|
outubro 31, 2003
Ainda o corpo na arte
Trabalho de Ana Mendieta sobre a areia: ausência torna presente a idéia de corpo.
Ainda o corpo na arte
RUBENS PILEGGI SÁ
Voltar-se ao corpo é voltar-se às origens. Pois o corpo como representação devolve ao homem aquilo que lhe foi retirado, ou seja, o seu significado simbólico. Assim, ao mesmo tempo em que ele quer significar algo, ele é.
Esse texto, por exemplo, é corpo, matéria, tem densidade e especificidades próprias. Mas ele também se remete a uma questão que faz dele caminho para outros significados: no caso, aqui: falar sobre o corpo.
Arte corporal existe há milhares de anos. Ela é o itinerário da intervenção que o homem impõe à natureza. Por exemplo: há uma nação africana que escarifica o rosto dos membros de sua tribo, criando enormes cicatrizes, que dizem respeito aos caminhos criados na floresta.
Arte corporal, "body art" como é conhecida por nós, contemporâneos, pode ser uma manifestação que retoma tais práticas rituais, mas pode estar ligada também a um certo aspecto mórbido de se ver o mundo e a vida. Em nome da arte um cara corta o pênis, outro se deixa levar tiros, há quem modifique seu rosto em operações plásticas, que se deixa suspenso por ganchos como um boi no matadouro, que se traveste como se fosse outro, ou outra, etc. Nada de novo. O que é pode ser diferente, aí, é a modo como olhamos para essas atitudes. Muitas delas criadas para causar sensação de repulsa, choque, etc.
O corpo nos anos 80 e 90 esteve na moda. Todo tipo de exposição artística era, ou falava do e sobre o corpo como lugar privilegiado do fenômeno estético. Mas ainda, ou era um corpo sacrificial ou um corpo hedonista. Um narcisismo desvitalizado: oligofrênico e esquizofrênico ao mesmo tempo. O máximo do individualismo massificado. Em sintonia com o boom das academias de musculação, a malhação, a busca de uma beleza vazia, exibicionista. Piercing, enxertos, lipoaspiração, o corpo como padrão escravizado pela estética asséptica do cirurgião plástico. O indivíduo massacrado pelo padrão social de beleza global. A mulher se tornando máscula, o menino brincando com bonequinhas do He-man.
Em 1957, um ano após a morte de Jackson Pollock, uma mulher, oriental, pertencente ao grupo Guttai, de nome Kubota, enfia um pincel em sua vagina e pinta quadros. Outro, luta caratê com as telas de pintura, em branco, destruindo-as. Aparecem novas formas de se enxergar o corpo na arte. E o próprio corpo da arte se transmuda, também.
Hélio Oiticica inventa, no começo dos anos 60, o parangolé: uma proposta que tiraria a passividade do espectador da obra de arte, que agora só existiria na medida que vestisse tal roupa e se movimentasse no espaço com elas. Oiticica é o responsável por tirar a cor da parede, faze-la espaço e voltar-se para o corpo das pessoas. O corpo é cor.
O corpo da arte já não era mais o corpo da arte em um local específico, porque a arte já espalhava seu desejo de tornar-se corpo além das fronteiras daquele ponto central: Europa ou Estados Unidos. Aliás, porque nesses lugares haviam esgotado suas possibilidades. A história lhes pesava demais sobre os ombros.
A verdade é que falar sobre o corpo na arte é falar da própria história da arte, porque ela sempre tratou do próprio corpo dos que a fizeram. Até chegar na Renascença, havia uma enorme dificuldade, na arte ocidental, de representar o corpo segundo um certo padrão. Foi graças à geometria que se criou um cânone de representação: nascia a perspectiva, os planos que criavam a sensação de profundidade, os padrões para representação do homem e da mulher. Depois, as pinceladas que marcavam a personalidade do artista. E o quadro passou a ser algo no mundo, ao invés de algo que, simplesmente, representava o mundo. Mas, enfim, o que estava em jogo mesmo era a atitude do artista. "O verdadeiro artista é uma maravilhosa fonte luminosa", diria Bruce Nauman, no final dos anos 60, jogando água por sua boca, em uma performance intitulada O Artista Como Fonte, embaralhando a certeza platônica do idealismo, pois a ambigüidade passa a fazer parte do discurso artístico: uma farsa que diz verdades.
Se a própria história do corpo é a história da arte, pois toda expressão está ligada à materialidade, podemos então pensar esse corpo como ausência, como é o caso do "Duplo Negativo", criado por Michael Heizer, em 1969, no deserto de Nevada. Trata-se de dois buracos, de enorme dimensão, escavados no meio de uma paisagem, em que o observador só dá conta do lugar onde está, olhando de um buraco para outro. Ou como fazia a artista mexicana Ana Mendieta, que cavava buracos representando um corpo no meio de vários lugares, e os fotografava.
Se, como dizia Joseph Kosuth em seu manifesto Arte Depois da Filosofia, que a "arte é a idéia de arte", então essa ausência poderia revelar uma presença ainda mais significante do que a sua materialidade. A arte conceitual fundamenta-se, principalmente, pelo conceito que as coisas possuem e não mais por qualquer tipo de "expressão" do belo.
Se for assim, podemos então conceituar o corpo agora como processo, fluxo, continuidade, relação. Sempre portador de uma idéia que se quer de corpo, de acordo com o nosso próprio tempo. Um tempo onde as relações são jogadas como que ao acaso, por partes que podem nos indicar a presença de uma totalidade, assim como o corpo individual imerso no corpo coletivo pode inventar uma noção de totalidade onde as partes são indissociáveis.
(continua)
talvez o corpo seja uma sensação compartilhando sua existência na totalidade sensacional não-visível. e os narcisitas são cegos para as sensações.
Posted by: Julie at maio 30, 2006 6:40 PMSeria possível estabelecer uma dramaturgia pras performances de Ana Mendieta? Eu estou me atrevendo a fazer isso pra um trabalho da faculdade, e o seu texto sobre o corpo me indica alguns caminhos. Obrigado!
Só uma coisa: a Ana Mendieta é cubana...
rjwthrwu u truwy yi
jey yjteyiy epiujugj
eu acho que o grafite nao joga nada
Posted by: Raúl Antelo at junho 15, 2010 2:59 AM