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março 6, 2015
O rapto por Paula Alzugaray
O rapto
PAULA ALZUGARAY
Nas vistas e panoramas da iconografia brasileira do século 19, o esplendor da natureza retratada poderia dispensar a presença humana – que ora aparece num canto do quadro, tímida, minimizada, quase anulada pela paisagem, ora cede à tentação de domesticá-la, assumindo uma postura desafiadora.
Na “Floresta Virgem”, litografia de Araújo Porto-Alegre de 1853, dois homens entram na mata fechada. Um vai armado, o outro carrega uma pasta ou caderno de notas debaixo do braço. Ambos são, provavelmente, a mesma pessoa: o intelectual oitocentista que penetra na paisagem nativa com vontade dominadora e certa avidez por torná-la exótica ou pitoresca.
Katia Maciel tem o mesmo ímpeto de devassar a espessura da floresta. Mas, diferentemente de seus antecessores expedicionários e artistas viajantes, não contempla nem ataca suas maravilhas. É capturada pela paisagem.
A figura que pende, laçada a um galho de árvore, na clareira de uma floresta – “Vulto” – é o eixo central de “Suspense”, o projeto de cinema expandido que a artista começou em 2013. Esse “Vulto” confere um eixo rítmico ao entrecortado discurso cinematográfico em processo de Katia Maciel.
Na primeira exposição do projeto apresentava-se o enredo: mulher perdida no paraíso (reduto mais longínquo da floresta?) envia fotografias como pistas para a sua impossível localização. Agora, no segundo capítulo do projeto, já não há fotografias, portanto, as pistas estão rarefeitas. A presença humana, imperativa na primeira parte, praticamente desaparece e a natureza se faz onipresente. Dentro das Cavalariças, cada uma das quatro obras expostas espelha a realidade verde circundante.
Expedição, rapto ou extravio? A dúvida sobre o quê, exatamente, teria atraído ou levado essa mulher de identidade dissimulada ao coração da floresta permanece.
Mas seu destino e sua condição – atada a uma árvore, em movimento pendular – nos colocam no rastro dos habitantes ancestrais dessas matas ao fundo da Lagoa. Onde hoje está o Parque Lage, na pré-história do Rio de Janeiro, viveram os temíveis índios carajás, que tinham aversão ao olhar humano e o poder de se transformarem em onças. O mito conta que não havia selva mais escura que aquela onde viviam os carajás. Como medusas, devoravam quem quer que os encarasse. Era fatal enfrentá-los de olhos abertos [1].
Antes de embarcar em expedição amazônica, a fim de realizar seu lendário filme, unindo pesquisa etnográfica e drama ficcional sobre a menina branca sequestrada e endeusada por índios, Flávio de Carvalho manteve contato com os índios carajás do Brasil Central – em 1952, quando integrou as filmagens de “O Grande Desconhecido”, de Mário Civelli. Mas nada indica que sejam os mesmos carajás implicados no rapto de Katia Maciel (escolherei tomar o caso como rapto, aprofundando a relação entre “Suspense” e “A Deusa Branca”, longa-metragem não finalizado de Flávio de Carvalho, e dada toda a carga mítica e simbólica implícita nesse tipo de episódio).
Em correspondência secreta com o pensamento mágico dos antigos povos das matas do Rio, “Suspense” projeta-se nas paredes das Cavalariças como um mapa inviável do paraíso perdido. As pistas, agora latentes, parecem querer inscrever-se no travelling infinito da “Trilha”, vídeo que ocupa a integridade de uma das paredes do edifício central das Cavalariças.
Além da ilusão de entrever sinais em cascas de árvores, há também as armadilhas. A mais perigosa talvez seja o “Verso”, dispositivo tecnológico antropofágico, que devora o visitante tão logo este penetra o edifício, fazendo dele o protagonista do ritual que se desenha ali.
Na sala contígua, “Uma Árvore” (que respira como um animal, ou que parece ter devorado um, a fim de assimilar sua capacidade de expandir e contrair pulmões), trabalho de 2009, incorporado ao “Suspense”, não deixa dúvidas sobre o partido da artista em construir seu discurso a partir dos princípios de ordenação do mundo que apreendeu da experiência da mata.
Paula Alzugaray
Janeiro de 2015
[1] Mussa, Alberto. A Primeira História do Mundo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014. p. 98-100