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fevereiro 10, 2016
Notas sobre a Bienal do Mercosul por Gabriela Motta
Notas sobre a Bienal do Mercosul
GABRIELA MOTTA
Há quase vinte anos, em 1997, acontecia em Porto Alegre a primeira edição da Bienal do Mercosul. Nesse percurso, muito se debateu sobre o evento, considerando-se inicialmente a pretensa crise do modelo Bienal de Artes Visuais, a pertinência – ou impertinência – de mais uma exposição do gênero no Brasil e a limitação político-geográfica sugerida por seu nome.
Como se percebe, a crise atribuída ao modelo expositivo bienal é de ordem conceitual e não de ordem prática. Quer dizer, nós – curadores, pesquisadores, artistas, críticos de arte, leitores – podemos considerar anacrônica a existência de eventos bianuais cuja pretensão é apresentar mostras panorâmicas, mundiais ou regionais, sobre arte. No entanto, seguimos assistindo ao surgimento de novas bienais de arte pelo mundo e contribuindo com esses eventos na medida em que participamos deles enquanto agentes que os conformam conceitualmente.
Se interessa-nos discutir os modos de circulação, de abordagem e de fruição da arte, cabe reconhecer as exposições do gênero para além do fato de serem estruturas estabelecidas, basicamente, a partir de uma economia da cultura. A aproximação entre tais termos é algo a ser problematizado especialmente desde seu interior.
A Bienal do Mercosul surge em consonância com as contradições dos dias de hoje, um período caracterizado pela globalização dos mercados, pelo esgotamento dos recursos naturais, pelo afastamento do poder público em relação a setores como educação e cultura e pela acentuação das contradições sociais. Nesse pacote político-econômico-social, modificam-se os modos de financiamento e de circulação de bens culturais. Em tal conjuntura, projetos de grande porte acabam sendo privilegiados pois envolvem um maior número de profissionais aptos a formatar essas propostas nos termos exigidos por lei.
No Brasil, na esteira do PRONAC (Programa Nacional de Apoio à Cultura, também conhecido como Lei Rouanet, instituído em 1991 no governo Fernando Collor), surgem as leis estaduais de incentivo à cultura. Na prática, isso significa que a maior parte dos recursos financeiros necessários para a realização de projetos culturais virá da iniciativa privada mediante a aplicação dessas leis, que permitem o redirecionamento de um percentual de impostos. No Rio Grande do Sul, a LIC/RS – Lei de Incentivo à Cultura – foi aprovada em 1996 e regulamentada alguns meses antes da primeira edição da Bienal do Mercosul, em maio de 1997.
Tal como esse evento, todos os projetos culturais de grandes dimensões das últimas décadas, como a mostra Brasil 500 anos, o programa Rumos Itaú Cultural, e mesmo os prêmios PIPA e Marcantonio Vilaça – para ficarmos só nas artes visuais –, utilizam essas leis de incentivo. Já projetos autônomos, independentes, de pequenas proporções, encontram mais dificuldade em obter recursos para sua realização, ora por não darem o “retorno” esperado pela iniciativa privada, ora por não enquadrarem-se na estrutura burocrática dos meios de financiamento regulamentados. Mesmo se pensarmos nos mecanismos de incentivo direto, como os programas da FUNARTE, a quantidade de profissionais exigida nos editais, como assessoria de imprensa ou produtor – o que, dependendo do projeto, nem sempre é necessário –, afasta ou impede que sejam aprovadas propostas que não se enquadram nesses termos.
É nesse contexto, com essas questões em jogo – interesses políticos, economia cultural, ampliação de circuitos artísticos via projetos de grande envergadura –, que surge esta Bienal. Se a idealização da mostra reconhecia a necessidade real de ampliarmos a circulação da produção artística para além do eixo Rio-SP, ao mesmo tempo a sua criação valia-se de um mecanismo incipiente de financiamento.. Assim, a Bienal do Mercosul configura-se também como um investimento em capital simbólico capaz de fortalecer um acordo político de livre circulação comercial (algo até hoje não alcançado entre os países do bloco, nem econômica, nem culturalmente).
