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novembro 29, 2015
Silêncio impuro por Felipe Scovino
Silêncio impuro
FELIPE SCOVINO
Silêncio impuro, Anita Schwartz Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ - 05/11/2015 a 06/02/2015
Nessa mostra o som é um índice, pois as obras operam com o seu lado negativo no qual ele (som) é silenciado. O que existe, ou melhor, aquilo que se expande pelo espaço é a imagem do som, isto é, as mais distintas suposições que podemos ter sobre qual som poderia ser ouvido se finalmente aquilo que o impede (uma amarra, uma solda, ou ainda o livre entendimento de que a obra possa ser compreendida também como uma partitura) fosse revelado ou reinterpretado. O som, portanto, é evidenciado pela forma mas a nossa expectativa pelo seu acontecimento é negada pelo seu silêncio. Ele é desejo, torna-se visível mas nunca acontece na sua forma mais plena, que seria a audição. Não necessariamente a impossibilidade do som se converter em audição, algo como se aquele som fosse um “grito surdo”, constitui-se como drama ou falência mas como um fenômeno que nos possibilita criar inúmeras metáforas para o que pode ser qualificado como som assim como relevar novas propriedades para as obras em questão, tais como o caráter de delicadeza e suavidade que as mesmas podem possuir. Esse tipo de afirmação encontra um par, guardadas as suas especificidades, com as experiências de John Cage, que evocavam que o silêncio possuía uma particular notoriedade: ele não existe. O silêncio nunca é completo pois sua vibração é permanentemente constituída e frequente. Lembremos da célebre performance 4’33’’ do mesmo artista e as circunstâncias de como o público de uma sala de concerto se comportou diante do (suposto) silêncio. Uma vez que o silêncio, assim como colocado por Cage, não se reduz à questão acústico musical, as obras aqui reunidas não afirmam um significado último e derradeiro para o silêncio; ao contrário: mostram sua abertura, complexidade e multiplicidade e apontam finalmente para o fato de que silêncio e som estão em constante mutação e interpenetração.
As obras de Carla Guagliardi expõem através de uma economia de gestos e elementos uma surpreendente leveza nas suas composições estruturais. A escolha dos materiais (borracha, madeira, espuma) envolve um repertório de fragilidades e um equilíbrio precário. Tudo parece ruir ou estar prestes a desabar, mas por outro lado as obras evidenciam uma dinâmica que é própria da natureza do som: querem o ar. Como partituras, seus elementos ao mesmo tempo que se revelam como notas suspensas no espaço, tendem a ecoar ad infinitum. Esta imagem cria um diálogo pertinente com a série Partitura (2010) de Artur Lescher, que nos mostra todas as possibilidades dessa propriedade imaginativa e quase audível. Estão lá o ruído, o som, a música, mas acima de tudo o silêncio como vibração. Essa qualidade semântica, que sobrevoa todos as obras da mostra, reflete uma dualidade perspicaz nessa série de Lescher: há uma dualidade sendo confrontada, pois a leveza ou suavidade das “notas” de suas partituras nos levam a “ouvir” ou sentir, por outro lado, um peso, uma massa sonora. A condição de partitura também se faz presente nas duas obras de Cadu. Em Hemisférios pequenos blocos de papel vegetal possuem em suas superfícies o resultado de exposições diárias à luz do sol e às demais condições do ambiente. Por meio de um suporte é fixada uma lupa que, ao longo de algumas semanas, foca a luz do sol direcionando-a para uma determinada área. O resultado é um grafismo desse tempo, o lento e silencioso passar das horas, que trava uma pertinência com a imagem da partitura. Não há som, apenas o seu caráter indicial e o processo de excluir ou escavar a matéria para revelar uma outra possibilidade de aparecimento ou ação poética da obra. Esta imagem reflete uma situação similar em Da série pagão (2010) de Nuno Ramos. Nestas obras, os instrumentos musicais foram “jogados” para dentro da matéria, no caso a pedra sabão. Não existe a possibilidade de atingi-los, fazer uso das suas propriedades sonoras. O que se tem é desejo, pois se os alcançássemos e os libertássemos, poderíamos fazer uso das suas qualidades e seríamos surpreendidos e encantados por sua natureza poética. Tanto nos desenhos de Cadu quanto nos instrumentos de Nuno existem formas capazes de ressoar potências visuais e sonoras, que, como um “engenho silente” [1], estão a ponto de serem ativados por nossas mentes.
