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setembro 11, 2019
A ponte é uma projeção que liga dois polos por Max Perlingeiro
A ponte é uma projeção que liga dois polos
MAX PERLINGEIRO
A idealização desta exposição/publicação - Leonilson por Antonio Dias – Perfil de uma coleção - iniciou-se em outubro de 2015 em Fortaleza, no Ceará, e prolongou-se até 2017. Durante longas conversas com Paola Chieregato e Antonio Dias, construímos juntos uma linha de afetividade.
Era a vontade de Antonio, além de mostrar a coleção, contar esta história, sua visão e sua amizade pelo “Leo”. E assim tudo começou: Milão, Itália. Outono de 1981. Madrugada fria. Estação de trem. Desembarca Leonilson, vindo de Madri. Depois de beber algumas xícaras de café para acordar, resolve ligar:
AD – Alô?
JL – Antoim!
AD – Quem é?
JL – É o Zé!
AD – Que Zé?
JL – O Zé Leonilson.
AD – E quem te deu meu telefone?
JL – Foi o Piza.
AD – Então vem pra cá!
Leonilson sai do Brasil em 1981. Chega a Madri, onde é recebido por seu amigo Luiz Zerbini. Faz sua primeira exposição individual internacional, “Cartas ao hombre”, na Galeria Casa do Brasil. Na Europa, decide viajar para Nienburg Weser, Paris, Cuenca, Frankfurt, Florença, Milão e Barcelona. Em sua chegada a Milão, foi recebido por Antonio Dias, que logo se admira com seu trabalho: “Ele bateu à minha porta em Milão recomendado pelo Piza. Se o Piza indicou, deve ser bom”. Leonilson conheceu Arthur Luiz Piza (1928-2017) em Paris, por intermédio de Geraldo Holanda Cavalcanti, embaixador do Brasil junto à Unesco (Paris 1978-1981).
Comentário de Leonilson sobre este momento, em conversa com Adriano Pedrosa em 4 de março de 1991, em “Leonilson: truth, fiction, conversas concentradas” (São Paulo, Pinacoteca do Estado, 2014. p. 224)
Eu tinha alguns desenhos que já tinha feito nesse meio tempo. E ele falou: “Ah, você é artista também...” Eu falei: “Sou”. Eu acho que falei: “Sou” – naquela época eu achava que era. Ele viu os desenhos, gostou e falou: “E para onde você vai agora?”. Eu falei: “Ah, não sei, acho que vou procurar um hotel”. Ele falou: “Não, vem morar aqui comigo, aqui em casa”. Ele morava sozinho nessa época, num apartamentão.
Desta época, seguem palavras de Antonio Dias:
Me mostrou alguns desenhos e fiquei encantado. Indiquei uma galeria em Milão do [Enzo] Cannaviello, que foi seu primeiro galerista e falei: “Não fala que me conhece, fala que é um jovem artista querendo uma oportunidade”. E deu certo. O galerista estava em busca de jovens talentos. Quando retornou para casa estava assustado. Disse que o cara queria comprar tudo. Em seguida, foi convidado para participar de exposições, entre elas Giovane Arte Internazionale na Galleria Giuli em Lecco. E passou um tempo na minha casa. Sua distração era ler tudo o que eu tinha disponível nas estantes. Apresentei-o também ao Bonito Oliva (1939), o criador da Transvanguarda.
Leonilson retorna ao Brasil ao final do ano de 1981. Pelas mãos de Antonio, conhece a galerista Luisa Strina, em São Paulo, e Thomas Cohn, no Rio de Janeiro, que adquirem seus trabalhos.
