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julho 27, 2015
Corpo-limiar por Mario Gioia
Corpo-limiar
MARIO GIOIA
É das obras mais instigantes presentes em La Nature d’Or. Um gesto gráfico que se desloca à esquerda de um vértice algo nave, algo edifício, rasgando o céu, em preto e branco, pontuado por nuvens extremamente plásticas. A caneta hidrográfica vai formar um volume por cima desse firmamento, meio informe. Na fotogravura feita a posteriori, o tom cinza predominará, mas na matriz-publicação que deu origem ao trabalho, o papel colado, marcado com a intervenção-gesto junto de outros acidentes, gera uma dimensão processual que termina por se estabelecer como um dos eixos potentes na nova individual de Antonio Bokel no Rio de Janeiro.
A robusta obra arquitetônica de Kenzo Tange (1913-2005), que tanto rendeu delírios maravilhosos e utópicos influenciando o agrupamento dos metabolistas como foi elogiada por trazer a tradição construtiva do país oriental a uma modernidade de primeira hora, parece despedaçar-se, desmanchar-se e buscar uma reconstituição a partir da subjetividade hiperfragmentada do autor, que cotidianamente no seu fazer de ateliê se reinventa por meio de linguagens, investigações, abordagens, materiais. O Ginásio Nacional Yoyogi, então, se encontra com o ‘minhocão’ do Rio Comprido.
Como habitante de uma cidade ao mesmo tempo cindida e compartilhada, o artista carioca deixou faz muito um lado mais conhecido de sua produção, aquele em que grafismos e outros procedimentos o aproximavam mais da linguagem da arte da rua. Não à toa, em uma de suas mais irônicas obras, o centro da fotografia registrava o escrito numa parede qualquer: Eu não faço grafite.
De toda forma, a vivência dentro desse lócus complexo vai provocar experiências e desdobramentos de incertas determinações, mas que, ao final, forjam uma poética crispada e não linear. “A experiência urbana é primeiramente corporal. […] O corpo resiste enquanto corpo, ele não se pode furtar a uma relação com o real, com um mundo: ele não pode viver em um real que se parece com ‘qualquer coisa’, em um lugar que é ‘qualquer lugar’, um ‘lugar qualquer’. Não se habita um lugar qualquer, mas um mundo onde, de imediato, dentro e fora, privado e público, interior e exterior estão em ressonância. É preciso ‘ter lugar para existir’ […]” [1], escreve Olivier Mongin.
Em La Nature d’Or, assim, Bokel persiste na lida diária de variadas experimentações. Há, por exemplo, um vídeo, em que os anteriores escritos de sua produção serão transmutados para perguntas, sempre com ironia, sobre a natureza do ofício artístico. É como se o artista extraísse de garatujas, chispas semânticas e outros signos urbanos certa energia, frescor e irreverência, mas retrabalhasse isso por um tempo mais dilatado e devolvesse tal carga por meio outro _ no caso, o audiovisual, hoje onipresente e acessível a todos. A imagem de uma natureza encorpada, inicialmente apreendida como impassível mas na verdade um sítio de contínua transmutação, provoca uma ruidosa recepção a ser apresentada juntamente com as questões trazidas, em forma de legenda, pelo pensamento do autor.
E numa era de circulação maximizada de quase tudo que pudermos imaginar, o artista elege novos vetores na produção pictórica _ esta nunca pura, em constante elos com o desenho, o tridimensional, a colagem, a gravura. Um deles é a superfície da madeira naval, a mais sóbria e ‘isenta’ possível. Outro é o dourado, que pontuará diversas peças em La Nature d’Or, e se espalhará de modos mais detidos ou mais desregrados por todo o recorte.
Em muitos dos dípticos, trípticos e conjuntos, módulos de conteúdos aparentemente assimétricos se ladearão, ganharão pares e associações numerosas. Campos de cor, chassis ‘alisados’, rastros de spray e linhas que emulam os antigos desenhos técnicos criam, assim, novas configurações visuais-conceituais de borradas especificações. Tais quais as fantasmagorias brilhantes que, enigmaticamente, parecem ter se instalado nos priscos retratos de astros hollywoodianos. O brilho (ou a ilusão de) pode se relacionar com outra série, desta vez produzida por Bokel a partir do Instagram. Lumes postiços que, catalisados pela prática multifacetada do artista, têm muito a dizer sobre a nossa essência, mesmo que ela esteja sobreposta, esgarçada, dividida.
NOTAS
[1] MONGIN, Olivier. A Condição Urbana. São Paulo, Estação Liberdade, 2009, p. 242