Já em Für Elise (2006) a partitura é o ponto de partida. O solo para piano de Beethoven que dá título à obra é uma das melodias mais conhecidas e altamente disponibilizada em caixinhas de música. Como explica Cadu, ele criou “um sistema para a produção de uma imagem baseado nas características mecânicas da caixinha que contem essa melodia.
A reprodução desta para o mecanismo da caixinha ocorre através de um ‘garfo’ com dezoito pontas em diferentes afinações por onde um cilindro contendo as marcações de tempo aciona separadamente cada um de seus dentes em momentos específicos. As marcações neste cilindro foram escritas em uma folha de papel milimetrado transformando-se na planificação deste processo. Adicionando um novo tempo para cada nota musical, da esquerda para direita, surgiu um padrão em formato de cascata, que repetido dezoito vezes, gera sua escrita em negativo. Os intervalos de tempo na melodia, inicialmente brancos, são preenchidos por tantas notas que ao final apresentaram-se negros.” Cadu criou uma nova partitura ou qualidade sonora para uma melodia através de um sistema, objetivo e preciso, que transmite um sentido de caos ao que já era dado como estabelecido.
Em Metade da fala no chão – piano surdo (2010) de Tatiana Blass, o personagem é o tempo. Ao ter, lentamente o piano e por conseguinte o som encobertos e silenciados por uma mistura de cera e vaselina, o que se evidencia é o angustiante, tedioso e impassível processo de mudança. De forma cênica, o drama da vida moderna se faz diante dos nossos olhos: a matéria pouco a pouco torna muda a paisagem ou local da ação. Precisamos, diante do inesperado, refazer as nossas expectativas e reelaborar os nossos sentidos. Sua obra, ademais, escancara a consciência da finitude.
A obra de Waltercio Caldas vai na contra mão do espetáculo, segue uma via distinta daquela do ruído diário que absorve as grandes cidades. “Cultiva os vazios” [2] como afirmou Paulo Sergio Duarte, e exibe um método em que a ausência e a delicadeza são fios condutores de sua presença no espaço. Esta ambiguidade pode ser resolvida dessa maneira: o ar atravessa os sólidos, aquilo que dá consistência ao território construído pelo artista e, mais do que isso, se torna expressivo. Como os intervalos de uma partitura, ele constrói silêncios, dita ritmos, auxilia na compreensão da vibração. O vazio constrói lugares, age sobre a estrutura dos sólidos e produz um leve timbre sobre aquelas superfícies. Sua obra também é musical. Reduzida ao necessário para que possamos perceber semitons ou o mais discreto e preciso som, a sua obra, e em particular nesse caso Lá dentro (2010), rege ou conduz os nossos ouvidos para um lugar distante daquele em que o ruído do mundo parece habitar. Sua recusa em permanecer nesse lugar do estrondo e sugerir, da forma mais delicada possível, que o silêncio “vibra” e possui qualidades sonoras é uma das suas mais contundentes colaborações, pois o seu encantamento é justamente nos afastar das certezas, fazer com que duvidemos do real e por conseguinte imaginemos estar a uma distância segura do caos ou desse ruído do mundo.
A reunião de diapasões em Empty Voices (2011), de Otávio Schipper, não nos deixa esquecer que este território da exposição está a vibrar a todo instante. Regidos pelos trabalhos de Guagliardi, Empty Voices e Lá dentro compõem uma sonata emudecida e mais do que isso o silêncio se torna visível, passa a pertencer a um estado material também. A eminência do som que é percebido fortemente nesses trabalhos se faz como obra: estamos aguardando, na expectativa, contrária a todos os sinais, de que algo novo se produza, mas o que está diante de nossos olhos, no sentido clássico, são esculturas. É nesse momento que o silêncio se torna denso, tátil e se lança a uma percepção, ou inteligência, puramente óptica. E isso não é pouco pois dar materialidade e consistência poética ao imaterial é tarefa das mais árduas. A obra de Schipper, em especial, assim como a de Guagliardi, pertence ao ar, porque é nesse lugar que ela constrói uma superfície vibrátil, virtual e potente. As obras da exposição revelam uma potência sem igual: um inesperado sussurro que não para de vibrar em suas estruturas.
[1] Tomo emprestado de uma expressão utilizada por Adolfo Montejo Navas ao qualificar a obra Rio Máquina de Artur Lescher como um dispositivo sonoro. In: NAVAS, Adolfo Montejo. A música calada de Artur Lescher. Rio de Janeiro: Anita Schwartz, 2009. Acessado em 28 de setembro de 2015: http://www.anitaschwartz.com.br/evento/artur-lescher.
[2] DUARTE, Paulo Sergio. Waltercio Caldas. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 76.