Uma vez estava sem grana em Milão, e o Antonio falou: “Luisa [Strina], o Leo está sem dinheiro aqui, como é que a gente faz? E ela falou: “Dá um dinheiro para ele e, quando ele chegar ao Brasil, me dá uns desenhos”. O Antonio me deu quatrocentos dólares, eu acho. E eu fui para Bolonha. (Conversas concentradas. p. 225)
Entre o Brasil e a Itália, a amizade solidificava-se, e os registros em sua agenda pessoal tornam-se mais frequentes. Em janeiro de 1982, conta Antonio Dias: “Veio para o Rio de Janeiro e passou uma semana na minha casa. Aí apresentei ao Thomas Cohn, que abriria uma galeria na Rua Barão da Torre, em Ipanema, em março de 1983”. Entre idas e vindas à Itália, cabe ressaltar a visita que fazem juntos a exposição “Transvanguarda”, no dia 2 de junho de 1982. Independentemente da mútua admiração, Leonilson sofre influências de Antonio Dias. Em sua tese, “José Leonilson: entre linhas e afetos”, Renata Perim diz o seguinte:
E nesse eixo – sobre a formação do artista – cabe falar também do interesse de Leonilson pela produção de Antonio Dias. Percebe-se que alguns elementos usados na década de 1980 já faziam parte do repertório de Dias, que vinha de uma geração anterior. É assim que Paulo Sérgio Duarte, ao falar da obra de Antonio Dias, da década de 1970, anuncia algo que ecoa na poética de Leonilson. O crítico aponta que Antonio Dias, “ainda que mantendo seu centro na reflexão sobre a prática pictórica e seus limites no mundo contemporâneo, se estende explorando diversos suportes e media, como o filme, o disco, as instalações e a performance.”
É aí que observamos uma inter-relação com o trabalho de Leonilson: a variação do suporte foi uma atitude empreendida por ele desde o início de sua produção artística. Dado o viés de aproximação entre os dois artistas, destaca-se outra observação do crítico:
Os trabalhos de Dias alcançam diversos momentos de riqueza plástica através de uma poética capaz de coordenar uma arquitetura rigorosa e despida de ornamentos com uma gratificante manifestação de cor associada a títulos/textos integrados na tela.
Daí, ao observar os trabalhos de Leonilson, já no início da década de 1980, se o uso da palavra como recurso conceitual e imagético é uma força expressiva, cabe também apontar para a natureza praticamente inventada do ornamento e da extensão da cor (uma situação quase oposta ao que acontece com Dias), como elementos de um desejo que se instalam em definitivo e inscrevem a marca do artista. Guardamos aqui o recurso conceitual, dessa proposta de Antonio Dias, de submeter a matéria à “arquitetura do conceito” (Ricardo Basbaum, em “Arte contemporânea brasileira – texturas, dicções, ficções, estratégias”, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2001, p. 89). Leonilson parece ter absorvido o suficiente para aderir à geração que o evidenciou, mas filtrando o fluxo com uma espécie de respiração interna de sua relação com a arte, e que suas vivências tornavam possível. O exercício do prazer de pintar.
Em meados dos anos 1980 até o início dos anos 1990, Antonio fica a maior parte do tempo na Europa, entre Itália e Alemanha, mas, sempre que possível, sua correspondência com Leo mostrava o entusiasmo com o sucesso do amigo no Brasil. O retorno dessa nova temporada de viagens de Leonilson ao Brasil é festejada com muitos convites para exposições, tanto nacionais quanto internacionais, além das mostras simultâneas nas duas maiores galerias brasileiras, Luisa Strina (São Paulo) e Thomas Cohn (Rio de Janeiro). O ano de 1985 é bastante agitado para o artista: participa da XII Nouvelle Biennale de Paris, da coletiva “Nueva Pintura Brasileña”, no Centro de Artes y Comunicación, em Buenos Aires, com os amigos Leda Catunda e Sérgio Romagnolo. Participa, ainda, da XVIII Bienal Internacional de São Paulo, apresentando seus primeiros trabalhos tridimensionais, com pirâmides de livros e globo de cobre. Nesse ano, também conhece o artista alemão Albert Hien, com quem desenvolverá projetos conjuntos e uma exposição.
