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julho 20, 2014
Como dar gravidade ao sabor maduro de uma fruta vermelha? por Paulo Miyada
Como dar gravidade ao sabor maduro de uma fruta vermelha?
PAULO MIYADA
Primeiro, existem as histórias que começam muito antes da história contada pelo artista. De fora para dentro, lembramos que o Líbano que Gui Mohallem visita não é só o país donde emigrou sua família. A complexidade étnico-religiosa da região é por si só uma demonstração de que toda minoria é maioria para outro grupo menor, o que alavanca um jogo de separações e polarizações que redefine o desenho da paisagem, além da vida de cidades e famílias inteiras. É possível ser maioria em uma região, mas ser minoria entre os regentes do país, assim como ser minoria em uma cidade, mas ter maior poderio econômico e, portanto, maior soberania sobre a própria vida. É possível, e aí reside a raiz do problema, ter certeza de que, entre os tantos sistemas de crença, o seu é o mais puro, o mais próximo de uma verdade passada ou atemporal. Hoje mesmo, se buscarmos por notícias do Líbano em alguns dos principais jornais do mundo, encontraremos notícias sobre o nacionalismo maronita, sobre os refugiados da guerra da Síria – ainda em curso e com potencial para escoar para o Líbano a qualquer momento – e o sintomático impasse do parlamento libanês em definir um presidente consensual entre os partidos cuja representação segue atrelada às variadas etnias religiosas.
Depois, a maneira como estas histórias atravessam a história da família do artista e suas próprias motivações em visitar o país. Da grande fome durante a Primeira Guerra Mundial até a longa guerra civil iniciada em 1975, passando pela reestruturação conflituosa que se seguiu à Segunda Grande Guerra – toda a genealogia mais ou menos próxima da família de Mohallem é marcada por eventos que impulsionaram emigrações, boa parte para o Brasil. A viagem, nesse caso, combinava esperanças de vida nova e certa sensação de morte frente ao passado, ao lugar de origem e aos amigos e familiares que ficavam para trás. Para o convívio familiar do artista, isso implicou na certeza de uma falta: a parte da memória que não lhe pertencia e nem poderia pertencer; as águas lodosas de um fosso imaginário. Sua viagem ao Líbano era, em princípio, uma maneira de responder a essa falta, compensá-la com a investigação das histórias eclipsadas de seu pai, mãe, tios e primos.
As histórias anteriores ao trabalho de Mohallem estiveram, então, presentes na fatura de sua própria história, como carimbos que assinalavam tudo que conheceu em sua viagem com os signos do abandono e da saudade (o que encontrava havia sido deixado para trás), da violência e da morte (muitas das pessoas envolvidas haviam fugido de conflitos ou viviam sob sua ameaça contínua) e do perigo iminente (por vezes as conversas sobre sua estadia acabavam mencionando o risco de ataques, bombardeios e sequestros). No nível do raciocínio consciente, pelo menos, viajar ao Líbano, de Beirute ao seu interior e serras, seria um processo de exposição à dor, ao medo e à falta. No entanto – e aqui começa efetivamente a história que os trabalhos de Mohallem nos contam –, as conversas, paisagens e encontros teimaram sempre em extravasar essas fronteiras. Mesmo que involuntariamente, a presença curiosa do artista provocava seus familiares a religarem memórias a pessoas há muitos anos não vistas, por vezes extravasando em emoções. Junto com elas, vinham os traços de uma hospitalidade antiga e diferente, com os sabores das frutas da estação, as cores e
alturas das montanhas, os hábitos singelos como os cuidados com a horta – armadilhas
de encantamento que cooptavam aos poucos esse visitante para uma camada diferente daquela dos conflitos iminentes.
Daí o que as fotografias e stills coloridos por Mohallem nos oferecem é esse limiar entre, por um lado, os indícios de diferença e conflito presentes na paisagem e nos espaços retratados e, por outro, as confissões visuais de um envolvimento afetivo em curso. Na mão avermelhada, oscilam ambas as leituras, quer enxerguemos na mancha a lembrança do sabor de fruta madura ou a reminiscência das tantas mãos manchadas de sangue que rondam a memória do Líbano. Já com os vídeos, as peças de parafina rubra, o depoimento da tia e o poema declamado por seu pai, emergem alegorias da tensão mais intrínseca à história dentro de todas essas histórias: aquela entre Gui Mohallem e uma origem que deveria pertencer-lhe e não obstante lhe era tão estranha, blindada pelo silêncio de seu pai. Viajando, o artista começou a se apropriar de sua herança escondida e, assim, conseguiu trazer aos olhos do pai certo reconhecimento da parte do filho que não enxergava, da parte de si que havia enterrado.