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agosto 26, 2018
Studio Butterfly e outras fábulas por Moacir dos Anjos
Studio Butterfly e outras fábulas
MOACIR DOS ANJOS
A obra de Virginia de Medeiros é composta por fábulas. É obra feita de histórias inventadas para falar de pessoas e coisas que lhe importam e lhe movem. Histórias que, para tanto, recortam a realidade de um modo distinto da maior parte de outras narrações de fatos: histórias que acolhem o que é comumente deixado de fora ou à margem por versões concorrentes do tempo e do lugar que habita. Histórias que produzem equivalentes sensíveis da realidade que a querem mais porosa e inclusiva, desafiando as maneiras dominantes de representá-la. Por tal motivo, as fábulas da artista possuem caráter distinto de quase todas as outras que existem. Se fábulas oferecem, como rotina, ensinamentos que reforçam valores morais hegemônicos nos contextos em que são geradas, as de Virginia de Medeiros confrontam e ignoram cerceamentos e interdições, oferecendo linhas de fuga em seu lugar.
A mais antiga das três fábulas apresentadas nesta exposição chama-se Studio Butterfly, fruto de longa relação estabelecida pela artista com várias travestis de Salvador, cidade próxima da que nasceu e onde morou no período crucial da vida em que enlaces com o mundo são celebrados. O vídeo exibido traz o registro de testemunhos dados por várias das travestis em visita ao estúdio fotográfico montado por Virginia de Medeiros para acolhê-las. Depoimentos permeados por lembranças da escolha pelo desmanche de fronteiras entre o masculino e o seu suposto avesso, afirmando maneiras discordantes de estar no mundo. Em retribuição às gravações e também à cessão de imagens pertencentes a álbuns caseiros das travestis, a artista produziu books para cada uma delas, algo cobiçado por quem tem o próprio corpo como lugar central de trabalho. Ladeando a exibição do vídeo, projeções sequenciadas de fotografias retiradas desses álbuns e desses books são instaladas: imagens das mesmas pessoas, mas feitas em condições e momentos distintos em muita coisa.
A relação entre Virginia de Medeiros e as travestis não se esgota ou se define, contudo, somente por meio de uma troca entre serviços e objetos. Ela é fundada no processo de afetação mútua entre a vida de uma e a vida das outras, no qual o que permutam e reforçam são pulsões de vida que não cabem nas formas consensualmente admitidas como naturais. Se as travestis se mostram e são mostradas como artistas por conta dos atos de desvio e de exceção que o tempo todo perfazem, Virgínia de Medeiros se aproxima, por seu desejo impulsivo de entender e de encontrar o outro, do lugar simbólico em que formas de pertencimento à vida são radicalmente inventadas. É nesse espaço de encontro denso que a fabulação ocorre, tecida nas falas e gestos das travestis e como expressão de imaginário que mistura fato e fantasia: defesa ou prudente distância tomada diante um real inacessível e por demais duro. Esses depoimentos somente existem em forma pública, contudo, em função dos dispositivos criados pela artista para os captar, articular e exibir. E há ainda, como parte de um trabalho que cerca o seu objeto sem jamais conseguir atingi-lo ou pretender esgotá-lo, o conjunto de narrativas escritas por Virgínia de Medeiros, feitas em resposta ao que vivenciou no Studio Butterfly e que atestam o proveito da palavra para alargar o alcance das imagens criadas.
Seguindo a ordem em que foram feitas, a segunda das fábulas apresentadas reforça o baralhamento de gêneros sugerido na anterior e acrescenta, na tessitura fluida de imagens filmadas pela artista, ambiguidades identitárias que desconcertam e ensinam. O trabalho, chamado Sérgio e Simone, mostra, em telas distintas que por vezes se atravessam, depoimentos dessas duas personagens que são, ao final, uma pessoa apenas. Simone é uma travesti que tomava conta de uma fonte pública na Ladeira da Montanha, localizada entre as partes baixa e alta de Salvador. Era ali que vivia, entre o vício do crack e o culto aos seus orixás, Iansã e Oxum. Após tê-la conhecido por acaso, Virgínia de Medeiros começou a filmar Simone no lugar que aquela escolheu morar e que transformou em santuário. Semanas após esse registro, Simone entra em delírio místico causado por overdose da droga e decide abandonar a fonte. Volta à casa dos pais, reassume o nome de batismo Sérgio e se torna pregador evangélico, renegando, em praça pública, a vida que antes levava, denunciando-a como provação de sua nova fé. A partir de então, Virgínia de Medeiros passa a filmar Sérgio, cujo comportamento parece conflitar em quase tudo com o de Simone, da sexualidade declarada às religiões que um e outro professam.
