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agosto 8, 2016
O excesso como política de exposição por Gaudêncio Fidelis
O excesso como política de exposição
GAUDÊNCIO FIDELIS
Horror Vacui Tropical é uma exposição que aborda a manifestação do excesso na ocupação do espaço. O termo horror vacui, que designa “medo do vazio”, é uma característica que aparece na produção artística desde a Antiguidade, na montagem de exposições da década de 1930, na arte islâmica e no design de interiores, notadamente no período vitoriano, encontrando também correspondência em inúmeros aspectos da cultura contemporânea. Ao longo da história da arte, é possível constatar de forma mais evidente o horror vacui no Barroco e seu contraponto no Minimalismo, com diversas nuances entre eles e outras manifestações artísticas. Por outro lado, o horror vacui do Barroco coincide com uma inclinação inclusiva que se contrapõe à construção excludente da estética minimalista e sua estratégia, em que a aparência do espaço aponta para um universo autônomo desligado do mundo exterior e ausente de indivíduos.
O Minimalismo projetou-se assim contra o horror vacui, enfrentando o “medo do vazio” e desenvolvendo uma estética voltada para a subserviência da informação a uma condição reducionista e à estetização dos objetos no espaço. A política da estética minimalista atingiu não só a obra dos artistas, cuja manifestação estilística produziu obras surpreendentes, mas gera igualmente um espaço de exposições excludente, através de um arremedo da ausência, com seus projetos museográficos mínimos, destituídos de excesso e, ao mesmo tempo, grandemente estetizados. Em diversos momentos, tanto a obra de arte quanto o seu conteúdo estético e artístico confundem-se com aquele do espaço, determinado por uma política do vazio e da “limpeza” arquitetônica. É possível encontrar um desdobramento político dessa tendência de desocupação, que se configura como um processo equivalente de exclusão que se reflete em uma tipologia museográfica, expressa através de poucas obras no espaço e, por consequência, de menos artistas representados nessas exposições.
Em uma disfarçada “tecnologia da exposição”, supostamente baseada na excelência técnica e estética da montagem, exposições com uma inclinação minimalista transformam-se, por vezes, em instrumentos excludentes da história da arte. Horror Vacui Tropical é, portanto, uma exposição que tem antipatia pelo vazio museográfico, ou melhor, rejeita o vazio como manifestação estetizante dos mecanismos de display. Além disso, liberta-se da política de escolhas baseada em critérios determinados pela subsequente disposição de obras no espaço. Em outras palavras, trata-se de uma exposição mediada por um desejo de ocupação produtiva daquele espaço, uma vez abandonado o seu caráter estetizante. Retirando suas lições do horror vacui do Barroco, das exposições dadaístas e surrealistas dos anos de 1930, dos estúdios dos artistas e de recentes projetos de exposições, Horror Vacui Tropical procura ensaiar uma perspectiva que não seja euro-americana e mostre-se mais “tropicalizada”, digamos assim, da abordagem do espaço. O informalismo tropicalista da ocupação espacial, com os ensinamentos de Hélio Oiticica, a partir de seus Penetráveis, a abordagem labiríntica, advinda dos ensinamentos das favelas de onde se alimentou sua obra, proporciona lições para que possamos repensar nossa relação com a obra de arte no espaço de exposições.
Nesse sentido, a cultura visual do espaço urbano, com seu excessivo volume de informação, gera inspiração para que trabalhemos sem as limitações da exibição museográfica e os preconceitos da visão academicista da realização de exposições visualmente reducionistas. A exposição inclui obras de períodos diversos da produção desses artistas. Por outro lado, em Horror Vacui Tropical, a disposição das obras incita a aproximação, uma relação erótica dos objetos com o olhar, e uma experiência física da arte com o corpo. Aproveitando-se da arquitetura do espaço do Lab Art 760, em que se realiza a exposição, o projeto curatorial busca promover a consciência da percepção das implicações políticas de exibir as obras fora do território desprotegido do estúdio do artista ou da institucionalização minimalista e asséptica do “cubo branco”.
