|
novembro 30, 2005
Fronteiras Líquidas: o artista construtor de espaços-afetos por Priscila Arantes
Fronteiras Líquidas:
o artista construtor de espaços-afetos
PRISCILA ARANTES
Palestra apresentada na mesa de Arte e Tecnologia, com Maria Beatriz de Medeiros e Paulo Sergio Duarte, na 5ª Bienal do Mercosul em 22 de novembro de 2005
O trajeto seguido pela arte, de sua fase moderna à contemporânea, tem sido o de se conduzir à vida negando, gradativamente, tudo aquilo que se relaciona, de forma mais direta ao conceito da estética tradicional e à idéia daquilo que é permanente e durável: a moldura na pintura e o pedestal na escultura, a utilização do suporte de representação, a exposição em espaços convencionais, como museus e galerias de arte, a dicotomia obra - público.
Acrescente-se a este repertório o fato de que os meios de comunicação e os suportes tecnológicos, tais como o vídeo e mais recentemente o computador e as experimentações que lidam com as mídias digitais e a net começam a fazer parte do cenário artístico. Para alguns, esse itinerário seguido pela arte evidenciaria sua sentença de morte.
De fato o tema da morte na arte surge na filosofia, mais propriamente na estética hegeliana, migrando posteriormente para a própria arte, quando as vanguardas artísticas do início do século XX começam a romper com os valores estéticos herdados da tradição.
A discussão sobre a suposta morte da arte ganhará os olhares de inúmeros teóricos, tais como Gianni Vattimo que em o Fim da Modernidade desenvolve seu conceito do 'estranhamente pervertido'. O que está implícito no pensamento de Vattimo é a dissolução dos confins definidores da arte e do artista e a difusão do fenômeno estético para o conjunto das manifestações sociais. A estética, para ele, se difunde de tal maneira para além de suas fronteiras tradicionais -se perverte- que se confunde com a própria experiência da vida cotidiana.
Tal é, também, o pensamento de Walter Benjamin que em seu ensaio sobre a obra de arte na época da reprodutibilidade técnica assinala a perda da aura como um dos requisitos fundamentais para se pensar a produção artística na modernidade: a obra de arte, aqui, se metamorfoseia, perdendo seu 'status' de unicidade atrelado a uma determinada dimensão espaço-temporal.
O espaço neoconcreto
Nesta busca incessante da aproximação da arte com a vida percebe-se, também, um redimensionamento da idéia do espaço e do tempo no campo mais geral da arte, redimensionamento este que mantêm vínculos diretos com os debates travados na área da estética, mais particularmente das discussões engendradas no campo da fenomenologia a partir, principalmente, dos anos 60.
Dentro desta perspectiva o espaço deixa de ser visto como uma entidade absoluta dada a priori se transformando em uma categoria relativa que se constrói no tempo e no embate direto com a ação corpórea do sujeito.
Quando Hélio Oiticica por meio de seus relevos espaciais e seus parangolés liberta as cores e as formas do suporte tradicional da pintura, levando-as ao espaço, a idéia é a de exatamente investigar proposições mais vivenciais, aproximando a obra de arte da experiência cotidiana. A obra sai do espaço da tela, para adentrar no espaço real, vivenciado plenamente pelo espectador.
As propostas neoconcretas, neste sentido, ora se lançam a modalidades vivenciais dos objetos ora se deslocam para o campo das manifestações ambientais que, rompendo com uma noção de espaço vazio e neutro - receptáculo das coisas do mundo - se define como um espaço que incorpora, fenomenologicamente, a ação do corpo do espectador: é um espaço com qualidades afetivas, espaços-afetos, como diria Félix Gattari, espaços-vivências que se geram a partir da experiência corporal subjetiva.
O artista: construtor de espaços afetivos
Por outro lado, nesta busca incessante de aproximar a arte com a vida, não somente o espaço se vivifica, como também a própria figura do artista se modifica. Longe de desenhar espaços e universos ideais ele torna-se um construtor de espaços-afetos.
Se partirmos do pressuposto de que o espaço tem um sentido vital na vida do ser humano, podemos entender que dar ao público a possibilidade de vivenciar o espaço e não somente contemplar um espaço dado a priori, é paralelamente levar esta idéia, do campo da arte, ao campo da experiência cotidiana. Isto é, significa, postular a idéia de uma postura menos passiva, por parte do público, diante do espaço da vida social .
Neste sentido percebe-se que tanto os trabalhos de Hélio Oiticica quanto os de Lygia Clark muitas vezes apontam para uma postura política e de uma tomada de posição manifesta em relação à função da obra de arte na contemporaneidade. Aqui a obra de arte parece não designar mais somente a produção de objetos estéticos fechados em si mesmos, mas sim apontar para experiências e vivências libertadoras.
