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setembro 5, 2018
Hilal Sami Hilal - A Terceira Margem do Rio por Vanda Klabin
Hilal Sami Hilal - A Terceira Margem do Rio
VANDA KLABIN
Meu trabalho é como uma partitura, onde vou escrevendo os ritmos.
Hilal Sami Hilal
Ao longo de décadas, Hilal Sami Hilal trabalha com diversas linguagens artísticas, materiais e universos heterogêneos, em um ritmo flexível e intenso de expansão. O tratamento a que submete as superfícies sempre se constitui como um vir a ser, como uma experiência de natureza fluida, móvel, uma incompletude da forma, indefinida nos seus procedimentos de trabalho, mas que impõe sua sólida presença.
Utiliza diversas experimentações: pintura, gravura, desenhos, obras sobre papel, esculturas, objetos, entre outros. Articula vários campos de ação nas suas obras, não aderindo de forma decisiva aos diferenciados movimentos artísticos, e manteve o núcleo poético do seu trabalho livre e disponível para buscar os seus próprios desdobramentos. A singularidade de sua trajetória movimentada e inquieta é surpreendente e tem sido um processo permanente de pesquisa. Sua obra, vasta e complexa, desenvolve-se em um território de significações ambíguas, muitas vezes repletas de muitas questões que permeiam os conceitos fundamentais do território plástico. Os elementos de interferência e dissolução parecem ser uma constituinte do seu trabalho, colapsam o entendimento, geram novas disponibilidades plásticas e uma nova gramática de formas. O fazer artístico de Hilal envolve todo um sistema de signos cifrados que ganham cores e formas nesta exposição e fazem parte de sua mitologia pessoal.
Nascido em Vitória, no Espírito Santo, em 1952, é descendente de uma família síria, e teve a sua formação em artes plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), sendo professor durante vinte anos. Na década de 1970, estuda gravura em metal, aquarela e, sobretudo, artes da fibra, devido ao seu interesse pelo papel artesanal, razão que motivou sua viagem ao Japão para aperfeiçoar suas pesquisas. O artista, que fundou a cadeira de Estudo do Papel na Faculdade Federal do Espírito Santo, desde sempre confeccionou o seu principal material de trabalho: o papel, a matéria-prima para a sua obra, passa a fabricar o papel artesanal, espesso e em camadas, tendo como base uma pasta de algodão feita de roupas velhas de amigos e familiares. Para desenhar utiliza a pasta de papel em uma bisnaga de confeiteiro, que tem a aparência de um rendilhado, como a caligrafia árabe, utilizado como uma forma de equivalência poética para expressar a sua linguagem plástica.
Hilal trouxe sempre à tona uma constelação de informações e referências na qual sua obra se movimenta, sempre impulsionada pela necessidade irrequieta de explorar novos caminhos na sua produção. Seu trabalho encontra seus acordes na relação entre a palavra e a imagem, nas interseções entre artes visuais e literatura. O mundo das palavras é uma presença constante, quase como um retorno cíclico, mas transfigurado e transposto em outras possibilidades, outros grupamentos. O artista mergulha na literatura, que está no processo de constituição da forma e traz à superfície uma experiência condensada, derivada da escrita de Guimarães Rosa, objeto privilegiado da sua reflexão e de uma introspecção sensível, que funde ao seu trabalho a vitalidade e a fluidez de um pensamento, a criação de um espaço tátil aliado a uma demorada artesania.
A terceira margem do rio, narrativa misteriosa, enigmática e breve, do conto do livro de Guimarães Rosa intitulado Primeiras estórias, publicado em 1962, é o ponto de partida, o elo produtivo entre a ordem abstrata dos elementos visuais e a natureza corpórea da sua obra, através de uma construção de palavras em uma modulação infinita no processo de constituição das formas. Hilal rompe com os aspectos descritivos e narrativos, pois a obra não tem mais relação com a representação, contempla uma transposição caligráfica focada no texto, agora em oxidação metálica. Junta uma palavra com a outra, uma materialidade da equivalência do pensar, verdadeiros signos linguísticos, que geram nova visualidade gráfica palpável, perceptível, que brota em vigorosas partículas e, ao mesmo tempo, intensifica o vazio.
Trabalhar com signos linguísticos, tramas de caligrafias, frases, letras escritas ou a palavra, foi sempre uma questão central para o pensamento do trabalho de Hilal. O fio argumentativo se constitui dentro da literatura, e as letras ganham corpo no seu verso e reverso, sugerem um jogo de oposições entre permanência e transitoriedade, introduzindo Guimarães Rosa em outro campo estético. A caligrafia de Hilal é a tal ponto transparente que vai diretamente ao essencial de seu impulso poético. As palavras, densas e divididas em segmentos horizontais e verticais, portam um silêncio sóbrio, contêm-se umas nas outras, mantendo um lugar intervalar entre os campos existentes nas numerosas grades sequenciais.
A vastidão do repertório de palavras condensa a sua poética em algum ponto, onde o olhar encontra uma solidez. Na iminência de uma dissolução, as palavras se consolidam e ganham uma presença permanente em novos territórios geográficos. Ali presentes, suspensos entre, quase em risco, são incertezas que fascinam, quase esculturas evaporadas. Criam movimentos imprevisíveis de um pensamento que presentifica fragmentos do texto original, trazendo constelações de letras e signos gráficos.
O espaço vazio e a linha se tornam parceiros equivalentes, condensados numa matéria porosa em grades quadriculadas, acrescidas de um suporte frágil pendente do teto do ambiente expositivo até o chão, em um ponto afastado da parede, trazendo uma suposta intimidade, e que parecem vibrar ao mais leve rumor do ar ou da presença física de uma pessoa. A caligrafia esgarçada cria uma presença matérica ou momentos de maior concentração, ampliando a dissolução até os limites que tornam quase irreconhecíveis seus princípios iniciais.
Os elementos de interferência e dissolução parecem ser uma constituinte do seu trabalho, em que uma atmosfera difusa de escrita fragmentária toma conta do espaço. E não cessa de produzir seus silêncios, um vazio espesso e uma realidade plena de opacidades pela corrosão do material e pela oxidação das imagens e das letras.
Nessa encruzilhada, a dialética da ausência e da presença, do cheio e do vazio, do fixo e do móvel, cria relações de textura e movimento. O espaço é tensionado por um sistema de opostos, pela continuidade e descontinuidade da linha, e os fundamentos do ritmo interno de suas obras estão presentes na delicadeza das superfícies e nas transparências e filamentos, que criam texturas quase sensoriais, articulações infinitas que trazem espessura ao fluxo do trabalho, como desnarrativas, uma malha flutuante para o olhar. São momentos diferenciados que ganham respiração, como se o instante se debatesse, adquirisse um rumor da natureza, criando uma mistura de linguagens que alimenta a pulsão do olhar na fronteira dessas experimentações.
Hilal revela a riqueza de sua linguagem plástica, na qual dimensões quase inexploradas entre o sensível e a matéria consolidam uma estética refinada que confere grandiosidade silenciosa às pequenas dimensões com as quais trabalha. Explora a ideia do efêmero como passageiro, transitório e parece guardar uma imediaticidade da experiência e reter o singular. Esses fragmentos da linguagem literária são o agente do espaço, presenças enigmáticas, que tecem um imprevisível diálogo visual, um sistema de signos que necessita ser ainda decifrado.