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setembro 22, 2018
Julio Le Parc: Quem pode se interessar pelo que algumas crianças pensam sobre uma exposição?, por Rodrigo Moura
“Quem pode se interessar pelo que algumas crianças pensam sobre uma exposição?” [1]
RODRIGO MOURA
A resposta a essa pergunta tem o nome de seu formulador: Julio Le Parc. Desde que sua obra surgiu no meio da arte internacional, no fim dos anos 1950, em Paris, Le Parc é defensor de uma espécie de democracia nas artes. Como forma de aplicar sua formação marxista, com seus valores pró-participação e pró-emancipação, ele pensa que, na arte como na política, todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. E nesse sentido, ninguém melhor do que as crianças para se afetarem, opinarem e fazerem a roda do tempo girar.
“É proibido não participar.
É proibido não tocar.
É proibido não quebrar.”
Assim proclamava o pioneiro manifesto do GRAV (Groupe de Récherche d’Art Visuel), em outubro 1963[2]. Neste credo, um tanto idealista, a arte tem a capacidade de ativar o potencial libertário de cada um de nós por simplesmente despertar nossas faculdades perceptivas. A pura forma se torna assim política, e faz emergir com força a noção de espectador, como êmulo do eleitorado ou de uma massa revolucionária. A forma ensina a libertar, propunham, numa revisão radical dos ensinamentos construtivos do início do século. “Um espectador consciente de seu poder de ação e cansado de tanto abuso e mistificação poderá fazer, ele mesmo, a verdadeira ‘revolução na arte’”, profetizavam.
A emergência dos artistas cinéticos em Paris coincide o aparecimento de outras manifestações grupais, tendo a cidade luz (sem trocadilho) como centro, no início dos anos 1960. Penso aqui especialmente nas obras literárias que experimentavam com a forma, reunidas em torno do grupo Oulipo (sigla para Ouvroir de Liettérature Pottentielle ou Oficina de Literatura Potencial), ou mesmo na nouvelle vague, no cinema, ou, ainda, anos antes, no advento da musique concrète. Todas essas iniciativas visavam libertar o espectador ou leitor das amarras do ilusionismo naturalista, ao exporem os alicerces da criação artística e fazerem com que ele ou ela participassem mais ativamente da mesma. Alguns livros poderiam ter mais de um desfecho ou ordens de leitura (como no Cent mille milliards de poèmes, 1961, de Raymond Quéneau, em que os versos dos poemas podem ser recombinados na leitura por meio de cortes nas páginas do livro), e os filmes desconstruíam algumas das bases da verossimilhança, como a sincronia entre som e imagem. As propostas de Le Parc, como seu Piso instável (1964) ou seus relevos luminosos de mecanismos aparentes, também buscam essa tomada de consciência por parte do espectador.
Retomar contato com as obras e as ideias de Le Parc quando ele completa seus 90 anos é uma oportunidade de reativar essa crença no papel emancipatório da arte – hoje sem o dogmatismo que regia suas ideias iniciais junto ao grupo de arte cinética – e a esperança de que ela seja portadora de uma oportunidade de transformação.
Igualmente oportuno é constatar a vitalidade de Le Parc, produzindo obras novas. Vamos chamá-las de novas, mas apenas porque são produzidas nos últimos meses, uma vez que elas se reportam a ideias e projetos que habitam sua obra há décadas. É dessa liberdade de tempo de ação, sem a urgência dos anos iniciais, que Le Parc nutre sua vitalidade atual. Por isso, a maneira ideal de ver suas obras seria numa espécie de retrospectiva permanente, algo que eu chamaria, não sem algum humor, de Parque Le Parc, onde os ambientes pudessem conviver com as pinturas, os jogos com os relevos e assim sucessivamente, num contínuo em transformação que formasse um espaço quase onírico de libertação, otimismo e consciência do eu.
Na exposição na Galeria Nara Roesler, estamos diante de recentíssimos exemplos das Alquimias, que remetem a séries anteriores de pinturas, desde as Modulações, dos anos 1970. Aqui Le Parc está mais uma vez interessado na ideia de permutação cromática e de refração da luz na superfície, criando possibilidades de vibração a partir de planos sobrepostos, círculos concêntricos, espirais e fitas de Moebius. O que mais chama atenção nessas obras é sua capacidade de evocação ambiental, como se cada tela fosse um corpo espacial com profundidade e luminosidade próprios, evocando o dilema olho/corpo, um antigo problema colocado pela obra de Le Parc. Ver e sentir são sensações que se confundem. Minha reação imediata a essas pinturas é andar para seus interiores, tragado pela sensação hipnótica de suas formas repetitivas – algo que o ambiente de realidade virtual também apresentado na exposição promete cumprir. Não se trata apenas da questão de escala aumentada, pois experimentamos essa mesma sensação em obras de tamanhos, materialidades, tempos e territórios diferentes, mas que se relacionam com as Alchemies, como os vitrais de Chartres ou os cestos Apache.
Por outro lado, as suas Torsões, às quais já se dedica desde o fim da década de 1990, têm uma tendência fatídica à monumentalidade (curiosamente, ecoam formas que também já encontrávamos nas Modulações). Aqui a questão que se coloca de forma mais evidente é a da incidência da luz do ambiente sobre os filetes de aço inoxidável, evocando uma dimensão de duração à medida que nos deslocamos em torno delas, como se fossem micro espelhos imperfeitos ou fragmentos de labirintos. Por isso, quanto mais extensão, maiores as possibilidades. Esse fenômeno lumínico, porém, se dá de forma muito sutil, o que faz com que essas peças sejam de difícil compreensão ou, antes, que se tornem fascinantes pelo seu aspecto menos interessante, que é seu material clean e industrial. A investigação dos efeitos da luz sobre a superfície dos corpos em movimento dá ensejo ao evento hipnótico que são seus móbiles (Continuel Mobile Miroir, 2017).
Voltam as crianças à exposição de Julio Le Parc. Em alguns museus, vemos o aviso que previne os pais para que segurem pelas mãos seus filhos mais novos e também os mais rápidos. Pense nessas crianças velozes correndo pelos museus. Elas me pareceram o público ideal para a arte de Le Parc.
[1] Le Parc em entrevista a Hans-Michael Herzog, no catálogo Julio Le Parc/Obras cinéticas, publicado pela Daros Latin America em 2014. P. 24.
[2] Assez de mystifications. Manifesto assinado pelo Groupe de Recherche d’Art Visuel e lançado na 3a Bienal de Paris, em outubro de 1963. Além de Le Parc, faziam parte do grupo Joël Stein, François Morellet, Francisco Sobrino e Yvaral.