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novembro 23, 2005
Males de arquivo I, por Juliana Monachesi
"Little White House" (detalhe), de Alice Miceli, exposto no CCSP
Males de arquivo I
JULIANA MONACHESI
Adorno sentenciou, como se sabe, a impossibilidade de se fazer poesia depois de Auschwitz. O prêmio Nobel de literatura Imre Kertész (que foi prisioneiro naquele campo de extermínio) responderia, anos mais tarde, que depois de Auschwitz só resta a poesia (como forma de resistência). A polêmica é irresolúvel. E citar os dois autores a este respeito já beira a redundância. Difícil é, sem enveredar pelos clichês, começar um texto sobre trabalhos de arte que lidam com o tema do Holocausto.
É um assunto difícil de abordar. E, no entanto, as pessoas se debruçam sobre ele incansavelmente. E vão continuar, por motivos óbvios que não preciso enumerar. No meu caso, são duas as razões que me arrastam a empilhar uns poucos arrazoados a mais na infinidade de "contribuições" ao tema da memória em geral e do Holocausto em particular: uma é a inquietação acerca da histeria da memória que advém das possibilidades de se criar, manter e utilizar bancos de dados de todo tipo em tempos de cultura digital (esta inquietação vai ser objeto de outro artigo aqui no arteemcirculação, a parte II ou III do presente texto, caso eu tenha fôlego), outra é o arrebatamento de que fui vítima recentemente ao me deparar com três grandes obras de arte que, de uma forma ou de outra, tratam do Holocausto.
São elas: Regulating the Watch (2005), vídeo do artista argentino Marcello Mercado apresentado na 15ª edição do Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, Little White House (2005), vídeo da artista Alice Miceli que está sendo exibido atualmente no Programa Anual de Exposições do Centro Cultural São Paulo, e Everything Is Iluminated (2005), filme que estreou na 29ª Mostra Internacional de São Paulo, uma adaptação para o cinema do primeiro livro do promissor Jonathan Safran Foer (devo confessar que o arrebatamento maior ocorreu quando li o livro, mas nesta resenha, para efeito de comparação, opto pela versão audiovisual).
Mercado, cuja produção é essencialmente política -como se pôde ver em sua participação na mostra emoção art.ficial 2.0 - divergências tecnológicas, em 2004 no Itaú Cultural, com o trabalho Das Kapital (2000), em que manipulava cenas reais de cadáveres humanos para questionar o papel da imagem na sociedade contemporânea-, registrou uma visita ao complexo Auschwitz II-Birkenau empunhando um laptop com webcam e um celular com câmera, não apenas tornando aparente a todos ao seu redor a mediação que operava (o que, ao espectador, só se evidencia na parte final do vídeo), como lidando com instâncias de edição no momento mesmo da captação das imagens.
O resultado é impactante. Trata-se dos 30 minutos mais propositalmente lentos da videoarte dos últimos tempos e do recorte e enquadramento menos óbvios (considerando-se o objeto "retratado") e capazes de transmitir maior carga de impotência a quem está diante da tela. Ao menos foi o que pensei ao deixar a seção em que o filme foi exibido numa noite fria e chuvosa de setembro no Videobrasil.
Esta impressão me acompanhou até que eu vi Little White House de Alice Miceli. Trata-se dos 40 minutos mais propositalmente monótonos da videoarte dos últimos tempos [ninguém que eu encontrei no vernissage passou mais de três minutos dentro da sala] e do recorte e enquadramento mais originais para tratar do tema trágico mais batido do século. A artista também empreendeu uma visita a um campo de concentração nazista, Chelmno-nad-Nerem, localizado na Polônia. O vídeo não mostra o lugar. Retrata, ao contrário, um trajeto muito curto entre o campo de extermínio e o vilarejo mais próximo.
Apesar de curto, o percurso foi distendido ao máximo. Não há facilidade alguma para avistar, no finalzinho do vídeo, a prometida pequena casa branca que dá nome ao trabalho. São quatro ou cinco segmentos que compõem o filme: entre cada um deles há um corte e um avanço no trajeto que fica oculto. A cada corte, a trilha que principia quase inaudível vai se tornando mais clara. É uma cantiga polonesa que, ainda que perfeitamente audível ao final, oculta seu significado do público do CCSP [ou qualquer outro lugar em que o filme venha a ser mostrado fora da Polônia]. Todas estas "dificuldades" dão corpo ao tema da viagem impossível que o vídeo retrata, ou seja, a viagem de volta de um campo de extermínio para casa.
