Psiquê e Eros no teto da Vila Farnesina, em Roma.
Poucas passagens da mitologia grega são tão expressivas dos mais profundos - e, ao mesmo tempo, cotidianos e banais - sentimentos humanos do que a narrativa da união entre esta mortal e um deus, ou sobre a conturbada relação que se estabelece entre a alma e o amor.
Em suas mais variadas versões, com distintos detalhes e alegorias, este mito expressa as idas e vindas, as venturas e desventuras, o lado sublime e o cruel que relacionamentos erótico-amorosos podem causar. Da elevação do ser à mesquinharia e inveja, do prazer à insegurança, da dor à cura.
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Segundo o mito, Psiquê - a mais nova das três filhas de um rei de Mileto - era extremamente bela. Tão bela que pessoas de diversas regiões iam até ela somente para admirá-la e render-lhe homenagens. Homenagens essas que costumavam ser prestadas somente à Afrodite, deusa da beleza.
Assim, a beleza de Psiquê desperta a inveja e ira de Afrodite, que pede a seu filho Eros, conhecido também por Amore ou Cupido, para utilizar uma de suas flechas e fazer a moça se apaixonar por um ser monstruoso. Eros se atrapalha frente à beleza de Psiquê, acaba atingido por uma de suas próprias flechas e apaixona-se por ela.
De outra parte, diz a fábula que o pai de Psiquê resolve consultar o oráculo de Apolo, uma vez que a filha, apesar da grande beleza, permanece solteira. O oráculo ordena que Psiquê seja levada ao topo de uma montanha e lá abandonada, para casar-se com uma serpente. Com medo, Psiquê é conduzida até este local, onde adormece, para acordar num maravilhoso palácio, provavelmente de um deus, no qual tem todos os seus desejos magicamente atendidos por ajudantes invisíveis. Ao anoitecer, ela finalmente encontra seu esposo - Eros - que, para esconder a união entre ambos de sua mãe, lhe diz que eles serão casados, mas que ela jamais poderá ver seu rosto. Ao ouvir a voz amável e sedutora de Eros, Psiquê se entrega a ele e se apaixona, vivendo em estado de felicidade plena.
No entanto, e apesar de sua grande felicidade, o tempo passa e ela sente saudades de suas irmãs. E, após muito insistir junto ao marido, vai visitá-las. As irmãs não acreditam na felicidade de Psiquê e, enciumadas, incitam-na a descobrir a identidade do marido, dizendo que se ele não mostra o rosto é porque há algo de errado. Ela, curiosa, cede à tentação e, enquanto Eros dorme ao seu lado, leva uma vela perto de seu rosto e uma faca para matá-lo, caso fosse realmente um monstro. Ao observá-lo dormindo, Psiquê se distrai com sua beleza e doçura, e uma gota de cera escorre e queima o ombro do marido, que acorda furioso e a expulsa do seu palácio dizendo que o amor não pode conviver com a suspeita.
Inconsolável por perder seu grande amor, Psiquê decide reconquistar a confiança de Eros. Para tanto, propõe-se a prestar homenagem à Afrodite e implorar seu perdão. A deusa, enraivecida por ter sido desobedecida e ainda ter que curar a ferida de Eros, impõe quatro tarefas a Psiquê, todas difíceis e perigosas. A última delas, de caráter mortal, leva Psiquê a descer ao mundo inferior e pedir a Perséfone um pouco da sua beleza em uma caixa para levar à Afrodite. Psiquê consegue transpor todos os obstáculos e seu objetivo lhe é concedido. No entanto, por insegurança, vaidade e, novamente, curiosidade, Psiquê abre a caixa. Ao invés da beleza, ela é acometida por um terrível sono que a impede de retornar.
Eros, já curado da ferida, descobre a tirania da mãe e vai ao encontro de Psiquê. Coloca o sono novamente dentro da caixa e a aconselha a ir até Afrodite para cumprir a última tarefa. Enquanto isso, ele mesmo vai a Zeus (Júpiter), pedindo que acalme Afrodite e celebre seu casamento. Zeus atende aos pedidos de Eros e abençoa a união eterna entre alma e amor. Em seu devido tempo, dessa união nasce Voluptas, ou o prazer.
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O que este mito representado nos afrescos pintados por Rafael no teto da Vila Farnesina há quase cinco séculos e os filmes “My summer of love” (2004), de Pawel Pawlikowski e “Candy” (2006), adaptação do diretor Neil Armfield do romance homônimo de Luke Davies, têm em comum? Além da manifestação do desejo de fusão com o outro, são, também, inspirações essenciais para a exposição Da alma, e as coisas suspensas, primeira individual de Camila Elis na Galeria Mamute.
Partindo de referências tão marcantes quanto diversas, a artista explora nas pinturas e desenhos abstratos presentes na mostra diversas emoções e experiências absolutamente humanas. Nas pinturas de grande formato, todas cenas estão em diálogo com passagens presentes nos afrescos de Rafael. Nesses trabalhos, Camila Elis ocupa o espaço de uma forma fluída, no qual as tintas e linhas compõem estruturas chamadas por ela de “moles”. Há momentos solares, outros mais obscuros, fugazes e frios. Há também o enamoramento e sua vertigem expressos em sutis camadas de cores que se avolumam gerando as típicas dualidades vivenciadas por quem se apaixona.
Já nos desenhos, embasados na decadência de “Candy” e suas tardes de extravagante prazer seguidos por ciclos de (auto)destruição, a artista enfrenta plasticamente as dificuldades de alguns relacionamentos (re)existirem. Passando do maravilhamento inicial às dores reais, aqui as linhas são mais contundentes, e a rarefação de manchas conduz a uma dureza não vista nas camadas executadas sobre linho. O papel e sua delicada aspereza ambientam desencontros inevitáveis.
Após o contato inicial, a paixão. E a escolha (seria mesmo uma escolha?) de se apropriar, de ter perto de si, de possuir esse alguém, esse algo, essa narrativa, essas imagens.
Camila Elis apaixonou-se por uma história e suas diversas representações e, a partir dessa referência conceitual e estética, construiu um universo imagético e sinestésico para lidar com suas fantasias, expectativas e decepções, uma perspectiva visual abstrata do sentimento. Para isso utilizou cores e formas, estruturas e corrosões. E assim entreviu o encontro da alma - essa coisa flutuante, intangível, elevada - com o arrebatamento causado pelo amor. Quem não gostaria de sentir o mesmo?