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abril 5, 2019
Reencenar a pintura por Daniela Name
Reencenar a pintura
DANIELA NAME
William Shakespeare tinha certa predileção por fantasmas. Pilar do teatro na parte do planeta que aprendemos a chamar de Ocidente, o dramaturgo inglês usou personagens mortos, que voltam à cena para uma sobrevida, em Hamlet, Júlio Cesar, Macbeth e Ricardo III, além de outros textos menos conhecidos. Os fantasmas de Shakespeare não são aparições efêmeras e assustadoras de um sobrenatural; eles se misturam aos “vivos” e, mais do que isso, são os propulsores da ação daqueles que ainda têm corpo e respiram. Tais personagens são, ainda, uma espécie de veículo estético para o inconsciente, ou, se o leitor ou a leitora deste texto preferir, para o que não está mais ou nunca esteve visível para a plateia.
Ao longo dos mais de 30 anos de atividade artística, Daniel Senise tem construído uma obra que também pode ser compreendida como uma conversa com fantasmas. Museu, exposição que o Instituto Ling apresenta em Porto Alegre, reúne um conjunto de trabalhos que exacerba e coagula essa característica.
Não escolhi falar de teatro aleatoriamente: a grandiloquência cênica, monumental, quase operística, marca o início da trajetória do artista, nos anos 1980. Conhecido como a “década da pintura”, esse é um período que apresenta questões muito mais complexas que a reabilitação de um suporte – que, diga-se de passagem, jamais foi descartado completamente pelas gerações anteriores. Depois de dada como morta por parte da crítica, a pintura se reafirma apenas como o veículo mais direto, especular e frontal para que se discuta outro retorno: o de uma relação afetiva com as imagens, postas em xeque pela crise da representação. Moribundas, as imagens voltam a ser reexaminadas pela geração de Senise, e esse grupo de artistas projeta para elas novas possibilidades de encarnação.
Não por acaso, boa parte da geração brasileira que iniciou a carreira fazendo a dramática pintura dos anos 1980 encontrou caminhos diversos para dar continuidade ao seu reencontro com a imagem. Alguns migraram para outros meios, caso de Nuno Ramos, com sua obra literária e multifacetada, ou Angelo Venosa, uma das matrizes do (re)entendimento da escultura como um corpo aos pedaços; um corpo, enfim, feito de imagens. Senise, por sua vez, é seguramente um dos maiores representantes de um grupo de construtores de outra pintura. Ela se dobra sobre sua história e seus vocabulários para se transformar em um suporte híbrido e caleidoscópico, capaz de deixar entrever a imagem recalcada, fazendo-a luzir não como imagem em si, mas como memória.
Em sua última aparição para o filho Hamlet, o fantasma do pai recomenda que ele confronte a mãe, Gertrudes, supostamente cúmplice do assassinato do marido: “Mas, olha, o espanto domina a sua mãe / Coloca-te entre ela e sua alma em conflito; / Nos corpos frágeis a imaginação trabalha com mais força. / Fala com ela, Hamlet”.
Fale com ela: o enfermeiro violador que se relaciona de múltiplas maneiras com uma paciente em coma, entre a vida e a morte, no filme de Almodóvar. “Nos corpos frágeis a imaginação trabalha com mais força”: repensar o palco, estudadamente precário, através do qual os fantasmas possam vir a conversar sobre aquilo que já não está. Ou como na famosa passagem do Retrato de um artista quando jovem, de Joyce, imaginar um tempo e um lugar para a “ausência como a mais elevada forma de presença”.
A relação com uma ideia de “aparição” e com figuras que parecem se tornar visíveis de modo espectral é muito forte na obra de Senise desde os primeiros trabalhos em tinta a óleo. Poucos demonstraram isso de modo tão evidente quanto a pintura sem título de 1986, em que um pódio vazio, à frente da cena, não consegue esconder as três figuras fantasmáticas ao fundo. Esse é um trabalho que ilumina o que o artista fez antes, com as obras seminais em que pedaços de corpos, de objetos e de construções arquitetônicas se acumulam aos fragmentos. São vestígios de algo que talvez já não habite um corpo presente, mas segue afetando e importando, numa reencenação que o crítico Wilson Coutinho chamou de “teatro das sensações mutiladas” [1].
A pintura do pódio também poder ser vista como um emblemático retrato histórico dos anos 1980, tempo de especulação financeira, de projeção de vencedores vazios, de flutuação de signos e, especificamente no Brasil, de uma transição política para a chamada redemocratização, coalhada de corpos insepultos e desapontamentos. Por fim, essa é uma obra que ajuda a compreender melhor o que o artista faria cerca de dois anos depois, com a tinta acrílica se misturando à tinta a óleo na elaboração das telas, e com os espaços vazios passando a importar tanto ou mais que as figuras. Estas passam a ser tratadas como corpos não identificáveis, fósseis que quase estalam de tão vivos, mas são provenientes de um tempo e de uma dimensão que nunca saberemos ao certo quais são.
