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maio 11, 2017
Angella Conte - Terra Nua por Agnaldo Farias
Terra Nua
AGNALDO FARIAS
Entre os vários planos em que a poética de Angella Conte vai se desdobrando, chama a atenção a amplitude de sua compreensão da rotina como prática que conduz ao entorpecimento dos sentidos e da memória, cegueira parasitada nos nossos gestos e que vai crescendo progressivamente, convidando ainda mais à indiferença, aumentando o silêncio dos ambientes e das coisas que os habitam. Pois estes, sabemos, se só são demandados pelo hábito, terminam por ir se calando, curvam-se para dentro de si embutindo aromas e ruídos, juntam-se aos outros no interior das casas compondo uma paisagem muda.
A diversidade de trabalhos produzidos a partir desse pensamento, ora apresentado em Terra Nua –desenhos, pinturas, esculturas, fotografias, objetos, instalações, vídeos, vídeos performances etc. –, é inusual até mesmo para os parâmetros de hoje. Mas é que Angella Conte incomoda-se com o que escapa, pode escapar ou escapou no curso dos dias, e o problema é que tudo flui, se esvai com o decorrer do tempo, o que converte seu projeto num fracasso previsto e premeditado, mais um empreendimento na esteira da condenação de Sísifo. Um límpido exemplo desse projeto estético é o Ir e Vir, que nesta mostra está ocupando toda uma sala, composto por 15 vídeos, cada um deles registrando fragmentos de um deslocamento entre distâncias e lugares variáveis, mudando quanto ao meio de transporte diferente,e também quanto aos ângulos,e até mesmo quanto ao responsável por colher as imagens, como acontece no Deslocamento XI, onde não se sabe se é a própria artista quem filma ou vai sendo filmada enquanto caminha sobre uma ponte.
Um simples trajeto nunca será o mesmo se percorrido a pé, de charrete, de carro,de avião etc. Corolário desse raciocínio, concomitante a essa série de vídeos, vêm, produzidos infatigavelmente, incontáveis diários, as intermináveis coletas de objetos e as estórias coladas ou associadas a eles - como o baú engaiolado e o avô despojado de seus pertences na chegada ao Brasil, outros filmes e a experiência de ambientes fechados e externos, vazios ou ocupados por pessoas, com a artista acompanhando seus passos ou refazendo os que julgou plausíveis.A matéria-prima da memória junta lembranças com objetos e espaços com os quais desenvolvemos nossas coreografias.
Que várias dessas obras sejam protagonizadas por ela mesma, deve-se a sua estratégia de colocar-se no lugar do outro, como também de imaginar o efeito do contato dos outros sobre as coisas com que ela trava contato, dado que os objetos ultrapassam-nos em tempo de vida, além de percorrerem caminhos surpreendentes. E, mesmo quando reflete sobre si, no caso da série Autorretrato (2009), ela evidencia o enigma das próprias imagens, nossas transformações como pátinas sucessivas e cujo rosto atual é apenas a camada mais recente.
Os antigos lançavam mão de ritos com o propósito de atualizar os mitos. As liturgias eram encenações que renovavam aquilo que estava sob o risco de se perder. Já nossas rotinas subtraem o que há de extraordinário no que fazemos. Um modo de combater essa exaustão, propõe a artista,será colando-nos às práticas dos outros ou reinventando os espaços e objetos, seja vendo-os sobre outro ângulo como também sobrepondo-os através de releituras e colagens. Daí as paisagens reconstruídas, as varandas iguais que, vistas com vagar, revelam-se diferentes - variações que ela acentua invadindo-as com elementos que não lhes pertencem ou com sua própria e enigmática presença.