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maio 17, 2017
Dirnei Prates - Até onde vai o extenso por Paula Ramos
Dirnei Prates - Até onde vai o extenso
PAULA RAMOS
Como elaborar o luto pelo falecimento de um ente querido? A pergunta não tem pretensões retóricas, e todos nós sabemos que, mais cedo ou mais tarde, seremos chamados a fazê-lo. Processo de reconstrução e reorganização diante da morte, o luto constitui um desafio emocional e cognitivo, com o qual o enlutado precisa lidar. Em Até onde vai o extenso, Dirnei Prates nos oferece imagens que, em grande medida, representam a sua forma de purgar a perda. Silenciosas, elas condensam percepções sobre a fluidez, a passagem do tempo, os ciclos da vida, a transitoriedade.
A bem da verdade, esses temas o acompanham há vários anos, manifestando-se, inclusive, nos procedimentos artísticos adotados. Sua poética, fruto de uma admirável pesquisa em vídeo e fotografia, geralmente tem como base a apropriação de imagens veiculadas em jornais, exibidas em filmes, coletadas em sites ou mesmo subtraídas de fotografias de terceiros. Explorando cenários e narrativas submersas e operando com fragmentos e recursos de montagem, Dirnei submete a imagem a várias etapas – reprodução, ampliação, impressão e nova reprodução –, dilatando-a no espaço e, com frequência, também no tempo. Essas camadas de edição terminam por agir como filtros, que vão borrando os limites, o foco, a nitidez. Tensionada, a imagem pode chegar às raias da abstração e do apagamento, como se verifica em Zona de neutralidade (2011), Paisagens populares (2012) e Noite barroca (2015), apenas para citar séries mais recentes e emblemáticas em sua trajetória.
Nos trabalhos atuais, não obstante identifiquemos questões análogas, o desenvolvimento foi distinto, calcado na deambulação de Dirnei e em seu contato com a natureza e seus fluxos. Percorrendo a região da Barra da Lagoa, no litoral de Santa Catarina, ele foi registrando paisagens, horizontes, a luz incidindo nas árvores. Nesse processo, se não houve apropriação ou investimento maior em edição, manteve-se, por outro lado, a negociação entre o olho do artista e o dispositivo da máquina. Observemos.
As fotografias em preto e branco da série Invisível, por exemplo, resultam do uso de um filtro infravermelho, que escurece o que se vê pela lente e amortece os contrastes. Assim, embora tivesse consciência do que estava fotografando, Dirnei não dispunha de controle de foco, luminosidade ou mesmo enquadramento. Enodoadas e difusas, na paleta plúmbea e distante, suas paisagens afloram etéreas, fantasmagóricas, quase lunares. Diante delas, apresentadas em média e grande dimensão, nosso encantamento tende a repousar nos cenários oníricos e na textura aveludada e tácita. Entretanto, sempre há mais. Se observarmos com diligência, veremos que muitas dessas imagens aglutinam, pelo menos, dois tempos: o dos morros, ao longe, remetendo ao que é sólido e perene, e o da vegetação, no primeiro plano, com seus ciclos de crescimento, floração e morte.
Reflexão similar ecoa em Vento, conjunto de fotografias instantâneas do tipo “Polaroid”, marcado pela presença de dunas, plantas, vistas e, claro, pelo intervalo entre as imagens, “moldura branca” que paradoxalmente aproxima, distancia e testemunha, senão os lugares, os tempos diversos. Justapondo registros da natureza orientados pelos mesmos interesses, Dirnei propõe paisagens possíveis, contando com aquilo que o historiador da arte Ernst Gombrich chamou de “a parte do espectador”, ou seja, a combinação entre “reconhecimento” e “rememoração”, a partir da qual construímos uma visão coerente da imagem, de acordo com nossas experiências visuais. A série, uma vez mais, é atravessada por uma negociação com o substrato tecnológico: o filme utilizado nesse ensaio (Impossible 600 PB) vem de um lote que, por defeito de fábrica, oferece revelação e fixação instáveis, fazendo com que a imagem externe uma lenta, porém explícita, evanescência. Ora, não é difícil imaginar que virá o momento em que restarão, quando muito, vestígios, lembrando que nem a fotografia é capaz de reter o tempo, mesmo que de modo metafórico. Novo desdobramento.
O jogo de montagem presente em Vento é a tônica de Silente, livro que articula imagens de pedras e pássaros, terra e céu, peso e leveza. De formato diferenciado, o volume oferece páginas encadeadas num “horizonte vivo” e cambiante ao espectador, à medida que é manuseado. O decurso, portanto, é contínuo, e é essa compreensão que também dá título aos dois vídeos: Assim por diante I e II, ambos registrados em fita VHS, entre 2005 e 2006, e depois transpostos e editados para o meio digital, em 2016. O primeiro nos revela um morro coberto de vegetação, cuja grandiosidade vai se dissipando devido ao desfile de nuvens e à fina garoa – o efêmero, destarte, afetando nossa percepção do constante. Já o segundo exibe o frágil (mas perseverante) equilíbrio de um pássaro no alto de um galho, exposto à ação impiedosa do vento: sua resistência é testada sem trégua, até o momento em que sai de cena, dando lugar a outro pássaro, que recomeça o ciclo.
Variação a partir de Guimarães Rosa, o título da mostra sugere algo afirmativo, seguro, categórico. Ledo engano. Como as imagens atestam, em seus paradoxos, tensões e desassossegos, o extenso se dilata, irrompe, surpreende. Tal como na vida.
Paula Ramos
Historiadora e crítica de arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS
Dirnei Prates - Até onde vai o extenso, Galeria Gestual, Porto Alegre, RS - 22/05/2017 a 23/06/2017