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abril 12, 2018
Todas as Graças por Virginia Aita
Todas as Graças
VIRGINIA AITA
A instalação Todas as Graças é um recorte peculiar na produção de Laura Vinci. Mais intimista, solicita uma ‘escuta’ sutil das formas, que se coagulam num desenho despojado, pontuando elegantemente um silêncio aparente. Condensações de espaço e tempo, essas esculturas funcionam num conjunto dinâmico, cujas relações internas acessam imagens que já habitam a natureza dos corpos ou se inscrevem em sua história. Concebida para este espaço, Todas as Graças é mais um modo característico da artista infletir uma arquitetura, tensionando as cordas de suas linhas de força enfeixadas por formas (Graças, Pins e Mundos) que fazem vibrar o teclado sensível para restituir seus significados.
Um cenário para a contemplação dos sentidos, sem a pressa e a clareza invasiva dos conceitos e das formas reiteradas pelo uso. Tramando relações que imantam vazios, tracionando as superfícies, essas formas absorvem nosso olhar num mergulho tátil. A memória do toque antecipa o olhar. Muito aquém das hipérboles do saber, convida a um despojamento, uma “atenção flutuante, uma longa suspensão do momento de concluir, onde a interpretação teria tempo de se aplicar em diversas dimensões, entre o visível apreendido e a experiência vivida de um despojamento” [1]. Aderido à matéria, o tempo aqui é outro: alongado e remoto, mas, ainda, irredutivelmente presente num ritmo corpóreo que nos torna cúmplices. O espaço – nas palavras da artista, “um gigantesco corpo” – rompe a extensão contínua e inerte da geometria para refazer-se como espaço fenomenológico, ativado pela experiência sensorial.
As Graças, os Pins e os Mundos aqui dispostos desestabilizam e redesenham o espaço com sua concentração de volume e heterogeneidade. Mais que formas escultóricas e menos que objetos (impermanentes, subsistem no intervalo de uma história), são corpos que significam. Híbridos de matéria e sentido, orquestram outros ritmos em configurações que dissolvem fronteiras entre história e natureza, mente e corpo, narrativa e percepção. O contorno fluido das Graças projeta um corpo feminino; formas que deslizam em sua superfície luzidia numa dança de reflexos que recolhe vestígios de uma história. Já os Mundos nos contêm, mapeiam, mensuram, marcam a direção e os limites do sentido com uma clareza efêmera.
No contraponto desse movimento, o peso das peças as retém no solo; a gravidade faz delas reféns do destino comum da matéria, que acena a corrosão do tempo e a violência infligida aos corpos. Nem mesmo a bela dispersão dos Pins dissimula os alfinetes pontiagudos que perfuram a superfície contínua da parede como se ferissem a pele deste “gigantesco corpo/espaço”. A gravidade e a graça são, aqui, polaridades que organizam essas energias antagônicas, como na irresistível imagem da tensão incontornável que nos define no limite do humano em Simone Weil [2]. Refluem a uma poética minimalista que, reconhecendo ecos de Anish Kapoor, Jessica Stockholder e Olafur Eliasson, ou mesmo Lygia Clark, Tunga e Amílcar, se obstina em desnudar na matéria sensível sua potência formal – mas para recompor seu estranhamento. Para além do deleite, a artista desfere um corte transversal na percepção, num gesto político.
O enigma que resiste nestas obras remete à tensão inerente da arte, entre matéria e luz, o perceptível e o legível, opacidade e transparência, “presença material bruta e discurso codificando uma história” [3]. Mas o que são essas “imagens” que embaralham natureza e história? Para além do instante em que vivem na experiência, as obras-imagens têm uma sobrevida que se estende além da impressão; elas se desdobram em sequências de outras imagens, se sobrepõem e se associam em redes. O que é a memória senão compilação de imagens? Uma vez “carregadas de tempo”, diz Agamben [4], as imagens saturadas “se tornam história”. Há, portanto, uma vida das imagens a ser compreendida, uma temporalidade a ser desvendada, que a artista perscruta com fina consciência de uma natureza desconhecida que subjaz ao mundo físico e à memória da arte.
A figura das Três Graças surge na mitologia grega ligada a Afrodite (e a Vênus, na cultura romana), e é reeditada em diferentes épocas em versões tão ilustres quanto a Primavera (1470-80), de Botticelli, numa alegoria pagã das estações à luz do neoplatonismo florentino. Ela reaparece sob interpretações tão diversas como os estilos de Rafael, Rubens, Canova, Mailoll ou nas surpreendentes Três Sombras de Rodin. É revisitada pela antropologia moderna (Marcel Mauss) no conceito de graça como dádiva, gratuidade, ação generosa como o princípio capaz de converter a espécie em humanidade. Por sua vez, Aby Warburg explora a polissemia da imagem Ninfa na prancha 46 de seu Atlas Mnemosyne, considerando as imagens como fórmulas do páthos (Pathosformel), cifras de tempo, memória e drama. Sua imagem Ninfa, que reintroduz a figura seminal das Graças, não é uma imagem original da qual as outras derivariam, mas um composto de originalidade e repetição, em relações pautadas pela horizontalidade e com efeitos recíprocos. A ninfa, como as Graças, é, sobretudo, “a imagem da imagem que atravessou gerações”.
