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maio 7, 2017
Espelho no Espelho por Henrique Xavier
Espelho no Espelho
HENRIQUE XAVIER
Carlos Fajardo - Espelho no espelho, Instituto Ling, Porto Alegre, RS - 11/05/2017 a 05/08/2017
O que o espaço interno do espelho reflete em sua totalidade, depois de trincado, também é refletido por seus estilhaços. Assim, em cada um de seus pequenos cacos, um e o mesmo leão avançam. Saavedra Fajardo, o ilustre autor do barroco ibérico, escreveu tais palavras em 1640 para abrir o tratado que acompanha a imagem intitulada “Siempre el mismo”, ou seja, “Sempre o mesmo”. O autor tinha em vista a associação alegórica que o espelho, o teatro e a imagem possuíam com o comportamento e a identidade pessoal que vigorava nas cortes do universo barroco. O espelho barroco vem marcar a teatralidade e a duplicação da vida em imagens em que predominam não apenas a visão, mas também e principalmente a ilusão.
Saltemos quatro séculos até alcançar os dias de hoje e a exposição Espelho no espelho de outro Fajardo. Adentremos os novos jogos de espelhos e ilusões propostos pelo artista Carlos Fajardo para a Galeria do Instituto Ling e sentiremos uma experiência estética que nos remonta a uma invertida pergunta: “Sempre ser outro?”
Com tal pergunta em mente, descobriremos que a imagem humana, a sua identidade e o seu comportamento – no caso, tomados a partir do próprio espectador que se encontra diante das obras – serão o ponto central para a experiência estética proposta pelos atuais espelhos do artista. Comecemos pelo fundo da exposição e sigamos em direção às outras obras para tentar responder como tais labirintos de reflexos são capazes de produzir este deslocamento estético e subjetivo.
Você se depara com a obra que está na última parede da galeria e se pergunta: seria ela uma série de nove fotos em preto e branco com pouca nitidez, coladas sob nove placas de acrílico laranja ou a obra pode ser encarada como uma única grande imagem de um único grande corpo fragmentado, sob uma ampla superfície de acrílico? Nove fotos de setenta centímetros de altura por um metro de largura ou uma única imagem de dois metros e dez centímetros de altura por três metros de largura? Uma ou nove imagens alaranjadas pelo acrílico? A imagem ou as imagens estão no limite do reconhecimento, nada é claro. Evocam-se, talvez, fragmentos de virilhas, pernas, coxas, pescoços, pés entrelaçados, pele, muita pele e bem de perto, dobras, dobras sobre dobras, poros, um rosto, nádegas, ancas, seios, bicos, sexos dissolvidos? A falta de foco nos remete à experiência de abertura erótica de um corpo colado a outro: a proximidade ao ponto de fricção das peles, um em outro, um dentro de outro e sobre um leito entre lençóis. Corpos tão próximos que o olho não tem a distância mínima para formar o foco? Precisamos ver e sentir o corpo do outro através do nosso próprio corpo e vice-versa? Ao contemplar a obra você vê um terceiro corpo também com pouca nitidez: o seu próprio corpo refletido na fina pele reflexiva do acrílico laranja. Para que se tenha a experiência estética da obra é necessário que a imagem de nosso corpo se cole à pele dos corpos desfocados na fotografia?
Você continua a olhar para o seu reflexo na superfície cristalina do acrílico laranja e vê, junto ao seu corpo refletido, a obra espelhar toda a exposição atrás de você. Sequer é preciso virar-se para ver o resto da exposição; a imagem refletida apresenta um jogo de luz que, sem descanso, vai e volta, penetrando e multiplicando-se nos vidros, espelhos e superfícies semi-reflexivas, transparentes e coloridas que foram trazidas para o espaço da galeria pelo artista.
Você se vira e contempla a obra do artista como sendo estas grandes superfícies reflexivas apoiadas na parede da galeria. As obras não apenas refletem a si mesmas em um jogo de espelhos, mas também a própria arquitetura cujo espaço ilusoriamente torna-se outro. Os espelhos se apresentam como estranhas passagens, interagindo com o próprio ambiente, operando como uma grande e sutil instalação que virtualmente rearticula, dobra e, de forma ilusória, perfura o espaço da galeria.
Você caminha na exposição entre as superfícies reflexivas e percebe diferentes níveis de espelhamento e transparência. Há uma obra que apresenta desde uma vasta área de vidro transparente que permite ver a parede branca atrás de si, indo até uma placa de reflexo máximo de um espelho prateado, passando, também, por um vidro branco leitoso e por uma superfície semi-espelhada, em um tom cinza escuro, que tinge os reflexos do semi-espelho.
Uma obra composta de vidros coloridos chama a atenção por trabalhar com algo que recorda uma das mais tradicionais técnicas da pintura: a velatura. A velatura é uma técnica em que o pintor sobrepõe camadas de tinta semitransparente. Nessa técnica, espera-se que uma camada de cor se torne seca para em seguida aplicar sobre ela mais uma fina camada translucida ou quase transparente de tinta, aplicam-se camadas, uma sobre a outra, deixando ver, através das transparências os tênues “véus” de tinta que foram sobrepostos. A velatura é uma técnica da pintura realizada por um acúmulo de véus transparentes de tinta. A obra de Fajardo com vidros produz algo do gênero: a sua extensa superfície reflexiva de cor azul é acompanhada das cores amarelo, verde, laranja e roxo que não existem por si, mas são o resultado de camadas, ou melhor, “véus” de transparências de cores em vidro que, sobrepostas, alteram a profundidade do belo matiz das cores envolvidas.