Destaques de um percurso
Em sua trajetória, a Bienal do Mercosul não é diferente das outras mostras do gênero. Algumas de suas edições foram plataformas importantes para discussões sobre arte contemporânea, sobre curadoria, sobre a relação da bienal com o local no qual ela acontece, sobre arte e educação. Outras, podem ser vistas como exemplos de irresponsabilidade curatorial e administrativa, o que implica em reconhecermos a complexa estrutura de gestão dos projetos de grandes proporções. Mostras como as bienais de arte conjugam especialistas em determinada área cultural – nem sempre verdadeiramente engajados com o projeto para o qual são convidados – e especialistas do setor empresarial – nem sempre conceitualmente envolvidos com a área em questão. De todo modo, é evidente que, em suas dez primeiras edições, essa Bienal propiciou um trânsito inigualável de obras de arte, de artistas e de técnicos em montagem de exposições, influenciando na formação dos agentes e do público local e configurando-se enquanto um evento fundamental, não só para Porto Alegre, mas para o Brasil.
Primeiro ponto: revelando espaços
Desde sua primeira edição, a Bienal do Mercosul tinha como um dos seus desafios encontrar locais para sua realização, considerando a precariedade e escassez de equipamentos públicos em Porto Alegre. O que poderia ser um limitador da mostra, tornou-se uma de suas marcas: a descoberta de locais não tradicionais, a criação de espaços expositivos e mesmo a colaboração na melhoria de algumas instituições, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
É com essa dinâmica que espaços como o DEPREC – um galpão portuário – abrigou mostras das duas primeiras Bienais, o Hospital Psiquiátrico São Pedro foi utilizado na terceira edição do evento, os armazéns do Cais do Porto concentraram a maior parte das exposições realizadas na 4ª, 5ª, 6ª, 7ª e 8ª edições da mostra. Boa parte desses lugares, e outros tantos como o singular “prédio da Mesbla”, utilizado na 1ª Bienal, ou a Casa M, projeto da 8ª edição que transformou uma casa residencial do centro histórico de Porto Alegre em um ponto de encontro, abrigando espaços expositivos e de estudos, cozinha e biblioteca, jardim e sala de estar, deveriam ter sido preservados enquanto equipamentos culturais da cidade, o que infelizmente nunca ocorreu.
Por que isso não aconteceu? A Bienal afirma não ser de sua responsabilidade manter esses locais. A prefeitura não tem condições financeiras de arcar com os custos de novos equipamentos culturais. O Estado, atualmente, não garante nem o pagamento dos servidores públicos, o que dirá destinar alguma verba para a cultura. Os armazéns do Cais do Porto são alvo de uma disputa política envolvendo a negociação dessa área com a iniciativa privada para sua presumida exploração comercial.
Como em uma boa peça de teatro, em algum aspecto, todos os personagens têm razão. O cenário cultural no âmbito do capitalismo tardio é complexo e estamos longe de conseguir compreender todos os meandros dessa rede. De todo modo, por mais que o esquema atual de financiamento cultural praticamente obrigue todos envolvidos com a cultura a ter CNPJ, ainda é como pessoas físicas que podemos fazer alguma diferença.
Segundo ponto: algumas diferenças
Paulo Sergio Duarte foi o pesquisador convidado para assumir a curadoria geral da 5ª edição da Bienal do Mercosul (2005). Logo que seu nome foi anunciado, o crítico apresentou sua proposta para a mostra, na qual destacam-se, entre tantos outros aspectos, pelo menos três ações determinantes para a discussão tanto sobre esta Bienal especificamente, quanto sobre o papel de uma bienal em geral.
Em primeiro lugar, Paulo Sergio manifestou a inadequação da mostra ser limitada ao universo sugerido por seu nome, iniciando o processo de internacionalização do evento. De fato, restringir a Bienal aos países membros do bloco não poderia contribuir para qualquer discussão estética, nem mesmo sobre arte latino-americana já que “Mercosul” é um acordo econômico e não uma região. Com enfeito, cientes disso, nenhuma edição da mostra limitou-se a contemplar somente obras desses países, apresentando exposições especiais com artistas como Jesús Soto ou Pablo Picasso. Porém, é só a partir da 5ª edição que essa abertura passa a fazer parte do discurso curatorial, modificando a estratégia de mostras especiais, até então adotada pelos projetos curatoriais.
Em segundo lugar, Duarte envolveu-se em defesa do Núcleo de Documentação e Pesquisa da Bienal, contribuindo para sua estruturação. O NDP, apontado como necessário já na primeira edição dessa exposição, foi criado pela Fundação Bienal em outubro de 2004 e abriga todo tipo de documentação referente à história do evento.
