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fevereiro 15, 2019
Cobra criada, de Frederico Filippi, por Fábio Zuker
Cobra criada, de Frederico Filippi
FÁBIO ZUKER
O convite que recebi de Frederico Filippi para escrever esse texto, ainda que curto, me coloca uma série de desafios. Alguns deles são de ordem pessoal e importam pouco, ou quase nada, para além do fato de que já há alguns anos não tenho mais escrito sobre arte, tendo voltado meu olhar para as violentas realidades amazônicas, o que, aliás, foi seguramente o motivo do convite. Outros desafios emergem propriamente das obras - e esses sim importam mais: como escrever sobre trabalhos que tomam forma precisamente na recusa de um discurso direto e inequívoco para aludir ao cenário de destruição do território amazônico?
Essa recusa por uma forma discursiva certeira, afastando-se de um tom sociológico que muitos trabalhos artísticos que se inserem nesse campo adquirem, possui profundas consequências, no imbricamento entre política e estética. Frederico rejeita a problemática posição de autoridade implicada no "falar sobre", para experimentar pensar esses processos de destruição a partir dos próprios materiais.
Ao se aproximar daquilo que, de longe, aparenta ser um conjunto de frases articuladas na parede da primeira sala da exposição, o espectador se depara com a obra "Cobra Criada", que dá nome à exposição, formada por diferentes níveis alinhados de correntes de motosserra. A motosserra emerge como símbolo desarticulador de um discurso oficial que se pretende dotado de significado; como um índice de realidade, traz à tona a violência que palavras oficiais, proferidas por políticos e companhias em nome do meio ambiente, escamoteiam. Incide também sobre os discursos de grandes produtores agropecuários, cujas mãos manchadas de sangue não impedem a busca por selos verdes que garantam a exportação de seus produtos.
Na série "Se uma lâmina corta um olho, uma selva azul escorre dele", chapas pretas de metal cortante servem de base para os desenhos do artista, assim como na série "Existentes", desta vez sobre lascas de madeiras brasileiras já processadas e transformadas em compensados prensados e folheados. A escolha dos materiais não é fortuita. Embora ambos sirvam de suporte ao desenho, território em que Frederico se sente à vontade e se identifica, os materiais estão em patente confronto, e tudo se passa como se os trabalhos fossem resultados desses embates. No caso das lâminas pretas, a agressividade do material libera seus próprios fluxos de imagens, quer como desenhos aleatórios (próprios ao corte e manejo das chapas), quer pela mão do artista. Existe um paralelo entre essa forma de desenhar, que Frederico já vinha realizando em seu trabalho, e o seu recente interesse pelos fosfenos, feixes de imagens que surgem a partir de um estímulo na retina ocular, causados por movimentação rápida, luminosidade ou alucinógenos; uma forma de agressão que libera um fluxo imagético. Já na série de desenhos sobre madeira, intitulada "Existentes", o material se inspira no Memorial do Massacre de Eldorado dos Carajás, e é, de certa forma, expandido para além do massacre de 19 trabalhadores sem-terra assassinados pela polícia no interior do Pará. A motivação primeira do artista era elaborar um pedaço de madeira para cada pessoa assassinada por conflitos por terra no Brasil, a partir da contagem realizada pela Comissão Pastoral da Terra - intento que se tornou impossível diante do número elevado de pessoas assassinadas. Pode-se dizer que o trabalho converte as madeiras em testemunhas das destruições e das violências no campo e nas matas brasileiras.
A motosserra que corta a madeira, os desenhos feitos sob as chapas de metal e o metal que desenha na madeira; em todos os trabalhos da exposição, o confronto, o atrito entre esses materiais, de alguma forma, enseja choques comuns nas paisagens amazônicas. Estas, por sua vez, passam por um violento processo de sobreposição: uma multiplicidade heterogênea de formas de vida é incessantemente destruída por um projeto de homogeneização em que monocultura e desenvolvimento se pretendem sinônimos.
Na primeira vez em que tomei um barco entre Belém e Santarém, em 2016, me impressionaram os tamanhos dos descampados às margens do rio Amazonas. Ainda mais incômodo é ver o avanço de campos de soja sobre a floresta derrubada: são como barragens no meio do mato, monoculturas que sobrevivem apenas a base de inseticidas, que tentam conter os fluxos das múltiplas formas de vida em luta para transformar soja em mato novamente. Na orla de Santarém, a logística do escoamento da soja produzida às margens do Tapajós torna visível outro confronto, entre duas formas de economia: uma de circulação de bens entre comunidades tradicionais e a cidade, outra de passagem de toneladas de grãos cujos lucros são concentrados, e que de excedente deixa apenas rastros da destruição do território e das formas de vida humana e não-humana.
Vale terminar esse breve texto com uma anedota, entre tantas que marcam os equívocos constitutivos do encontro de mundos entre indígenas e brancos. Lévi-Strauss, antropólogo francês que dedicou grande parte de sua vida ao estudo do funcionamento do pensamento indígena da América do Sul e suas formas de compreender o mundo, descreveu certa vez uma situação que vivenciou entre os Nambikwara. Enquanto Lévi-Strauss e os indígenas se preparavam para troca de presentes entre grupos diversos, o antropólogo distribuiu folhas e lápis aos Nambikwara, que ficaram rabiscando. Apenas o chefe Nambikwara tomou o seu caderno e imitou Lévi-Strauss, fazendo desenhos e rindo de si mesmo, apresentando-os para o antropólogo como se este pudesse decifrar os significados. Para o antropólogo francês, este seria o momento de surgimento da escrita entre os Nambikwara: não pela via do aprendizado difícil, mas dissociando os seus símbolos da realidade a que aludem.
Jacques Derrida revisita a cena para explorar justamente o seu oposto, que no contexto em que vivemos, me parece mais potente: o desafio é pensar que outras formas de criação de significado, e portanto de escrita, operam para além do nosso paradigma moderno sobre o que é escrita. Um traço, uma pintura corporal, um desenho, a construção de uma aldeia ou o manejo da floresta criam e são dotados de significado. Nos convidam, portanto, a repensar o que é a escrita, em afinidade com o imperativo que o mundo contemporâneo nos coloca, de buscar outras formas de falar. Instigação essa que talvez seja um dos fios condutores da pesquisa de Frederico, e que pode ser experimentado na exposição Cobra Criada.
* Fábio Zuker é antropólogo, jornalista e curador