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abril 16, 2014
Fisálias - Paulo Paes por Luiz Camillo Osorio
Fisálias - Paulo Paes
LUIZ CAMILO OSÓRIO
Em julho de 2005 fiz com Paulo Paes uma exposição no festival de inverno do Sesc em Friburgo. Discutindo e escolhendo com ele os infláveis a serem expostos, insistia que os recortes de balões, utilizados em seus workshops para ilustrar o caminho que o levou aos infláveis, deveriam ser mostrados. Não seriam “obras”, mas revelariam etapas significativas do processo e articulações fundamentais no seu caminho criativo. Para se entender a singularidade do percurso artístico de Paulo Paes é importante deslocarmos e ampliarmos os parâmetros de identificação do que seja a obra. A relação entre cultura popular, artesania, produção de utensílios e criação artística são uma coisa só em sua poética e, por isso, revelar estes cruzamentos com o balonismo parecia-me importante.
Naquele momento, independentemente da exposição, ele me mostrou algo que começara há pouco tempo, denominado Fisálias. Estavam sendo produzidas gradualmente em seu ateliê. Além das peças em si, havia desdobramentos novos bastante originais. Estas Fisálias eram feitas de resíduos industriais, mais especificamente de garrafas Pet, amarradas através de uma costura cuidadosa e cheia de detalhes. Depois de prontas são lançadas ao mar. Os desdobramentos após o lançamento poderiam ser vistos no site, criado para elas e reunindo imagens in loco e relatórios minuciosos dos acontecimentos marinhos a elas acoplados. Dos balões para as Fisálias temos um caminho singular de movimentação da obra. Os infláveis estão para os balões assim como as fisálias estão para as redes e barcos de pesca. Nos dois casos há uma relação produtiva entre artesania e experimentação.
A Fisália é um produto artificial que se transforma em organismo biológico. Elas podem ser pensadas como redes, em que micro-organismos se agarram e constituem colônias, ou seja, pólos de irradiação de vida marinha. Rede tanto no sentido de uma malha que captura algo no mar, feita de nós, laços e cadeias articuladas, como também no sentido de ser um canal de agregação e disseminação de potências criativas. É também vislumbrada a possibilidade destas Fisálias se transformarem em ilhas-embarcações capazes de flutuarem servindo como uma alternativa de sobrevivência. A passagem de uma rede para um barco/casa é uma questão de escala e de projeto. Centenas de garrafas Pet desfiadas, enlaçadas e enredadas em uma teia complexa que se lança ao mar para agregar vida. Transformadas em escala, multiplicada exponencialmente sua base de sustentação, aventa-se a hipótese de uma cabine de sobrevivência a ser experimentada no futuro. Esta possibilidade de uma rede que sirva como plataforma móvel e sustentável no mar é parte da potência visionária do projeto.
As redes atraem vida e se deslocam como abrigo de organismos marinhos. É uma célula de resistência que se apropria de detritos industriais e cria agentes de agregação e multiplicação de formas de vida. O experimento que se lança ao mar transforma-se em possíveis corais artificiais, em cnidários e esponjas marinhas feitas de resíduo poluente. Há uma poesia construtivo-visionária de envergadura ainda pouco palpável.
Segundo o próprio artista no site criado para relatar o processo construtivo das Fisálias, a idéia é “produzir uma experiência plástica resultante do cruzamento entre processos biológicos aleatórios e estruturas planejadas para lhes dar suporte físico no mar”. Estas estruturas planejadas, feitas com as garrafas Pet, são de cuidadosa e meticulosa elaboração, partindo de uma experiência anterior com redes de pesca, artesania aprendida no convívio com o mar, além de projetos de construção de pequenas embarcações e da familiaridade com a produção de esculturas e infláveis. Mais uma vez, o trânsito da artesania para a construção artística se dá sem sobressalto, tendo o artista controle manual de todo o processo criativo e acrescentando-lhe uma visão experimental que nasce do convívio inteligente com os materiais.
Afixadas à parede e espalhando-se pelo chão do ateliê, as Fisálias revelam seu processo criativo. As garrafas são agrupadas e formam cachos que se prendem por cabos e anéis feitos com o corte preciso do próprio material, revelando a artesania aprendida dos velhos pescadores. Nenhum material é acrescentado além das garrafas plásticas. Os cabos são feitos com a própria garrafa “descascada” como se fossem uma laranja e amarradas em cabos maleáveis capazes de suportar as intempéries do alto-mar. Na parede, elas avançam pelo espaço como se fossem plantas trepadeiras que crescem aleatoriamente em busca de alguma forma temporária. A constatação da força plástica não confere a estas peças autonomia formal, no sentido de terem uma presença poética independentemente do seu lançamento ao mar. Talvez, o ponto não seja a impossibilidade desta autonomia, mas a insuficiência do ponto de vista do seu alcance poético uma vez agregado o valor das várias camadas de significado e vida que vão se acoplando nas muitas etapas do processo. As relações estabelecidas nos vários momentos de produção – da coleta, da fatura, do lançamento, do acompanhamento (com seus relatórios e discussões) e os usos reais e simbólicos desencadeados a partir de novos focos de interesse que se agrupam constantemente ao projeto – surgem das interações que transformam as maneiras de olhar, de fazer e de ser das Fisálias.
