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setembro 1, 2019
Lição doméstica por Ana Prata
Lição doméstica
ANA PRATA
Vivemos um tempo de autoritarismos, de maneira latente ou manifesta. Lidar com esta realidade não está fácil, até mesmo atividades rotineiras e banais parecem ter seus sentidos postos à prova. Há quem diga que a arte tem que apontar caminhos, encontrar respostas, que ela tem esse papel. Eu acho que a arte não TEM QUE nada, arte é um espaço de liberdade, sem obrigação alguma. A arte PODE muitas coisas, inclusive apontar caminhos, e podendo ser tanto, ela não impõe obrigações a priori, nem para o artista, nem para o público. É muito bom que cada um tenha interesses e necessidades variadas, mesmo quando pertencem à mesma identidade de gênero, classe social, raça e etnia, orientação sexual, território, escola, família, etc. Que a linguagem possa ser um caminho para devires múltiplos e sem regras pré-estabelecidas.
Leandro Muniz, Marcelo Pacheco e Thomaz Rosa se articularam para fazer uma exposição de curta duração no ateliê de um deles. Os artistas estão no começo de suas trajetórias e, além da prática artística, exercem outras ocupações. Chamaram a exposição de Featuring celebrando a parceria, já que são três contemporâneos fazendo essa parceria pontual. E o nome tira onda também, é sério mas não é, estilo super star (como nos feats da música pop).
Eles começaram como quem arruma sua casa, organiza e cuida do que é seu, um gesto que eu entendo como muito necessário para os dias de hoje. Um trouxe seus “varais”, panos azuis com padrões que lembram estampas para pijama ou lençol, clarinho e monótono. Nos tecidos ele insere suas pinturas em retângulos, pinturas abstratas, flores, o céu, entre outras ideias que nascem do desejo. São gestos relativamente simples, que num segundo momento lidam com outras questões, como usar o espaço, como dividir, como traçar percursos na escala de um cômodo. Estas ações me fazem pensar no trabalho doméstico, aquele que os "homens de negócios" entendem como limitado, sem influência, inútil, completamente apartado do espaço público.
O segundo artista decidiu fazer um toldo, porque vem olhando a beleza das faixas, e tem se dedicado, no seu tempo livre do trabalho, a pintar faixas e abstrações geométricas. O toldo é um trabalho novo que foi construído para a exposição, caso chova poderemos ficar ali embaixo, se não chover, poderemos olhar, deve ser um pouco torto, o que é bom de olhar. Tem também um pedaço falso de toldo, que é no fundo só uma pintura.
O terceiro mostra pinturas, estas são uma pequena coleção de objetos para serem dispostos no espaço. São objetos para aguçar a percepção. Algumas têm outros objetos colados ou apoiados, coisas pequenas, como pregos, que estavam fáceis ao alcance da mão; têm relações cromáticas marcadas e premeditadas, são quase escultura por vezes, ou parecem o que não são, como uma folha de caderno ou a superfície lunar. Outras são pintura de céu, eu penso que uma pintura de céu de alguma forma está sempre carregada de tantas outras e infinitas tentativas de pintar o céu, acho que trazem essa lembrança.
O céu, por sinal, parece ser o protagonista nesta exposição. Lembramos dele pela memória que o varal traz, pelo toldo, e pelas próprias representações pictóricas. É interessante como fazeres que parecem domésticos nos apontam para o céu azul, onde não tem deus, nem presidente; onde não há ninguém, mas é o teto do nosso mundo comum, um limite visível, limite apenas visível.
Cada um também vai pintar uma camiseta de papietagem, esculturas pintadas. Camisetas servem para sair e para ficar em casa, camisetas são de banda, de protesto, são propaganda, podem ser arte. Camiseta é um objeto comum, não dura para sempre e isso é bom.
Ninguém sabe exatamente onde está o front da batalha dos dias de hoje, e parece que temos muitos inimigos de fato, existem sérios projetos de destruição em curso. Talvez seja de grande valia fazermos uma lição doméstica e identificar nossos desejos, e começar por eles, aqueles que nos movem a traçar caminhos; cada um sabe do seu teto, o tamanho da sua casa, que pode ir do corpo ao céu, do micro ao macro.
Queria dedicar este texto às mães deles três, que não conheço, mas sei que elas foram boas e eles as amam. E, por fim, escrever Lula Livre, para que não nos esqueçamos da nossa história.
Ana Prata
agosto de 2019