Em entrevista, Leda Catunda relata o período de aproximação com Leonilson e os primeiros anos de amizade e de produção, assim como a amizade com Sérgio Romagnolo:
“Nos conhecemos em 1983 porque ele foi à exposição que nós estávamos fazendo, ‘Pintura Como Meio’, no MAC-USP. Era eu, Sérgio Romagnolo, Ana Tavares, Ciro Cozzolino, Sérgio Niculicheff, e ele ficou supercontente com a exposição. Ele já havia feito duas individuais na Luisa Strina e no Thomas Cohn, saído na ‘Veja’, as pessoas já o conheciam. Daí, ele me ligou e falou: ‘Ah, eu vi sua exposição, gostei tanto, vamos nos encontrar’. E aí foi que a gente se encontrou e teve essa coisa que hoje percebo como foi rara, pois nos demos muito bem e muito rápido! E para sempre, né? A partir do momento em que nos encontramos, passamos a nos encontrar toda semana, até uma hora que a gente se encontrava todos os dias e também ele teve essa proximidade com o Sérgio Romagnolo, até que o Sérgio foi morar na casa dele e nós nos tornamos um grupo muito próximo e ele tinha muita identificação com o meu trabalho. Acho que gostava da coisa dos tecidos. Quando ele frequentava o meu ateliê e eu o dele, nós íamos comprar tecidos juntos. Então, a gente tinha essa proximidade. Então, nos encontramos por uma iniciativa dele e, também, começamos a trabalhar juntos na mesma galeria, porque ele nos apresentou. Fizemos uma coletiva em 1984 na Luisa Strina, eu, ele o Sérgio, o Ciro, e depois na Thomas Cohn.”
É através de um contato e uma indicação de Leonilson que alguns amigos têm acesso à exposição “Como Vai Você, Geração 80?”. Também nesse período mantém o primeiro contato com Daniel Senise, como relata Leda Catunda na mesma entrevista:
“[...] como o Leonilson era o mais conhecido, o curador, que era o Marcus Lontra, entrou em contato com ele e ele disse: ‘ah, sim, eu e os meus amigos vamos ficar na sala principal’. E arranjou a sala do Parque Lage para nós, a do meio mais ao fundo. Eu me lembro que havia uma pintura bem grande do Daniel Senise na frente, que a gente também foi conhecer naquela mesma época, e nós quatro ficamos dentro dessa sala, que era a sala de visita, apesar de que é uma sala toda decorada, muito difícil de mostrar, mas foi também através do Leonilson o mais famoso.
Sabendo da saúde frágil de Leonilson, Antonio Dias escreve uma última carta em 3 de maio de 1993, poucos dias antes de sua morte.
“[...] Agora, eu penso em você todo dia. O ano passado foi muito duro, acabei ‘estressado’. Fui passar uns tempos em Milano, tive outra paralisia no rosto e fui me curar com o chinês. Antes de voltar, peguei dois trabalhos seus e resolvi trazê-los para Colônia. Todo dia passo em frente e lembro de você.
Fiquei muito emocionado quando recebi sua carta com a Biblioteca/Espelho. E gostei tanto do que a carta dizia. Gosto muito de ter você como amigo. Estou pensando naquela ponte que você fez em Milano, que agora está no ateliê do Rio. Fica lá pegando poeira, mas eu não me importo, não consigo entender aquilo dentro de uma caixa de acrílico. É interessante caminhar em cima da ponte, fazer a ponte. Neste momento eu não sei aonde estou na ponte. Acho que é ainda naquele pedaço horizontal, que liga dois polos. Uma ponte é uma projeção. Aonde acaba a ponte? Acaba onde toca um outro ponto. Creio que isto é a maravilha da compreensão. Eu só vou chegar no Brasil em fins de julho, gostaria muito de lhe rever e dizer novamente que eu gosto mesmo de lhe ter como amigo.”
Infelizmente, não deu tempo.
Max Perlingeiro