É notável a capacidade das Fisálias em constituir novas adesões a partir das suas particularidades de acumular formas de vida. Há desde interesses de biólogos, passando por pescadores e por comunidades ribeirinhas em busca de novos instrumentos de produção e de afirmação de uma identidade comunitária. Neste sentido, vemos nas Fisálias aquilo que Foucault chamou de heterotopias, ou seja, lugares reais e que constituem formas de vida heterogêneas, desviantes e em tensão com os já existentes. Assim, elas criariam espaços de conflito e convivência.
A coleta das garrafas já estabelece o primeiro processo de troca e a participação efetiva de aliados poéticos. Os lixeiros da Urca - bairro carioca onde mora o artista - interados minimamente do projeto separam as garrafas recolhidas e as vendem diretamente ao artista. Sabendo das condições necessárias para servirem ao manuseio, já fazem a primeira separação de garrafas. Daí até o lançamento, o trabalho é de ateliê. Prontas as Fisálias, começa o desafio das escolhas de local e comunidade para a colocação das peças, levando em consideração as características ecológicas, sociológicas e políticas que seriam agregadas ao projeto. Na verdade, são etapas complementares, de relevância equivalente.
A decisão de realizar o trabalho com as Fisálias em Recife foi tomada em um workshop seu na cidade e teve acolhida produtiva dos diversos segmentos relevantes para o projeto. O contato com a comunidade da “Ilha de Deus” foi sendo costurado e agregou uma vitalidade participativa incomum em projetos artísticos. A comunidade que vive do extrativismo no mangue e da criação de camarões, tem uma longa história de resistência à exclusão social. A adesão às Fisálias foi crescendo em relação direta às trocas de experiência e de horizontes produtivos que se abriam. Os pescadores interessaram-se em especial pela possibilidade de elas virem a criar corais artificiais em alto-mar que os ajudassem como pontos pesqueiros. Além disso, a comunidade da Ilha de Deus, constantemente reprimida pelo crescimento desordenado da cidade do Recife, agregou-se em torno do projeto vendo se constituir ali uma forma de visibilidade capaz de fortalecer as suas demandas políticas, sociais e econômicas.
A inserção das Fisálias e a disseminação de atividades previstas no projeto, daria visibilidade às formas de vida e de produção nascidas dentro da comunidade e contribuiria para mudar a imagem de uma ocupação destrutiva do ecossistema do mangue. Por mais insalubre que seja a vida nas palafitas, há entre as pessoas que ali vivem uma identidade orgânica com o ambiente – tanto do ponto de vista físico como simbólico - e o objetivo é melhorar a infra-estrutura e as condições de educação e produção da comunidade. O “coeficiente artístico” das Fisálias não se limita a sua atuação social e política, mas são elementos relevantes que se agregam ao seu modo de ser estético – em que as condições plásticas, a fatura e a presença silenciosa no site ou no museu (não site) são determinantes.
Para o público de arte, a visitação ao mangue tem também um duplo aspecto propiciado pelo trabalho. Estar diante de um mundo com o qual ele não convive e perceber as redes que se formaram em torno das Fisálias. Abriram-se canais de comunicação novos entre as pessoas e os próprios moradores ganharam novo contato com o seu ambiente, além de verem crescer as oportunidades de trabalho. Esta troca entre pessoas e interesses, normalmente conflitivos, entre setores apartados da sociedade, é parte da potência poética do trabalho.
Não se trata de resolver os conflitos ou de se estetizar a pobreza, mas de torná-los visível e de se criar formas alternativas de convivência e de produção. O trabalho artístico viabiliza novas formas de sociabilidade e de produtividade, revelando diferenças sociais e estabelecendo laços entre subjetividades constituídas por temporalidade e espacialidade discrepantes.
A poesia destas ilhas flutuantes de resíduo industrial equivale ao apontado por Foucault, na sua discussão das heterotopias, ao do navio, considerado “um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só.....o navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barco, esgotam-se os sonhos e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias.” Entre redes e barcos, as Fisálias são o lugar de encontro das diferenças e de produção de formas de vida heterogêneas.
Luiz Camillo Osorio