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novembro 25, 2017
PulsationsPulsações - Do arquivo vivo de Sérvulo Esmeraldo por Ricardo Resende
PulsationsPulsações - Do arquivo vivo de Sérvulo Esmeraldo
RICARDO RESENDE
Os arquivos são fonte inesgotável de informações, de experiências e vivências do processo criativo. Guardam o processo da obra e, com ele, é possível conhecer o pensamento do artista. Em outras palavras, o arquivo abriga a memória verbal e não verbal sobre o que ainda virá a ser criado ou instaurado.
PulsationsPulsações, mostra realizada pelo Instituto Ling, é organizada a partir do arquivo de Sérvulo Esmeraldo (1929-2017) e compreende a fase em que viveu na França (1957-1980), em Neuilly-Plaisance. O material, que se encontra sob os cuidados do Instituto de Arte Contemporânea, devidamente organizado e catalogado, permite mostrar que, por trás do artista espirituoso — Sérvulo tinha uma leveza de vida rara, sempre bem-humorado e de fala sagaz —, existia um pensador comprometido com o pesquisador das linguagens artísticas.
Sérvulo estudou física e tinha em sua veia um cientista investigador que vagueou do desenho para a gravura e, da gravura, deu algumas pinceladas, passando destas para as formas escultóricas que se insinuam geometricamente pelo espaço. Criou livros de artista e até brincou com joalheria — nada mais que pequenas formas geométricas preciosas, carregadas de humor e sofisticação incomum.
Os desenhos, gravuras e esculturas vistos nesta exposição são vibrações de energia desprendida ora sobre o papel, ora sobre as placas de bronze ou dando forma aos metais. Um trabalho obstinado de pesquisa e invenção na busca de uma linguagem própria, feito nas ranhuras da gravura em metal, nos riscos e rabiscos sobre o papel. Da observação das coisas gráficas do mundo.
Desde jovem, Sérvulo especulava as formas orgânicas, e a partir delas é que foi em busca da geometrização, ao encontro da forma pura que é desenhada no espaço com a linha, a luz, a sombra e a cor.
Sua obra se desenvolveu progressivamente com a naturalidade da observação dessas coisas simples, desde a folha de uma planta que traz em sua forma e suas nervuras uma equação esquemática às sementes que carregam consigo uma proporção sinuosa — nada mais que o equilíbrio e a harmonia da natureza.
Na verdade, Sérvulo estava sempre aparando as arestas dos volumes em linhas construtivas, constituidoras da forma. Suas esculturas em ferro, volumes cheios ou vazios, são sempre desenhos no espaço, leves e fluídos, como uma folha de uma árvore que, derrubada pelo vento, cai como uma pluma, pausadamente e sinuosamente no chão.
As folhas que gravou eram etapas para a abstração. Eram vistas como logaritmos ou formas geometrizantes desde que começou a observar o mundo e fazer suas “invencionices” plásticas.
Ainda menino, se encantava com a luz puxada das frestas da cumeeira (telhado) e desenhava sobre o chão e nas paredes brancas da casa caiada do Crato as formas geométricas. As sombras projetadas sobre o chão ou as paredes são imagens gravadas no seu estado bruto, imaterial, que se deslocam junto ao tempo, marcadas pela luz solar.
Foi assim, observando o mundo na sua simplicidade plástica e dentro do seu cotidiano, que Sérvulo Esmeraldo deu início a sua obra visual. Não à toa, por conta desse pensamento gráfico, o artista veio a ser reconhecido primeiro como gravador e, só depois, como escultor.
Sua carreira artística começou na década de 40, quando se mudou do Crato, no interior do Ceará, para Fortaleza. Em 1957, recebeu uma bolsa de estudos do governo francês para estudar na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris.
Lá, encontrou o pintor cearense Antônio Bandeira e conviveu com outros nomes de igual relevância para a arte brasileira, como Vicente do Rego Monteiro, Lygia Clark, Sérgio Camargo, Franz Krajcberg, Arthur Luiz Piza, Flávio Shiró e Rossini Perez — convívio definitivo para sua formação intelectual e estética. Também encontrou o artista russo Serge Poliakoff, que, além de amigo, foi seu colaborador.
Sérvulo estudou gravura no ateliê de Litogravura da École e gravura em metal no ateliê do artista alemão Johnny Friedlaender (1912-1992), mestre e um dos inovadores no uso da cor. Também se deparou com a obra gravada do artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528).
Tudo isso, somado à disciplina necessária, levou-lhe à invenção de uma linguagem própria que tinha nas artes gráficas sua solução formal.