As obras de Ana Norogrando (1951), incluídas nessa exposição, produzem uma ocupação do espaço através da escultura, com uma manifestação ornamental da superfície em que a tão proclamada dicotomia “cheio/vazio” aparece agora como complementar. O resultado da experiência planar na escultura é, antes de tudo, uma contingência do material, que está sujeito a torções físicas relativamente simplificadas, mas conceitualmente complexas, já que atravessam a história da forma na escultura e a trajetória das superfícies planares. Tendo adquirido parte de seus ensinamentos dos Bichos de Lygia Clark (1920-1988), essas obras em algum momento se contorcem pelas mãos da artista, mas permanecem em um movimento congelado, frustrando a vontade do espectador. O olhar pode atravessá-las com alguns impedimentos, como no caso de Contorsão I (2016), em que uma malha de tecido tenciona o metal e embaralha a visão através de uma camuflagem que, de certo modo, imita a própria trama metálica da escultura. Essa forma faz também uma alusão a uma fita de Möebius cuja topologia consiste em uma superfície infinita dobrada sobre si mesma. A retina também é embaralhada pela grade vibracional de que são feitas, produzindo no olhar um anteparo para que este possa estruturar a forma de uma perspectiva fenomenológica.
Por outro lado, as duas pinturas de Dudi Maia Rosa (1946), incluídas em justaposição com essas obras de Ana Norogrando, cuja forma surge arrancada da fôrma que lhe dá surgimento, apresentam uma superfície densa e fechada, embora suas protuberâncias não permitam que o olhar descanse. O caráter táctil/visual dessas obras, visto que não são feitas para tocar, mas para serem compreendidas pelo olhar, redimensiona o status da pintura, inclusive em termos de escala: elas parecem intimistas, mas, na verdade, dissimulam uma massa pictórica que é imensurável. Seu aspecto barroco é exacerbado pela confluência de uma excessiva densidade material e pelo caráter informe [1], ainda que no final das contas essas pinturas não ilustrem apropriadamente o referido conceito, pois equivalem a uma espécie de falsificação da matéria moldadas em fibra de vidro e pigmento, tendo nascido prontas, em forma e cor. Elas não são pintadas; o gesto é moldado e impresso na superfície a priori. Assim, nessa exposição, as obras de Ana Norogrando e as de Dudi são exibidas em paralelo, a primeira demonstrando a ocupação do espaço pela definição da linearidade e a segunda pela densidade da massa pictórica (dissimulada) na construção da forma.
A ocupação do “vazio”, motivada pelo horror vacui artístico e museográfico do display, é uma operação que requer estratégias capazes de preencher o espaço em todas as suas características. Por essa razão, foi necessário pensar em uma dimensão olfatória e a inclusão da obra Quien limpia a quien/Jabón de ajo (1994-2015), de Oswaldo Maciá (1960), tem o objetivo de chamar a atenção para esse fato. A convivência que temos com o cheiro não pode ser controlada, e o olfato transforma-se assim em um dispositivo de redimensionamento das relações espaciais, especialmente se estamos falando da impregnação do espaço nos “trópicos”. Quien limpia a quien é uma obra que exercita a dimensão política do objeto como forma de chamar a atenção para a mais-valia da limpeza, suas implicações no universo da cultura e uma dimensão de alteridade, na medida em que enfatiza as disparidades em nossa relação com o Outro. Em uma exposição que trata do espaço como ocupação desmesurada, a obra de Maciá reivindica diversos questionamentos, incluindo, mas não se limitando, àquele pertinente à dimensão expansiva dos objetos como dispositivos de reflexão. Embora à primeira vista pareça um objeto inócuo, essa obra problematiza politicamente o espaço ao introduzir questionamentos sobre a política do olfato e seu exercício através dos tempos. A limpeza apresenta inúmeras conotações. Da contaminação física e simbólica à ideologia de imigração tingida muitas vezes em concepções de etnia; do confronto entre a aparência do corpo à sociabilidade e à dimensão público-privada da circulação dos bens de consumo. O cheiro é pervasivo em nossa vida diária, embora largamente ignorado como proposição teórica e reflexiva.