Com Todas as Graças, Laura Vinci nos interpela e instiga a ir além da trivialidade visual para decodificar a temporalidade impressa nas superfícies, restituindo a memória ao corpo e as histórias à arte. “Toda essa história está contida nas minhas Graças”, diz Laura, vendo nas imagens da arte, antes de tudo, imagens de imagens, condensações de tempo. Paralelamente, o que vemos aqui remete ao percurso da obra, que inicia com a pintura monocromática em telas sem chassis sob uma exígua agenda minimalista (1984). Opondo-se aos planos, as marcas e incisões na superfície diligentemente trabalhada premeditam suas esculturas bidimensionais em ferro fundido ou bronze, que preservam rebarbas e traços da modelagem em formas esguias que recortam o espaço (Verticais, 1990), ou suas tiras escuras estiradas no solo (Pretas, 1997), que lembram Robert Morris (Untitled, 1967-68). Mas é com a instalação Ampulheta (Sem Título, Arte/Cidade III, SP, 1997) que estados, passagens, processos e metamorfoses da matéria passam a ser decisivos em sua poética, intensificando a horizontalidade e entropia da matéria. Nas ruínas de um moinho, um pequeno orifício aberto entre os andares faz escorrer lentamente, ao sabor do vento, 50 toneladas de areia que mimetizam a deterioração gradual do edifício e nos envolvem corporalmente nesta meditação sobre a passagem corrosiva do tempo.
Seu trabalho tornou-se conhecido pelas instalações que exploram a plasticidade de materiais diversos (ferro, bronze, ouro, cobre, mármore, perlita, vidro, areia e água), agenciando suas propriedades e microestruturas (densidade, composição, grão, ponto de fusão e ebulição, etc.) para acessar a natureza dos elementos em seus estados e formas reversíveis. Com o uso de dispositivos (máquinas, sistema refrigeração, vaporização a frio, etc.) que reproduzem artificialmente esses estados e passagens da matéria, a artista metaforiza sua impermanência e instabilidade recompondo a natureza num drama metafísico. O tempo é experimentado a uma distância meditativa, como condição da existência e deterioração das coisas, que percebemos lateralmente ao observar aquele fio de areia que escorre entre as lajes do prédio em ruínas. Nele, tudo é necessariamente transitório, se cristaliza no presente já contendo o germe de sua dissolução iminente.
Mimetizando esse fluxo, a fluidez da água entre o estado líquido e o vapor é programática para sua poética. Turvando a paisagem com uma névoa espessa (No Ar, 2010, Lisboa, Pádua) ou numa fina camada de gelo que cresce na tubulação de uma sala “asséptica” (Estados, 2002), uma mínima intervenção no ambiente produz uma mudança desconcertante de cenário. Em Máquina do Mundo (2005), uma esteira rolante desloca, horizontalmente, montes de areia de um extremo a outro, repetindo ad infinitum o mesmo movimento, como se recitasse o poema homônimo de Drummond: “No sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar”. Parece, assim, metaforizar os ciclos da história, embaralhando mecanismo e natureza num “eterno retorno” em que tudo se desfaz e volta a erigir formas. Em Ainda Viva (2007), centenas de maçãs dispersas sobre uma mesa-escultura de mármore, entre pequenos módulos geométricos, se deterioram numa natureza morta que evoca o tema recorrente de Cézanne. Mas é a colisão desses dois tempos antitéticos, a perenidade do mineral e o ritmo orgânico do vegetal que perece exalando humores, que imprime a carga dramática. Em Choro (2010), um piano é saturado de vapor, gotejando água pelas frestas. Já em No Ar (2011), o impacto fica por conta de bicos de aspersão acionados por uma bomba que converte água em suspensão em nuvens de vapor que emergem em intervalos, engolfando o ambiente.
A artista ampliou sua investigação no universo teatral com coreografias e direção de arte. Em Cacilda! (Teatro Oficina, SP, 1998), com direção de José Celso Martinez, o cenário retinha traços escultóricos com um bloco suspenso (Anjo de Pedra), ainda experimentando efeitos cênicos como o plástico transparente sobre o qual o “sangue jorrava” atravessando o palco. A seguir, realizou o levantamento imagético para a peça Terra (Os Sertões, Euclides da Cunha) e a adaptação do romance O Idiota, de Dostoiévski (Sesc Pompéia, 2010-11). Também atuou na criação de O Duelo, na direção de arte de A última palavra é a penúltima – 2, e participou da criação de Na Selva das Cidades (2015), de Brecht, com a mundana companhia. Entre seus trabalhos mais recentes, Morro Mundo (Nara Roesler, Rio, 2017; SP, 2018) é uma instalação em que uma máquina é programada para liberar vapor quando seus sensores são ativados, que já é visível na tubulação de vidro que percorre a sala antes de tomar o ambiente numa neblina cerrada, subitamente desorientando o espectador. Já a instalação Diurna (Santander, SP, 2018), com projeção de sombras de árvores (vídeo mapping) nas paredes e pequenas folhas escultóricas num arranjo disperso, confronta a aridez da paisagem urbana com esse vestígio de natureza indoors.
Mas, aqui, uma leve inflexão nos redireciona a uma experiência à flor da pele, dilatando o tempo presente, sensivelmente vivido, psicológico, em uma experiência ampliada, histórica e ancestral, cujo catalizador consiste na polidez e no requinte das formas (ao contrário do suspense e da dispersão entrópica de outras instalações). A densidade destas formas sólidas (Pins, Graças e Mundos), inversamente proporcional à dispersão dos fluidos, passa a operar como metáfora de uma condensação do tempo que guarda um imaginário oculto. Uma “densidade” que é sintoma da desconcertante anacronia histórica da imagem artística, da colisão de tempos diversos que a arte faz caber num mesmo corpo-signo. Uma Beleza que fere, seduz e interpela, em seu mundo ainda sem palavras, para nos “fazer ver”.
NOTAS
1 Didi-Huberman, G. Devant L’Image, p. 25
2 Weil, Simone. A Gravidade e a Graça. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
3 Rancière, J. The Future of the Image, N.Y: Verso,2007, p.11
4 Agamben, G. Ninfas. SP: Hedra, 2007, p21.