Uma quarta obra chama a atenção pelo contraste entre, por um lado, uma superfície lisa, dura, transparente, fina e reflexiva e, por outro, uma outra superfície opaca, composta de fibras aglutinadas por meio de pressão, um feltro, algo que não é tramado como um tecido, mas composto por camadas sobre camadas de fibra pressionada, sua constituição é um aglomerado. Diante da obra você vê a densa superfície de feltro que se inclina, devido ao seu próprio peso, por detrás do vidro, e, no vidro, você contempla mais uma vez o seu próprio reflexo e no feltro vê algo inesperado: a sombra de uma transparência, a própria placa de vidro produz uma leve sombra de si mesma, sobre o anteparo opaco. Tomam a sua atenção não apenas a reflexão da luz sobre a superfície polida, mas a sombra de uma transparência que deveria passar despercebida a qual, contudo, persiste como um leve “fantasma” sobre a opacidade do feltro.
Neste instante, a sua opinião sobre o que constitui as obras da exposição é transformada, não são as placas de vidro, mas, sim, a luz entre elas, a luz que produz a visibilidade no espaço em que você se encontra. A luz que bate no espectador, no chão e nas paredes e volta para os olhos produzindo um mundo de visibilidade; é esta a matéria trabalhada pelo artista, os invisíveis raios de luz que dão a ver o mundo da visibilidade.
Você subitamente contempla não mais os vidros, mas este jogo de luz produzindo uma multiplicação das imagens nos espelhos de Fajardo, você vê que as obras refletem a si mesmas como espelhos frente a frente multiplicando suas imagens em um abismo infinito de reflexão. As imagens formadas pelos reflexos são jogadas umas sobre as outras. Você quase pode imaginar a impossível fricção entre infinitos raios de luz se esbarrando em trajetórias cruzadas em um perpétuo movimento de vai e vem, vêm e vão.
O invisível caminho de luz que garante a visibilidade é também o fundamento da estética de Fajardo, então você olha para a obra que se encontra sob a entrada de luz natural do teto da galeria, uma claraboia; e exatamente sob a claraboia e apoiada no chão temos uma caixa com a sua face superior espelhada. A caixa, quadrada, possui dois metros de lado, uma dimensão próxima da claraboia, e vinte centímetros de altura. A sua face superior produz um reflexo curioso ao espelhar a claraboia, pois o seu reflexo não é uno, se divide em três imagens sobrepostas. Uma espécie de velatura de reflexos nos é devolvida pela obra fazendo com que uma única e mesma imagem seja triplicada na sobreposição de diferentes densidades de reflexos e transparências.
A caixa está sobre o chão abaixo dos seus joelhos, você decide observá-la com mais cuidado, inclina levemente seu corpo sobre ela e se dá conta da engenhosidade do artista: a caixa possui três chapas de vidro, uma espelhada no fundo e outra transparente recobrindo a superfície superior, os dois vidros são paralelos entre si e entre os dois há um terceiro vidro colorido, semitransparente e semirreflexivo, inclinado cortando a caixa de ponta a ponta. A luz simultaneamente a atravessar e a se refletir nas três camadas distintas de vidro irá produzir a sobreposição e o deslocamento de três reflexos: são três imagens contempladas na superfície da caixa com leves diferenças de tamanho, de densidade e de deslocamentos entre si. A bela imagem, ou melhor, as imagens resultantes são quase monocromáticas (pois tingidas pela cor do vidro inclinado), apresentando a sobreposição pictórica de reflexos da imagem do mundo cujo centro foi literalmente deslocado sobre si.
Neste reflexo de um mundo triplicado, entre a luz da claraboia e a caixa, você encontra a si mesmo contemplando a obra, mais uma vez o seu reflexo é contido na superfície reflexiva, três vezes o seu rosto é sobreposto, três vezes o seu olhar é devolvido a você.
A luz enlaçada pelos jogos de espelhos captura a sua própria imagem, você, o público, encontra-se neste fogo cruzado entre luz e imagens refletidas, não apenas na caixa espelhada apoiada no chão, mas em todas as superfícies reflexivas que compõem a exposição. Então você percebe que a iluminação da galeria não está voltada para as obras, mas, sim, para o espaço vazio entre as obras, para o espaço de deslocamento do público.
Por fim, você tem a sutil consciência de que a imagem humana, a sua identidade e o seu comportamento – no caso, tomados a partir do próprio espectador que se encontra diante das obras – são o ponto central para a experiência estética proposta por Fajardo. E que duplicar-se nos reflexos de tais obras é, também, abrir-se para uma introspecção subjetiva, a partir de uma experiência estética onde a imagem mais superficial refletida produz a reflexão mais profunda da experiência de pensamento. A reflexão, na exposição, assume um duplo sentido: tanto o da reflexão ótica de uma imagem em uma superfície espelhada, como o da reflexão do questionamento subjetivo de si mesmo. A experiência do deslocamento produzida pela multiplicação de imagens, no peculiar jogo de vidros reflexivos que envolvem nossos corpos, simultaneamente, exige que nos debrucemos criticamente sobre nós, pois, ao nos depararmos com tais obras nos perguntamos se não apenas a nossa imagem foi deslocada, mas, principalmente, algo em nós mesmos?