Por fim, tentando amenizar o clichê que associa as exposições do tipo bienal com discos voadores por serem ambos “aparições” eventuais, a 5ª Bienal comissionou quatro obras públicas. Os artistas Waltercio Caldas, Mauro Fuke, Carmela Gross e José Resende foram convidados a desenvolver projetos para a região da orla do Guaíba. Mais uma vez, tal atitude não chega a ser inédita na trajetória da Bienal do Mercosul, tendo em vista as onze esculturas públicas legadas na 1ª edição do evento, localizadas no Parque Marinha do Brasil, e a obra Supercuia, de Saint Clair Cemin, comissionada pela 4ª Bienal. A diferença, na 5ª Bienal, está no modo como tais obras foram definidas: através de projetos que levavam em consideração, sobretudo, o lugar no qual seriam instaladas. Hoje, todas essas obras encontram-se bastante deterioradas ou interditadas, por total irresponsabilidade da Prefeitura de Porto Alegre.
Assim como Paulo Sergio Duarte, as equipes e os curadores gerais da 6a e da 8a Bienal, Gabriel Perez Barreiro e José Roca respectivamente, serão lembrados como pessoas que assumiram a responsabilidade de pensar sobre o papel de uma bienal de artes visuais, interferindo um pouco nos aspectos controversos dos grandes eventos. Em todas essas edições da mostra, desenvolveram-se projetos que contemplavam questões como formação de circuitos autônomos, educação em artes visuais, constituição de acervos públicos, o papel da curadoria, inclusão de agentes locais, contribuindo para que a Bienal do Mercosul fosse uma plataforma importante para a discussão sobre o mundo da arte.
Ainda cabe reconhecer a importância dos projetos da 1ª, da 2ª e da 7ª edições da mostra sulista. A 1ª edição da Bienal do Mercosul, com curadoria de Frederico Morais, além de conseguir transpor todas as dificuldades inerentes de um projeto inaugural, homenageava o crítico Mário Pedrosa e o artista argentino Xul Solar em duas mostras especiais. O projeto da 2ª Bienal, elaborado por Fábio Magalhães e por Leonor Amarante, apresentou um grande número de proposições artísticas desenvolvidas especialmente para a mostra, voltando-se efetivamente para a produção contemporânea de arte. Por fim, em sua 7ª edição, com curadoria geral de Victoria Noorthoorn e Camilo Yáñez, a Bienal do Mercosul, além de suas exposições, apresentou uma programação constante de debates, de performances artísticas e de ações educativas em continuidade com o que vinha se desenvolvendo desde a 5ª edição do evento.
Terceiro ponto: de que é feito o chão?
Há no ar um clima de mau tempo. E não estou falando da chuva constante que cai sobre Porto Alegre nos últimos meses. Desde o final da 9ª edição desta Bienal circulam conversas nas quais se especula sobre a continuidade da mostra. Em que pese a minha ignorância quanto ao real papel do empresário que assume a presidência desses eventos, é fato que, sem essa figura, pelo menos no Brasil, não se faz uma exposição nas proporções de uma bienal internacional. São personagens coadjuvantes do ponto de vista daqueles interessados em discutir arte, mas totalmente protagonistas do ponto de vista da viabilização de projetos de grande envergadura.
Em sua 9ª edição, pela primeira vez, quem ocupou a presidência da Fundação Bienal foi uma mulher. A empresária Patrícia Druck assumiu esse papel e, ao lado da curadora geral, Sofia Chong Cuy, conseguiu realizar uma Bienal com grandes nomes da arte, como Hans Haacke e Robert Rauschenberg, e muitas contendas, como a saída, ao final desta edição, da pesquisadora Mônica Hoff, que coordenava o programa pedagógico da Bienal desde 2006. Porém, a mais grave dessas polêmicas envolve uma grave acusação. Há quem diga que as dificuldades para a realização da mostra, enfrentadas pela diretoria e pela curadoria, teriam sido agravadas em função do comportamento misógino de parte importante da instituição. Não cabe aqui apontar nomes, nem de delatores nem de acusados, mas considerar o conservadorismo da sociedade em geral, algo que aflora quando mulheres assumem setores tradicionalmente ocupados por figuras masculinas.