Paralelamente a essa obra de Maciá, foi incluída uma pintura de Britto Velho (1946), Sem título (1985), em que o olfato aparece como uma alusão e à qual o artista Danúbio Gonçalves referiu-se como sendo um “canhão olfativo e auditivo” [2], em um texto que escreveu em 1983. Nessa pintura especificamente, vê-se com clareza o que parece ser um tubo circular saído do corpo da figura, logo acima da boca, ressaltando igualmente a oralidade (o sentido do gosto portanto), além do olfato. A ocupação do espaço pela figura, que se expande solitária, ocupando quase toda a área da pintura, contrasta com as convenções da paisagem, evidente através de uma linha que se encontra ao fundo, dividindo o quadro em céu e terra. Assim, concluímos que a experiência dos sentidos aqui se dá da mesma maneira como no Barroco, entre as relações mundanas e divinas. Como é recorrente em suas pinturas, o olhar também é evidente nessa obra. Três olhos aparecem na cabeça da figura, mas seu nariz pronunciado não deixa dúvidas de que a pintura faz alusão a uma sensibilidade pronunciada para o olfato.
Essa exposição sinaliza para um número de questões relacionadas ao espaço de exposições que encontra uma referência mais conhecida no chamado “cubo branco”. As pinturas de Eduardo Haesbaert (1968), Casa Cubo (2011) e Sem título (2011), referem-se aos problemas daquele espaço e à sua ocupação. Casa Cubo pode ser vista com uma espécie de metáfora relacionada ao espaço que abriga a arte e as relações dos objetos com o seu campo de exposição. A “casa” é equivalente ao abrigo e às relações que luz e sua ausência demandam. Essas pinturas de Haesbaert com seus espaços contrastantes dramatizam as relações entre os objetos e o espaço. O “atravancamento” visual que aparece nessas obras faz com que projetem uma atmosfera sufocante própria do horror vacui. Para a exposição, elas se tornam ainda mais significativas, pois produzem uma mise em abîme que é demonstrada com a representação pictórica dessas duas “galerias” dentro de uma galeria, ou lugares de existência da arte dentro de outro espaço equivalente.
A dimensão diagramática do espaço tem sua demonstração mais contundente nas pinturas de Flávio Morsch (1963), que ocupam a superfície da tela através da cor utilizando-se do dispositivo da grade [3], cuja tradição é exclusivamente moderna. A ocupação produtiva da superfície pictórica é otimizada pelas relações com a dimensão construtiva do quadro, assim como estabelece um parentesco com o caráter neogeométrico e sua dimensão cultural relacionada à experiência transcendental da luz e da cor, aliada a uma disposição psicodélica que a história deixou como legado quando as relações entre a experiência do espaço e as noções de território são retransformadas espacialmente. Há ainda nessas pinturas um certo caráter pop, devido ao uso da cor, embora não estejam implicadas de modo algum com a pop histórica e sua ideologia.
Não por outra razão, é importante salientar a inclusão da obra Totem de Interpretação (1969), de Romanita Disconzi (1940). Realizada no auge do aparecimento da Pop em diversas partes do mundo, a obra de Romanita consiste em um conjunto de formas geométricas realizada com seis cubos, um cilindro e dois paralelogramos. Essas formas são cobertas por imagens impressas em cada uma de suas superfícies, com imagens de telefones, corações, sinais de trânsito, setas, carros e flores. Totem de Interpretação é paradigmático por sua ligação com o espaço da cidade, os meios de comunicação de massa e a visualidade urbana. Ao introduzir uma dimensão participativa, a obra de Romanita faz ainda uma incursão no campo da semiótica e das investigações artísticas no universo interpretativo da obra de arte. A obra demonstra ter, por isso mesmo, um caráter lúdico e atua em uma zona de interatividade que se caracteriza por um jogo de sinais muito peculiar ao universo da cultura e da participação que surgiu com grande força na produção de meados da década de 1960 e início da década de 1970. A ocupação modular do espaço equivale de certa maneira à dimensão da grade modernista, mas sem a ordenação que ela tinha, sendo que os elementos que compõe a formação estrutural do espaço (as partes por assim dizer), apresentam-se agora desordenados pela inclinação da vontade do espectador ou do montador nesse caso.