O que há em comum entre eles, e que o trabalho naturalmente testemunha, é o fato de ambos fazerem uso de seus corpos – gestos, olhares, roupas e falas – para afirmar uma identidade que se quer única, mas que aparece, na própria justaposição formal de telas, como coisa sempre provisória e truncada. Mais ainda, como algo que se ancora em uma performance para se afirmar, a cada momento, como perene, ainda que revele, por conta mesmo dessa auto-fabulação da vida, ter natureza contingente. Ao pautar seu trabalho na aceitação dessa frágil fixidez identitária, Virgínia de Medeiros reconhece, nela mesma e em qualquer pessoa, a constitutiva porosidade da ideia de si. Reconhecimento ainda mais agudo quando se é confrontado, no encontro com o outro, com aquilo difere ou desvia do que é regra imposta ou norma sugerida.
A terceira das fábulas aqui exibidas é história que separa – e logo ata – solidão e partilha, calmaria e desassossego, transgressão e obediência, entre outros pares de estados e fazeres tantas vezes distinguidos de modo artificial. Formada por um vídeo e quatro fotografias, Marinalva e seus marítimos contém a breve e intensa apresentação que a dona do Manilas Bar faz de sua vida, que se confunde com a existência da “casa de encontro dos amigos” por décadas mantida por ela na cidade alta de Salvador. A fala de Marinalva é ao mesmo tempo orgulhosa e nostálgica de sua trajetória, empenhada na busca do que pode ser a satisfação afetiva dela e dos muitos que frequentaram seu estabelecimento. Mesmo que esta satisfação fosse e seja passageira e incerta; mesmo que deixasse e deixe poucos rastros. O apreço com que cada detalhe ordinário da casa é filmado e a atenção com que Virginia de Medeiros edifica um lugar de protagonismo para a narração de Marinalva suspendem qualquer julgamento moral acerca da prostituição, situando-a como atividade que, junto a muitas, engendra e fortalece formas de vida singulares. As insistentes imagens de um mar que parece não mudar nunca contrastam, contudo, com o reconhecimento de que marinheiros não chegam mais na cidade com tanta frequência, anunciando o ocaso de uma maneira dissidente de pessoas se relacionarem. Imagens e fala que se articulam para ao menos celebrar que por tanto tempo tenha existido essa casa.
A quarta e mais recente das fábulas reunidas nesta exposição se chama Cais do Porto. Trata-se de vídeo feito a partir de imagens e falas de prostitutas que vivem e trabalham nas cercanias da Praça Mauá, zona portuária do Rio de Janeiro, local que foi objeto de radical intervenção urbanística na última década. Em comum com o trabalho anterior, há a vontade de registrar um tipo de vida em progressivo desmanche, dessa vez claramente acelerado pelo processo de gentrificação causado pelas mudanças implementadas na região. Processo no qual vias foram abertas e fechadas e edifícios demolidos e erguidos, modulando usos novos para um lugar que ancorou, por décadas, tipos de afeto que parecem não ter mais lugar para florescerem ali. Em seus depoimentos, as prostitutas denunciam os mecanismos explícitos e velados de expulsão de um território que, tendo sido ocupado por práticas inseridas na lógica desigual da cidade pelo tempo de suas vidas, é agora delas esvaziado. Práticas que são agora tidas, por empresários e prefeitura, como indesejadas e disfuncionais. A fábula dissonante não é somente firmada em voz, contudo. As falas das prostitutas são acompanhadas por imagens de corpos seminus que dançam e afirmam, em sensualidade contida ou aberto erotismo, a vontade de confrontar e resistir às forças que os querem regular. Uma vez mais, é na performance dos corpos que as identidades parecem constantemente se inventar, ainda que seja para construir, em negociação conflitiva, formas novas de existir frente a ameaças de apagamento. Ao criar, de modo partilhado, dispositivos para dar a ver narrativas de quem vive à margem, Virgínia de Medeiros faz ainda, com seu próprio corpo, movimento de aproximação do corpo em risco do outro. Sem que se confundam, um e outro se tornam parte, mesmo que de maneira episódica, de uma mesma coreografia de corpos. Coreografia que desenha, em cantos diversos, modos de resistir à violência da ordem.