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dezembro 20, 2007
A cidade interior nômade de Jarbas Lopes, por Juliana Moreira da Silva
Abre em Nova York exposição individual do artista carioca Jarbas Lopes; Jarbalopolis fica em cartaz na galeria Daniel Reich até 5 de janeiro de 2008
A cidade interior nômade de Jarbas Lopes
JULIANA MOREIRA DA SILVA
EM NOVA YORK
Um jogo entre a sonoridade do nome do artista e o termo grego para cidade, polis, Jarbalopolis refere-se a idéia de uma cidade do interior nômade, pequena e interiorana mas também do interior de um viajante, criada a partir do desejo de conciliar alma, tecnologia humana e mundo pos industrializado. A exposição sinaliza uma prática artística dedicada a esfera pública, coletiva e catalítica de mudanças sociais, e inclui peças de diferentes períodos da carreira de Jarbas que juntas circunscrevem a essência dessa cidade. Sonhos de certa Cicloviaérea em desenhos com esferográficas, uma escultura de sucatas de antena e um enorme casulo de argila, uma veste de bucha, uma bandeira preta que reverencia igualmente a morte e a energia cósmica negra, funcionam como alegorias do artista para reconstrução do espaço urbano.
Logo a porta da pequena galeria, o visitante é confrontado com a escultura de argila Casulo que, como se alguém tivesse previamente emergido de seu interior, parece o empasto de uma múmia, oco e fendido a frente, da altura e molde do corpo humano. De aspecto pouco polido, quase grotesco, assim como os casulos geralmente, a escultura paralisa o visitante, rouba-o de seu estado mental anterior e o apresenta ao paradoxo do que primeiro repulsa e em seguida revela-se o mais bonito e desejado, o que guarda no interior o aconchego. Muito do trabalho de Jarbas Lopes revolve sobre uma tecnologia ambiental limpa. Casulo foi feita nas premissas da galeria, e a argila assim utilizada, sem ser queimada e aplicada diretamente sobre o chão, faz elegia dos materiais simples e naturais, e das coisas que não se prestam ao consumo, que são efêmeras ou simplesmente não se convertem ao uso, e se desmantelam se extraídas de seu habitat de origem. Construir um casulo utilizando barro acessa a metáfora da criação do homem e, no contexto de Jarbalopolis, marca o estágio para transformação e metamorfose.
A peça Bucha, feita de longas buchas vegetais costuradas formando um saco para ser vestido, faz parte do ideário do artista de ativar novas formas de integração entre indivíduos. A pessoa que põe a veste consegue tanto ver tudo a sua volta, como também confortavelmente se despir de sua roupa; e, assim nua, com apenas os pés a vista, fica camuflada em uma bucha ambulante. Sentir-se nu em público e, pela reação inesperada das pessoas, descobrir-se sob a nova identidade de bucha é bastante inquietante. Provoca o impulso de se comunicar com o mundo de forma mais livre, desprovida de bagagem, mas também acorda certa confusa nostalgia pela condição pré-metamorfose, pela tão desmerecida igualdade com os outros. A peça deriva da sensibilidade hedonista de acertar que o que faz bem ao corpo também faz bem a mente. Infelizmente, poucos na abertura da exposição se aventuraram a vestir a Bucha e experimentar a sensação de banho calmante na mata que ela emana. A peça permanece por mais um mês no chão da vitrine da galeria, disponível assim aos passantes, como um enigmático antitodo ao frio mordaz que assola as ruas e petrifica os cidadãos nova yorquinos.