Uma exposição que trata da ocupação excessiva do espaço não poderia deixar de incluir exemplos de uma visão apocalíptica quando ele é dominado pela figuração e pela representação do descontrole da tecnologia. Assim, os desenhos de Wilson Cavalcante (1950) da década de 1970 incluídos aqui nos possibilitam refletir sobre uma diversidade de tópicos que são pertinentes às discussões dessa exposição. Entre elas, cita-se a inclinação para o surrealismo e o universo pop dos quadrinhos, a ficção científica e a crítica ao regime ditatorial brasileiro – muito apropriada, diga-se de passagem, ao momento histórico que estamos vivendo. Em todos os casos, Cavalcante trata essas diferentes questões por meio de uma ocupação da figura no espaço que mostra as circunvoluções do universo pop, graças a uma abordagem da política da imagem que coincide com o horror vacui e com as mazelas dos trópicos.
Os “livros de pintura” de Frantz, realizados com recortes de forração de pisos de ateliers de artistas cria um dispositivo de leitura e ingressa no terreno interpretativo do objeto de arte. Estes objetos são realizados com resíduos de tinta de pisos de artistas de diversas gerações, cuja obras são de estilos e status institucional diversos. Estas obras de Frantz, como todas desta série, são o resultado de uma relação estabelecida entre o artista e seus pares pintores, em que ele obtém estes resíduos de tinta deixados pelos mesmos em seus estúdios de trabalho. Frantz estende estes tecidos que serviram de forração de piso para o estúdio em um bastidor, transformando-os em pintura. Desta forma, sem a interferência ou pintura propriamente dita, estas obras de Frantz são elas próprias “pintadas” por terceiros e se transformam em uma reminiscência da produção destes artistas que sobre elas trabalharam. Elas convertem-se, assim, em subsidiárias da produção artística dos que pintaram suas obras nesses estúdios e que nós, ao olhar a pintura de Frantz, entendemos como uma intermediação discursiva feita pelo artista sobre o trabalho no estúdio, e sobre a perda da própria identidade autoral. A obra transmuta-se, então, em uma manifestação conceitual dos procedimentos ideológicos da história da pintura, e sua fetichização consolida-se no ambiente místico do atelier, agora transportado para o espaço de exposições. Em seus livros de pintura, Frantz estrutura a informação pictórica em um enquadramento, e produz um dispositivo em que a leitura e a interpretação coexistem em um objeto tradicionalmente dedicado à circulação de informação. A pictorialidade destas obras é assim condensada em um espaço compacto e participativo em que nos confrontamos com o excesso a partir da contaminação entre meios de circulação.
Não por outra razão, incluí aqui uma obra de Ilsa Monteiro (1925), Sem título (1974), de uma série de pinturas que a artista produziu na década de 1970 e que proporciona uma visão onírica do lugar, um complementariedade à mais intimista dos “livros de pinturas”, trazida à tona pela obra Frantz. Repleta de formas circulares, essa pintura introduz na superfície da tela uma série de “buracos” que fazem uma alusão ao mecanismo da visão, já que as superfícies são mediadas pela possibilidade de ver através delas. Dois buracos apontam para um interior negativo, enquanto uma imagem da lua faz contraponto em um movimento ascensional em direção ao espectador. Poder-se-ia pensar um desses “buracos” como refletindo-se na superfície de outra tela, localizada dentro da pintura, inclinada em relação ao plano. Três superfícies (mesa, céu e uma tela) desestabilizam o quadro, sendo importante lembrar que ele historicamente sempre foi considerado uma “janela para um mundo”, a que a pintura faz alusão, através da lua sobre o horizonte aquático que se vê através de uma abertura na superfície da pintura. O fio que desce pela superfície pode ser interpretado como indicação de uma ligação entre o sonho, ficção e realidade. Tal pintura é importante nessa exposição pelo excesso de informação e alusões que apresenta. O próprio horror vacui do pensamento.
[1] Conceito desenvolvido por Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois em sua exposição L’Informe: mode d’emploi, realizada de 22 de maio a 26 de outubro de 1996 no Centre Georges Pompidou. O conceito de informe foi inicialmente introduzido em 1929 por George Bataille (1897-1962) em um artigo com o mesmo título publicado na revista Documents.
[2] Danúbio Gonçalves, Carlos Carrion de Britto Velho: Pinturas e Desenhos, Porto Alegre, Kraft Escritório de Arte, catálogo da exposição, 1983, não paginado. No texto, a expressão utilizada foi “canhões nas guaritas auditivas ou olfativas”.
[3] Ver por exemplo,Rosalind Krauss, “Grids”, publicado em The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, 11a edição (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1985), 9-10.