Pergunto, por e-mail, à artista quais foram os recursos de edição que ela utilizou, uma vez que, além de um slow-slow-slow motion, parece haver um tratamento de imagem que produz, entre outros efeitos, um misterioso "borrado". "É um slow-motion absurdo mesmo. As imagens foram captadas na velocidade de vídeo normal, ou seja, 30 frames por segundo. Quando uma imagem em movimento é posta em slow, é necessário que ela tenha mais frames por segundo do que a captação em velocidade normal. Quanto mais frames por segundo, mais devagar. Como a minha imagem de base foi captada a 30f/seg mesmo (velocidade padrão), o computador tem que 'gerar' frames 'inexistentes' entre os que foram captados, daí a impressão de borrado. Isto se acentua em momentos em que a câmera tremeu. O slow do Little White House tem como propósito aumentar a intensidade de cada instante atravessado, a intensidade do presente", escreve ela.
A irrupção do presente e a intensidade do real são tão devastadoramente fortes nos trabalhos de Marcello Mercado e Alice Miceli que cabe aqui o contraponto dado pela obra de Jonathan Safran Foer, que basicamente recoloca no lugar do real ao qual não tem acesso (e ao qual, no fim das contas, ninguém tem acesso) uma ficção. Se a poesia acabou ou se foi só o que pôde sobreviver, estes três artistas não resolvem a questão, mas fazem valer a pena continuar pensando a respeito.
juliana os trabalhos citados do marcelo mercado foram exibidos no prog me no rio de janeiro , sendo que um deles foi uma instalacao inedita ,com uma parte do trabalho sendo o video exibido no video brasil na integra,
erika
mais informacoes sobre o trabalho no site www.progme .org
Posted by: erika at novembro 28, 2005 6:21 PMEntre as afirmações de Adorno e Kertész sobre poesia após Auschwitz, ambas verdadeiras e cuja simultaneidade parece pôr à prova toda possibilidade de existência da arte,e o mal de arquivo como atrator como saída ( chegada?)que resolveria o paradoxo, há outro tema ( se é que se trata de uma tema, é mais um campo de forças, política, pois), o da representação, que assombra a arte e os pensamentos sobre a arte.
Este é o da representação. A coisa da representação( a coisa aqui tem a ver com coisa mesmo) impede sair pela tangente para alívio de quem mexe ( mexer mesmo) ou pensa ( mexer também) com arte.
Agora a coisa, a arte e o pensamento mudam de figura quando o problema escancarado do irrepresentável, não permite que se saia da representação ( é possível sair dela?) ou nela se permaneça ( haverá outra possibilidade? ).
O vídeo , se é que existe essa coisa chamada vídeo, ao mesmo tempo que representa automáticamente qualquer coisa, pode simular qualquer representação: o meio [médium] mais lábil E programado já inventado até hoje.
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Aí a coisa ( o pensamento )e a coisa ( imagem) oscilam entre bancos de imagem, bancos simbólicos e quaisquer bancos que se queira invocando a responsabilidade ( palavra pesada) dos artistas flutuando, naufragando, pairando, agindo, reagindo no meio disso tudo.
[ isso escrito aí é um esboço para ser continuado, reesboçado ]
mk
Auschwitz é um marco na história e um marco na pele de muitos que de lá saíram para encontrar do outro lado do Oceano uma sobrevida. Nao vi esses trabalhos mas teu texto ao descrevê-los me emocionou. Recentemente em viagem a Buenos Aires vi imagens de um fotografo argentino, Marcelo Brodsky, que trabalha a memória. De origem judia, e tocado pelo caso da AMIA (associação Israelita que foi bombardeada anos atrás na Argentina), ele fez um trabalho fotográfico com os "restos", os "cacos" da instituição. Mas ele trabalha com outros "cacos" de história também, como por exemplo todos aqueles que restaram da ditadura argentina que sumiu com seu irmão. A memória é resistência. Cabe a nós preservá-la não apenas como "memória" mas como "resistência sobretudo. Abs, Barbara
Posted by: Barbara at dezembro 15, 2005 2:54 PM