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dezembro 11, 2006
Bienal ETC. - Mais do mesmo, por Carla Zaccagnini
Vista da ocupação Matemática Rápida, de Renata Lucas,
intervenção urbana em uma rua da Barra Funda, São Paulo
Bienal ETC.
Mais do mesmo
CARLA ZACCAGNINI
Não é a primeira vez que um trabalho de Renata Lucas me faz imaginar sua aplicação generalizada. Por mais que as dimensões de suas construções temporárias ultrapassem, quase sempre e muito, os padrões da arte que encontramos em galerias e museus, elas parecem, ainda assim, pequenas. Como se fossem protótipos, exemplos, módulos iniciais que poderiam expandir-se e ocupar a cidade inteira, todas as ruas e calçadas, todos os caminhos e cantos do mundo. Como se cada projeto fosse uma proposta acompanhada de uma suposição: suponhamos que as paredes todas ganhem dobradiças, que as cestas de lixo se revoltem e engulam os carros, que as ruas sejam de madeira, que as calçadas carreguem calçadas no colo. Que mudanças nos hábitos dos homens seriam necessárias para acompanhar a generalização dessas possibilidades absurdas que a artista concretiza em maquetes 1:1?
É, talvez, o modo como esses trabalhos se inserem no tecido urbano ou no ambiente dos museus e galerias que nos permite imaginar como se espalham, se esparramam, se espraiam, tomando conta de tudo, aos poucos mas inevitavelmente, como num bom conto de ficção científica ou num sonho não tão bom. É a maneira como se camuflam, como se acomodam com facilidade, sobrepondo-se à realidade sem alarde, como se sempre tivessem estado ali ou pertencessem naturalmente ao espaço que parasitam. Mas é também a escala e o uso dos materiais, a necessidade que a artista tem de ver as idéias ganharem corpo de uma forma que a literatura (ou o texto crítico) não poderia realizar. Nenhuma descrição do trabalho ou da idéia que o origina se comporta como a matéria. Isso sempre é assim, já se sabe.
Mas aqui, entretanto, muitas vezes o que se pode imaginar é maior, mais limpo, mais bonito, mais intenso, do que a obra real. Há uma negociação entre a concepção primeira e as possibilidades concretas. É necessário um ajuste, uma acomodação. E encontrar a concretude do projeto é muitas vezes acompanhado de uma certa frustração, da constatação de que só assim a idéia se faz possível no mundo. E o mundo, meio a contra-gosto, se faz assim também visível, revela todos seus limites e suas leis, as físicas e as civis.
Matemática rápida nasceu de uma realidade encontrada e poderia se dizer que a primeira existência do trabalho foi esse achado: a estrutura do que viria a ser um condomínio residencial, ainda inabitado, margeando uma estrada semi-deserta, de noite. Não vi, mas imagino o que me contaram: o terreno plano e loteado, as ruas asfaltadas e o pavimento das calçadas, as áreas cimentadas para as casas, a rede de água e esgoto invisível mas presente em bueiros, a rede elétrica pronta e os postes de luz. Acesos no meio do nada.
O projeto inicial era, talvez, mais próximo à visão que o originou do que a construção que pode ser vista hoje na Barra Funda: um caminho calçado e iluminado criando um e vários percursos sobre uma área de vegetação nativa no Parque do Ibirapuera. A sobreposição de um território traçado, preparado para passos humanos, no verde mais puro e mais denso do maior parque da cidade.
Matemática rápida mudou de lugar. A calçada (que comporta um indivíduo de cada vez ou vários enfileirados) os postes e as árvores subiram em outra calçada, com seus postes e árvores. O trabalho repete, mesmo as fendas, as trincas, o cimento mal feito e os buracos precoces do pavimento que o acolhe - ou suporta. Os mesmos materiais foram usados pelos mesmos funcionários para criar a realidade duplicada, levemente descompassada, que é essa Matemática rápida. A iluminação noturna da rua é em dobro e as árvores novas, pequenas, esperam à sombra das grandes que já estavam lá. Os sacos de lixo e as pessoas cansadas se apóiam e espalham por todos os postes, os velhos e os novos. Rapidamente a cidade se adapta, os cachorros e gatos da cidade procriam, para subir em mais árvores e molhar mais postes.
Carla Zaccagnini (Buenos Aires, 1973) é mestre em poéticas visuais pela ECA-USP, integra o corpo editorial da revista Número e é artista representada pela Galeria Vermelho, em São Paulo.