Guru, Guru Black Power é uma bandeira de saco de lixo preto com as palavras guru, guru black power desenhadas com tachinhas de metal sobre o plástico, e foi originalmente usada para performance de Jarbas em parceria com o amigo e artista Cabelo. Guru Guru condensa vários sentidos e funções, e um tanto de humor, preferindo o terreno flexível da imaginação. Deitados em pleno caos urbano do centro carioca e recobertos pela bandeira preta, Jarbas e Cabelo simulavam dois mortos falantes, imersos em discussões mundanas, mimese das conversas banais e da ansiedade das pessoas em face a morte. Completada pelo invariável circulo de curiosos, a performance incorporava a comunidade urbana, reavivando tema do foclório de todos: a morte, entidade absurda, coisa infalível, ordinária também na selva das metrópoles. Em Jarbalopolis, a bandeira faz alusão a energia cósmica negra. Jarbas com freqüência pondera sobre a realidade virtual, o intuitivamente tangível, o improvável possível, o desafio que aflige o cientista. Uma prerrogativa do slogan da bandeira é a ausência de sentido, não significar nada. Guru normalmente quer dizer guia, e a bandeira assim propaganda o 'black power', o poder do negro, de tudo que é escuro. Mas guru também é apelido de louco, de gente que não faz nenhum sentido, fala nada com nada. O nada por sua vez é o infinito vazio, o buraco negro, a energia cósmica negra. E no fim, ao reverenciar essa força negra que paira no macrocosmo do céu, como talvez no interior de cada minúscula partícula, a bandeira pode ser aqui igualmente vista como sobra de um ritual em memória a musa a senhora morte, ou mesmo como a cortina que guarda um virtual terreiro.
Antes de vir a Nova York para a montagem de sua exposição, Jarbas esteve em Phoenix, no Arizona, convidado pelo ASU Museum of Art para apresentar o projeto Cicloviaérea. A bicicleta revolve o imaginário do artista já há vários anos. Consagrada por ele em projetos anteriores, como o que apresentou na Bienal de Havana em 2003, a bicicleta é emblema da tecnologia do equilíbrio (o equilíbrio do ciclista, entre tecnologia do corpo e a do movimento, de meio de transporte e forma de energia, do ser no espaço aberto e seu motor interno ativo.) Alguns dos desenhos agora expostos, feitos em 2005, formalizam possibilidades para sua proposta de Cicloviaérea: uma ciclovia aérea, construída acima da cidade através de um circuito elevado de pontes que alterna graus de declives possibilitando um percurso inteligente, que embargue toda a comunidade. A proposta é certamente mais visionária que anacrônica, e decididamente pertinente. Em Nova York, vem a coincidir com a revitalização urbana do antigo elevado de trem que corta parte importante do leste da cidade e foi relegado as ruínas nas últimas tantas décadas. Alem disso, com as pontes Williamsburg Brigde and Brooklyn Brigde em perfeita ordem, a bicicleta passa cada vez mais a ser usada pela nova geração de jovens vivendo fora de Manhattan que encontram no veículo uma forma mais econômica, rápida e estimulante de cruzar a cidade e o East River. Os desenhos de Jarbas, feitos dentro do limite plástico das quatro cores disponíveis em esferográficas, debatem-se sobre formas de tecnologia, são investigações lúdicas. Cabe melhor aos engenheiros pensar a construção, diz o artista. Em um dos desenhos, contra um fundo noturno, de azul escurecido com esparsos de preto, a ciclovia suspensa espelha a ondulação do mar abaixo.
Comunicação é tecnologia. Sua escultura Antena, construída recentemente para integrar a exposição Jarbalopolis, com sucata de antena de alumínio, serve como lembrete ao tópico que comunicação absolutamente não se restringe a aparelho eletrônico. Emissão e recepção de códigos ou ondas, já pela amplitude da variedade de ondas, transpassa os domínios de qualquer novidade tecnológica. Jarbas fala de coisas pouco cientificas, e todavia não menos estudadas, como empatia, simpatia, telepatia. Antena dispensa qualquer adereço mais complicado, forma um prosaico tripé que lembra o recesso de níveis do prédio do Empire State e, como o desenho que o falecido Leonilson dedicou ao marco histórico, guarda na sincera fragilidade seu maior recurso. "Aqui no meio da galeria, ou para onde for, que ela atraia bons fluidos" resume Jarbas. Simplicidade não é simples, nem fácil; coisa escassa em Nova York.