Nessas obras de 1988 e dos anos imediatamente seguintes, Senise já começa a experimentar a monotipia na preparação dos fundos das pinturas. A técnica de impressão passa a emular, na própria constituição material das obras, as ideias de ausência/supressão e de trânsito vindas de seu campo simbólico. Isso adquire uma voltagem ainda maior quando se percebe que a monotipia usada pelo artista vem do chão, registrando inicialmente as marcas arquitetônicas do piso de seu próprio ateliê, do qual também se incorpora todo tipo de vestígio (poeira, marcas de tinta). Mais tarde, o artista passaria a fazer um inventário de pisos, colecionando impressões dos lugares mais variados e guardando-as organizadas como uma paleta de cores – dos marfins quase brancos aos marrons quase negros. Além de mexer com a ideia de frontalidade e verticalidade que marca a história da pintura, com o uso do chão Senise passa a tratar essa outra pintura como um corpo constituído real e alegoricamente por outros corpos, e, mais do que isso, como um corpo que se alimenta material e imageticamente da arte e de suas histórias.
É um corpo de resto, o “corpo frágil” de que nos fala o fantasma do pai de Hamlet. Ao longo dos anos 1990, o artista experimenta variações para a monotipia. Em trabalhos como Quase infinito (1992) e as telas da série Bumerangue (1995), as imagens são constituídas por ferrugem, desprendida de pregos tratados quimicamente e depositados sobre a superfície da tela. Especificamente em Bumerangue, ocorre mais uma vez uma encruzilhada entre o campo material e o campo simbólico do trabalho. A imagem apresenta trajetórias de bumerangues no espaço – desenho de um objeto ausente, que não está mais lá. Por sua vez, a “tinta” que dá forma a esse desenho ausente é também memória de corpos-fantasmas, os dos pregos que morreram um pouco para tirar de si a ferrugem, transformada em pigmento.
Aquilo que falta está ainda na série Ela que não está (1994), em que Senise reconstitui a marca deixada por uma sepultura em um afresco de Giotto, na Igreja de São Francisco, em Florença. O protagonismo dessa imagem, proveniente de outro tempo e outro espaço, permeia toda a trajetória do artista e, a partir dos anos 1990, passa a se referir mais claramente à história da arte. Além de Giotto, Senise já se apropriou de obras de Caspar David Friedrich, Michelangelo e James Whistler, adulterando-as, velando-as integralmente ou abrindo mão de alguns de seus detalhes fundamentais.
Museu reúne um conjunto de pinturas recentes que retratam salões de importantes museus ao redor do mundo – caso da National Gallery, em Londres, e da Frick Collection, em Nova Iorque –, além de aquarelas que reproduzem a padronagem dos pisos de madeira de instituições culturais. Andreas Huyssen [2] lembra que, a despeito de sua eventual histeria espetacularizada, museus são hoje uma espécie de ruína, uma nostalgia de outro tipo de relação com a imagem. Eles apontam para a saudade de um diálogo mais vagaroso e áspero, distante da aceleração das redes sociais e suas fotografias produzidas num turbilhão ininterrupto, mas efêmero e deslizante, com pouquíssima aderência à memória.
Assim como na obra de Shakespeare, os espectros de outros tempos jamais foram assustadores para Senise. Muito ao contrário: as imagens que faltam são a possibilidade de uma conversa ancestral; são seu pai e sua mãe. E o conjunto de obras reunidas em Museu evidencia como a imagem latente – ela que não está – atinge uma força radical ao ser sequestrada dos espaços arquitetônicos e simbólicos que foram concebidos para guardá-las. Ela é talvez mais presente em sua ausência do que seria em sua representação.
Isso ocorre não apenas pelo fato de que os tortuosos caminhos da memória nos induzem a reconstituir ambientes conhecidos – caso da clássica sala do Museu Nacional de Belas Artes (2016), no Rio de Janeiro, com todas as obras que traduzem o imaginário épico de Victor Meirelles e Pedro Américo –, mas também por diálogos mais enviesados com a história da pintura. Em Rothko Chapel (2018), por exemplo, a presença de retângulos monolíticos em carvão é o avesso e o direito da atmosfera do próprio Rothko – geometria ascendendo na direção da luz. Já em Musée d’Arts de Nantes (2018), as manchas em carvão reconstituem as paisagens subtraídas das paredes do primeiro ambiente, mas temos ainda o olhar sendo convidado para uma perspectiva esfacelada. Vemos um museu que tende ao infinito, no fundo que mais parece uma sucessão de pinturas dentro da pintura, como As meninas, de Velázquez.
Em Museu, a presença das aquarelas retratando os pisos de instituições culturais é como uma resposta, mais um eco lançado nessa casa de espelhos da pintura. Senise devolve ao chão tudo aquilo que vem roubando dele, como alguém que oferece abrigo para essas imagens à deriva – um entendimento profundo da palavra “reconfiguração”. Assim como Hamlet, que conversa desenvoltamente com o fantasma de seu pai, o artista vem lidando com o legado de imagens da história da arte como um fóssil em brasa, o leitfossil em constante movimento que Didi-Huberman identifica em toda a catalogação de Warburg [3].
O príncipe atormentado de Shakespeare monta uma peça dentro da peça, num paradigma para a metalinguagem artística. Ao dar outra vida para esses museus amputados, Senise reencena a pintura dentro da pintura, num jogo de reflexos por vezes dilacerante e inquisidor: o que temos feito com as imagens que nos importam?
NOTAS
1 No catálogo da participação de Senise na XVIII Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1985.
2 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
3 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.