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outubro 24, 2005
Jogo, clandestinidade e gentileza em ( ), por Paula Alzugaray
Jogo, clandestinidade e gentileza em ( )
PAULA ALZUGARAY
Uma mão, empunhando um grampeador, realiza sua tarefa com frieza cirúrgica. Dispara grampos sobre a pele, para em seguida removê-los, um a um, desenhando com pontos de sangue seu caminho. Em outro momento, a mesma mão aplica agulhas de costura em órgão sexual. São três as vídeo-cirurgias de Mauro Madureira exibidas na mostra "Para bem entender o inferno". A mostra de vídeo integra o projeto ( ), que faz parte da exposição Vorazes, Grotescos e Malvados, que está em cartaz no Paço das Artes, até 29 de outubro. Na parede ao lado da projeção, a legenda se encarrega de explicar que ( ) é uma obra de Dora Longo Bahia, acompanhada por outros 21 artistas. Mas Mauro Madureira não consta dessa lista ou de qualquer ficha técnica da exposição. Conclui-se, então, que Mauro Madureira é um clandestino no Paço das Artes.
A presença de Madureira no Paço só não é de todo ilícita, porque ele foi selecionado pela artista Naiah Mendonça para participar da mostra que ela organizou dentro da programação de ( ). Mas, em Vorazes, Grotescos e Malvados - a exposição que ocupa "oficialmente" o Paço esse mês -, ele sem dúvida é um clandestino. Por isso mesmo, sua condição é patente dentro da curadoria de Christine Mello, que está em busca de ações artísticas que se desenvolvem em zonas de risco.
Segundo diz o texto curatorial, Christine Mello está atrás de posturas críticas e forças desestabilizadoras, "capazes de originar gestos de insubordinação e novos processos de subjetividade". A resposta de Dora para a inquietação da curadora veio na forma de outra curadoria, o projeto de colaboração ( ), que se propôs a apresentar 21 trabalhos de 21 artistas em 21 dias. A zona de risco que Dora escolheu para entrar é o território da autoria, da preservação e da efemeridade da obra de arte.
( ) é um jogo, com regras demarcadas: cada participante ocupa o espaço expositivo por um dia. Ele recebe a sala branca e vazia às 13h e tem até as 17h para montar o seu trabalho, que será apresentado ao público entre 17h e 19h. No dia seguinte, o artista tem até as 13hs para entregar o espaço em branco para o próximo da fila. Em um projeto que reduz a exposição do trabalho ao tempo de duração da vernissage, o que está em questão é a brevidade do ciclo de vida da obra de arte. "Tivemos oito meses de encontros e discussões sobre as práticas do jogo e da festa. Não coloquei o tema da mostra da Chris para eles. Apenas pedi que eles fizessem o trabalho deles, respeitando a idéia de que ele vai durar só duas horas", diz Dora, durante conversa, que tem um trecho transcrito aqui:
PA: Essa é uma mostra dividida em três tempos: montar, expor e desmontar. As três etapas têm a mesma importância para vocês?
Andrezza Valentin: No meu trabalho, montar é tão importante quanto mostrar. É só na montagem que eu vou saber exatamente o que o meu trabalho é. Esse trabalho (a videoinstalação intitulada "À margem do tempo"), não deu certo como eu tinha imaginado. Tive que mudar a configuração para chegar onde eu queria. Sempre acabo repensando meu trabalho na montagem. E acho importante as pessoas assistirem e até participar, porque tira essa coisa sagrada do trabalho pronto.
Naiah Mendonça: Mas tem gente que vêm à exposição e não olha porque vê que o trabalho está em montagem. Qualquer um pode ver, mas muita gente que não quer ver montagem. É o mito da coisa pronta.
Dora Bahia: A montagem é a mais importante das três etapas, por isso o tempo maior é destinado à montagem. O momento mais interessante da obra é ver como cada artista lida com seu próprio trabalho, como ele coloca isso no espaço. O tempo que ele está exposto é o tempo da celebração, tempo em que você aprende com o trabalho, o momento em que ele te responde. Você faz o vernissage, passa verniz, convida os seus amigos, brinca e depois acabou. A desmontagem tem que acontecer. Ninguém está usando o horário de desmontagem. Quando a noite acaba, o artista já coloca o trabalho no carro e vai embora.
PA: Nesse espaço híbrido, você reuniu artistas que são ou foram alunos teus: além de sala de vídeo, bar, exposição, esse espaço é também um lugar da educação?
Dora: A educação é um momento privilegiado de apontar caminhos possíveis. Desde que parei de dar aula na FAAP, sentia falta da troca aluno-professor. Todo esse período que a gente ficou na minha casa lendo, vendo filmes, discutindo, para mim foi o momento privilegiado do trabalho.
PA: Mas o espaço expositivo é um deslocamento da sala de aula?
Dora: É, mas não a sala de aula como ela é convencionalmente. Esse espaço que a gente criou, a gente não chama de aula, mas de reunião. A aula tem uma obrigação que incomoda. Na reunião, quem está é por que está afim.
