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março 15, 2019
Zona Mineral por Pedro David
Zona Mineral
PEDRO DAVID
Em 1951, Carlos Drummond de Andrade, publica o livro Claro Enigma. Em um de seus poemas mais reconhecidos, A Máquina do Mundo, descreve, em forma de delírio de um caminhante vespertino, a aparição de uma enorme instituição, quase viva, que parece querer mostrar-se capaz de trazer à humanidade toda a resolução sobre seus anseios, recursos, e riquezas – materiais. Ao alter ego caminhante, que não por acaso descreve a estrada como “pedregosa”, paira a ameaça, ou apenas uma sugestão para que aceite o mundo como vem sendo construído. Tudo é metáfora. Linguagem sofisticada para falar da vida.
As imagens que Rodrigo Zeferino apresenta, em sua nova série de fotografias, nos colocam de frente para a Zona, centro do limitado universo em que adentramos para tentar entender as motivações do artista que converge sua atenção para onde seus vizinhos parecem não enxergar nada além de seu sustento.
O grande caldeirão de sonhos minerais que alimentam seu mundo quadrilátero.
Uma gigantesca máquina, iluminada, digere em moto perpétuo todo o minério que vem carregado por aquele trem-monstro, de cinco locomotivas – o trem maior do mundo, tomem nota *. Sua luz, seus sons, e vapores podem ser sentidos por toda a parte. Qual será o limite entre a máquina e seu mundo?
O vizinho Rodrigo, natural da cidade de Ipatinga, que circunda o enérgico colosso iluminado, retoma a técnica da fotografia noturna ¬para interpretar, inicialmente, a complexa relação entre vizinhos. Os pequenos e o grande, que sustenta e comanda toda a comunidade que surge a partir de seu próprio advento. E o acompanha à maneira que é acompanhado por suas atividades.
Como o Stalker, personagem central da novela dos irmãos Strugatsky, magistralmente adaptada para o cinema em 1974 pelo diretor russo Andrei Tarkovsky, o artista circunda a Zona, uma área de exclusão, que teria sido o ponto de contato de um meteorito, ou de “seres do abismo cósmico”. Ao executar tarefas específicas, interpreta o entorno, tenta entender como seus vizinhos relacionam-se com a lendária máquina. Segue rigorosamente sua investigação ao explorar minuciosamente as possibilidades de registro desta relação. Cumpre os requisitos próprios de seu processo sem profanar a tangente da Zona, regra sine qua non para a criação da série O Grande Vizinho.
Mas como seu destino parece ser gauche, não poderia ater-se para sempre em sua própria regra. Ao contrário do personagem de Drummond, que resiste à tentação, e prefere não enfrentar a treva espessa que emana de seu delírio *, Rodrigo aceita o magnetismo da máquina, não sem receio de reimprimir um clichê, ou passar a serviçal.
Depois de também relutar em responder a tal apelo assim maravilhoso *, abandona a órbita inicial. Conscientemente deixa-se seduzir pela força centrípeta que emana da Zona e penetra o mundo paralelo da máquina. Lá de dentro não perde a esperança mais ínfima – esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra *. E na presença de uma indelével e infindável pulsação, pode envolver-se em sua luz, sua fumaça, seu produto, e adentrar “o quarto”, que segundo o Stalker, atende aos anseios de quem o alcança.
Mas a Zona só realiza os desejos mais profundos e inconscientes. E o mundo é regido pelas leis do ferro fundido.
Podemos imaginar qual a quantidade necessária de matéria mineral para que este gigante se mantenha acordado noite e dia? Qual seria o papel destes pequenos habitantes periféricos nesta atividade de tantas toneladas por hora? Perguntas aparentemente simples que lançadas à luz que emana dos registros desta existência, parecem um convite para o espectador ativo refletir sobre nossa sina ancestral de provedora de matéria prima para o mundo real. E sobre os sucessivos golpes por que passamos aqui na porção sul do planeta.
* com as palavras do próprio poeta, insubstituíveis.