A mostra PulsationsPulsações joga luz sobre esse rico processo criativo dos seus primeiros anos na França, uma fase de aprendizado, de iniciação nas técnicas da gravura em metal e litografia. Contempla os desenhos e as gravuras em metal que compõem esse período europeu, sob a influência do abstracionismo lírico que vigorava na capital francesa naquele momento, que seria uma resposta à Action Painting nova-iorquina.
É acompanhada, ainda, de uma seleção de esculturas e de duas pinturas posteriores a essa fase, quando explorou a topologia das coisas e formas. São trabalhos definitivos para a compreensão da importância de sua contribuição para a arte brasileira.
Traz os vestígios gráficos que podem ser encontrados em um desenho rabiscado sobre um pedaço de papel qualquer e nas muitas gravuras que criou, suporte para sua pesquisa de linguagem e formulação de seu pensamento gráfico – um processo criativo que se deu por meio de divagações no gesto de rabiscar, rascunhar, escrever, errar e acertar.
Rascunhos, esboços, desenhos, provas de estado de gravuras, impressões sobre papel e suas matrizes são os passos para a obra final que se apresentam nesta mostra.
O quanto de verdade e ousadia esse material traz para sua obra ao deixar à vista a experimentação e suas reflexões, incluindo também os erros e os acertos?
Este arquivo é um convite à aventura de Sérvulo Esmeraldo no caminho da abstração e da geometria que permaneceu inédito no ateliê do artista e amigo argentino, Júlio Le Parc (Mendonza, 1928), em Paris, onde ficou guardado intacto por cerca de 40 anos.
Com este acúmulo de informações visuais gráficas, formas e textuais, Sérvulo nos mostra o caminho percorrido em sua obra, que aqui parte da observação de uma pequena folha retirada da natureza, um delicado trabalho em que observamos o apuramento das formas na gravura em metal, para chegar à geometria pura da subtração vista em duas telas.
O artista observa o lado construtivo e o funcionamento das coisas com um pensamento gráfico sempre “geometrizante” e “purificador” da forma. É como se quisesse limpar as rebarbas e as “imperfeições” das coisas que vemos no mundo ao “economizar” no gesto e subtrair as formas e cores.
Sérvulo via possibilidades sensíveis e harmonia em tudo, até mesmo no acúmulo das rebarbas provocadas pela gravação, resto do gesto de sulcar a chapa de metal, abrindo sobre a superfície lisa e brilhante do metal as linhas que formam os desenhos das imagens gravadas. Esses resíduos do gesto “brutal” e “violento” desprendido sobre as placas de bronze, que faz com que os fios metálicos se contorçam, retorçam e tomem a forma de espirais brilhantes, acumuladas ao longo de anos, ele guardou em um pote de vidro identificado L’oeuvre gravée (burins), 1964 a 1969. Transformou em uma nova forma escultórica. Um frasco de vidro que contém a memória do gesto gráfico do artista, as rebarbas. Seria possível enquadrá-lo como exemplar da família dos ready made duchampianos.
O abstracionismo lírico, que influenciou suas gravuras e desenhos do período, era uma maneira de pintar, desenhar e gravar com traços livres e repetidos, criando manchas que registram o gesto do artista, com grandes áreas sombreadas, escuras e densas.
Depois, o que se via desprendido sobre essas matrizes e folhas de papel, com o tempo, transformou-se em imagens geométricas, chegando posteriormente à pura abstração informal. Sua obra tornou-se imprescindível no que tange à compreensão da arte geométrica no país.
Mas, como disse aqui, Sérvulo era um espirituoso. Não tinha o peso das investigações formalistas que caracterizaram a obra de alguns artistas. Fez um trânsito leve entre a figuração e o abstracionismo lírico, em uma espécie de “desfazimento” das formas das coisas, para chegar à abstração geométrica. Mesmo as formas puras como o quadrado, o losango, o triângulo, as formas cônicas, com toda sua rigidez, eram levadas para o espaço até surgirem como passos de uma dança aérea. Flutuavam.
As pinturas desta exposição foram pouco vistas e causam certo estranhamento, pois não se imagina um Sérvulo pintor. Mas estas não são nada mais do que o seu pensamento volumétrico e colorístico levado para o plano bidimensional de uma tela. Guardam um pouco do rigor geométrico que sempre pautou sua obra.
O que se vê no arquivo agora exposto é esse mesmo olhar e os mesmos gestos divagantes, que passam por todas as formas de representação artística, principalmente daquelas que não conhecemos. Manchas, ranhuras, rabiscos e linhas, pulsações das quais saem novas formas sobre o papel e sobre o espaço.
Sérvulo Esmeraldo: le funambule, em francês. O equilibrista das formas.
Segundo o artista, em uma obra não existe nada de secundário. O principal é o todo. “Das formas nascem formas”, disse certa vez, parafraseando o artista italiano Bruno Munari.
Ricardo Resende
Curador