Andrezza: Acho que é um esquema generoso, que propicia abrir o processo de trabalho à ajuda, à participação e à interferência do outro. Não tem essa coisa de demarcar. Os limites são muito tênues. Acho muito generoso esse processo de trocas de informação. Todo mundo adora testar os limites. O público também vê que a coisa está mais informal e vai testando até onde pode chegar e acaba participando do trabalho. O trabalho do Komatsu (a performance "Mato sem cachorro não tem dono", em que o artista urinou em dois canteiros de areia instalados nos cantos do espaço expositivo) foi assim e gerou participação coletiva. Tem trabalho que oferece essa liberdade para quem quiser participar.
PA: As questões levantadas pela curadoria de Vorazes, Grotescos e Malvados não pautaram o trabalho de vocês, mas vazaram de alguma maneira? A idéia de uma arte que opere como um desestabilizador de códigos vigentes está no trabalho de vocês?
Andrezza: Eu não me preocupo com isso no meu trabalho. Um olhar externo pode até localizar essas questões, mas estou mais preocupada com até onde eu consigo chegar com minha pesquisa, do que com códigos a subverter. Pesquiso diversas formas da fragmentação, mas não como subversão dos meios ou busca de um processo diferente de pensar a imagem. Minha pesquisa está mais ligada aos conceitos de morte, desaparecimento e fim.
Aline van Langendonck: Tanta coisa já foi subvertida. Acho meio complicado pensar que ainda exista muita coisa para subverter. Tanto eu não me preocupo com essa questão, que continuo desenhando em papel. O que é ser contemporâneo? O que é ser subversivo?
Andrezza: Se está dentro do museu já está assimilado. Não está subvertendo nada.
PA: Não há limites que ultrapassar?
Andrezza: Há vários limites. Mesmo com tudo o que já foi feito, as pessoas ainda não assimilaram um cara mijar na parede do museu. Ainda existem tabus em relação ao aspecto sagrado do museu. Então, ainda é possível se preocupar com essas barreiras e tentar quebrá-las. Quando você ultrapassa um, sempre vai ter outro limite depois. Mas acho complicado ficar se preocupando com os limites da arte, porque daí os trabalhos não conseguem dialogar com quem não lê sobre arte, com quem não tem hábito de visitar exposição. Estou mais preocupada com que as pessoas tenham uma experiência com meu trabalho.
PA: Qual o maior gesto de insubordinação do seu projeto, Dora?
Dora: Acho que os artistas, só de terem topado participar disso, já tiveram uma atitude super subversiva de lidar com o fim. Porque, muitas vezes ouvi: "Ah, vai desmontar? Mas tá tão bonito
" É isso, é aprender a não hipervalorizar o próprio trabalho. Porque você vai instalar, ficar duas horas e desmontar.
PA: Em ( ), há referência ou identificação com a festa Dada?
Dora: Não. Discutimos um texto do (Hans-Georg) Gadamer (A atualidade do belo - a arte como jogo, símbolo e festa) que eu adoro, um texto situacionista, um texto do Smithson. Acho muito legal as manifestações Dada, mas há uma visão em cima deles de coisa meio oba-oba. E o texto do Gadamer é o oposto: é um filósofo alemão falando sobre festa, de um jeito super erudito. Então, ele consegue justificar a farra. Tudo bem: festa é encher a cara, fumar e abraçar seus amigos e ele mostra porquê isso é legal. Ele traz a festa para o mundo erudito e mostra que a farra tem conceito.
Letícia Larín: Ele fala que ir ao museu não tem que ser uma coisa chata. Arte deve ser celebração.
Tudo bem. O jogo e a festa deram as diretrizes dos encontros de ( ). Além de uma vernissage por dia, o evento ainda teve sala de vídeo aos domingos, jam session aos sábados e boteco com cerveja a R$ 1, todo fim de tarde. Mas, mesmo que os participantes insistam no contrário, estão todas lá nos trabalhos as metáforas de desmontagem, procuradas por Chris Mello.
Há voracidade. Na maneira como os trabalhos devoram-se uns aos outros dia a dia. Na maneira como uma obra desaparece para dar lugar a outra e assim dar sequência ao projeto. Há o grotesco. Já que é grotesco mijar na parede do museu. André Komatsu fez xixi no chão? Limpa aí, seu porcalhão. Dia seguinte, a parede reluzente recebe grafitagem de Wagner Viana. Há malvadeza. No mínimo, nos Domingos Sangrentos, que passaram filmes perversos de Cindy Sherman e Andy Warhol.
Há ainda a clandestinidade a que nos referíamos de entrada. Afinal, Madureira não é o único artista infiltrado no projeto. Teve ainda Claudia Vaz e Jofer, que apresentou vídeos feitos a partir da apropriação de imagens da web. Claudia Vaz aparece no fanzine do grupo, na página "Marcelo Cidade: Paço o Ponto para Claudia Vaz". Podem ter tido muitos outros infiltrados não-identificados. Há tudo isso. Mas, talvez, a atitude mais insuspeita, insólita e desconcertante de ( ) seja a gentileza. A gentileza de receber o visitante com espetinho de camarão na entrada do museu (performance "Vamos consumir?", de Andre Drokan, na abertura), a gentileza de propiciar uma montagem/desmontagem aberta à participação, ou a gentileza de oferecer ao público 21 celebrações seguidas. O que está em jogo em ( ) é como fazer, desfazer e refazer a vida do espaço expositivo, sem necessariamente ser voraz, grotesco e malvado.