Ponto final: a lógica de super-mercado
Agora, em plena 10ª edição da Bienal, em meio à confusão envolvendo os constantes adiamentos de sua abertura e a saída de parte da equipe curatorial um pouco antes de sua inauguração, temos que nos confrontar com o que é a exposição em si. A despeito das presumíveis divergências entre o curador geral, Gaudêncio Fidelis, e aqueles que saíram – Ramon Castillo, Raphael Fonseca e Fernando Davis –, tal atitude é questionável, especialmente por ter sido tomada tão tardiamente. Por mais que se saiba que o curador geral, sem o conhecimento de parte de sua equipe, excluiu artistas da mostra alegando dificuldades em transpor a burocracia alfandegária, desligar-se do projeto de uma bienal na última hora não afeta significativamente a proposta curatorial – supostamente, já bastante conhecida por todos os envolvidos. Ou seja, retirar-se da equipe da Bienal uma semana antes de sua abertura atinge sobretudo a situação institucional do evento. E não exime totalmente nenhum curador do que é a exposição.
Independente disso, é muito difícil escrever sobre a atual Bienal do Mercosul, pois, ao contrário de todas as outras edições da mostra, não há nada nela que possa ser defendido. Claro, existem bons artistas e bons trabalhos na mostra, mas todos, sem exceção, perdem camadas conceituais e sensíveis em função do modo como estão expostos. São tantos os equívocos curatoriais, começando pela declaração da curadoria de que a mostra pretendia “retomar sua vocação inicial privilegiando obras latino-americanas”, que não vale a pena enumerá-los sob o risco de colaborar para a já frágil situação em que a Bienal do Mercosul se encontra.
Contudo, destaco um exemplo de como uma exposição pode contribuir para uma leitura rasa da arte: no prédio do Memorial do Rio Grande do Sul, em uma mostra chamada Biografia da vida urbana, encontramos, lado a lado, a obra de Antonio Caro, Colômbia, um postal de Paulo Brusky, apresentado em uma caixa de acrílico, e três garrafas de Coca-Cola, resquícios de uma das Inserções em circuitos ideológicos, de Cildo Meireles. A obra de Caro está absolutamente de acordo com uma ideia de arte retiniana, ainda que conceitual. O trabalho – uma litografia vermelha e branca na qual se lê a palavra “Colômbia” escrita com a caligrafia do logotipo da Coca-Cola – atualiza o jogo da Pop Art, envolvendo procedimentos de apropriação e de ressignificação de imagens midiáticas ou de produtos industrializados na construção de significados, no contexto da arte. É algo para ser visto com os olhos, que aponta para a nossa capacidade – ou incapacidade – visual de discernir e identificar subtextos em uma obra capaz de cruzar, numa só imagem, países, produtos e disputa política. Está onde deveria estar, em uma instituição de arte.
Já os trabalhos de Cildo e Brusky discutem exatamente o contrário daquilo proposto por Caro. De partida, não foram feitos para serem vistos e sim experienciados no cotidiano. Em suas gêneses, está a proposição de novos meios de circulação e de fruição da produção artística, está precisamente o questionamento das instâncias institucional e retiniana da arte. Se hoje é lícito que tais propostas sejam expostas em mostras de arte, é preciso sublinhar que são documentos, resquícios materiais de algo que ultrapassa largamente a noção de objeto de arte. Apresentá-los enquanto obras prontas só contribui para a crescente fetichização da arte, a mesma que estimula a transformação das grandes exposições e museus de arte em competitivas instituições de entretenimento.
Por fim, uma exposição que alinha trabalhos artísticos cujo ponto em comum é um produto como a Coca-Cola diz mais sobre o refrigerante do que sobre arte.
Em Frente
Não será a primeira vez que uma exposição do tipo Bienal será lembrada por seus equívocos. Sobram exemplos de edições conceitualmente frágeis nas Bienais de São Paulo e de Veneza. Podemos lidar com isso e pensar em como minimizar as consequências negativas desses projetos. No caso de Porto Alegre, o pior desses efeitos seria considerar que a Bienal deixe de ser realizada. Espero profundamente que o complicado projeto de sua 10ª edição sirva de estímulo para que a Fundação Bienal do Mercosul resgate seu papel transformador e volte a contribuir para a construção de um debate instigante sobre arte e sobre o mundo da arte.
Gabriela Motta é pesquisadora em crítica e curadoria. Possui doutorado em artes visuais pela ECA/USP.