Espaço-interface, endofísica e fenomenologia
Se as discussões dos anos 60 ainda são extremamente pertinentes para se pensar as transmutações do conceito do espaço no campo mais geral das práticas artísticas contemporâneas, como pensar a construção destes novos espaços engendrados pelo impacto das novas tecnologias na contemporaneidade? Será que o espaço midiático é um espaço alienador tal como postulam os céticos da cultura tecnológica ou é um espaço que pode ser pensado à luz das experiências e vivências afetivas?
Vilém Flusser, em uma de suas últimas conferências, se pergunta "para onde vai a sociedade da informação?". Para ele a especificidade da sociedade contemporânea não diz respeito somente a uma estrutura social em que a produção, tratamento e distribuição de informações ocupam uma posição central na sociedade, mas muito mais, a uma formação social em que o seu interesse se concentra na troca de informações com os outros. " Não há sociedade nenhuma sem pessoas, não há pessoas fora duma qualquer forma de sociedade. Por esse motivo, os conceitos de "pessoas" e de "sociedade" não podem ser vistos separadamente (...) Não é a pessoa ou a sociedade que são concretos, mas sim o campo de relações, a rede de relações intersubjetivas (...) A proximidade não é, por conseguinte, a função de qualquer distância espacial ou temporal, mas a função do número e da intensidade de relações e interfaces que nos ligam uns aos outros" afirma Flusser .
Philippe Quéau, por outro lado, ao tentar delinear as particularidades da dimensão espacial na sociedade contemporânea, chega a afirmar que estamos assistindo a uma paródia da revolução copernicana de Kant. Se em Kant o espaço é uma representação necessária a priori, condição prévia da relação entre sujeito e objeto, para Quéau, o espaço parece ter se convertido em um referente modelizável, em um dado relativo. Dito com outras palavras, o espaço, na sociedade da informação não é visto como um dado absoluto e independente do sujeito, mas "é a experiência interativa e progressiva do espaço que o constitui epigenéticamente como espaço" .
Sob a perspectiva da estética tecnológico-midiática, portanto, tanto o tempo quanto o espaço, não são mais pensados como entidades absolutas, mas como entidades maleáveis, móveis, líquidas e mutantes construídas a partir de um processo dialógico com o interator. Sob este aspecto seria interessante destacar um elemento chave: a interface, já que ela é o componente fundamental para a realização não somente deste processo dialógico, mas deste processo inter-relacional de que nos fala Flusser.
Ensaio obrigatório para a discussão da interface é The World as Interface de Peter Weibel que descreve o mundo a partir da noção de interface. Para desenvolver esta idéia, o teórico se apóia nos princípios da endofísica, ciência que defende a idéia de que o observador sempre faz parte daquilo que observa, não existindo uma fronteira e separação rígida entre o observador e o que é observado. Para a endofísica, somos partes constituintes do mundo que observamos; portanto, não existe uma objetividade independente do observador.
Conforme Weibel, as tecnologias eletrônico-informáticas - com suas interfaces - e conseqüentemente as produções artísticas midiáticas - não centrada na obra/objeto, mas na obra/processo - dão as pistas e o insight necessários para se pensar fenomenologicamente o mundo em que vivemos. Somos parte de um sistema: entender o mundo significa percebê-lo a partir da noção de interface. Assim, a obra/mundo/espaço só se manifesta na medida mesma de sua inter-relação com o interator/observador/sujeito: ambos fazem parte de um mesmo sistema, de um mesmo conjunto de inter-relações como diria Vilém Flusser .
De fato, independentemente das novas dimensões que possamos dar a estes novos espaços construídos a partir das redes de comunicação e internet todos parecem concordar em um mesmo ponto: o espaço eletrônico-digital não é um espaço dado a priori mas é um espaço construído fenomenologicamente, a partir das interfaces que se estabelecem entre seus interatores.
Arte, ciência, tecnologia e a constituição de novos espaços
Não por acaso uma série de teóricos da área de arte em mídias digitais afirmam que as interfaces - desde as mais comuns como mouses, teclados, telas sensíveis, luvas para capacetes de realidade virtual e sensores, entre outros dispositivos de captura e tradução de sinais humano-máquina - devem ser vistas como o coração mesmo do trabalho artístico mídia digital, já que elas não somente explicitariam a forma e o desenvolvimento do trabalho como, também, a maneira pela qual o interator constrói o espaço eletrônico- digital fenomenologicamente.
No caso dos trabalhos que lidam com arte e tecnologia trata-se não somente de se falar da construção de espaços físicos mas de, concomitantemente, falar na construção de espaços-afetivos imagéticos, eletrônico-digitais, interfaceados com as ações do corpo do interator.
Não por acaso vimos surgir uma série de trabalhos que, para além das interfaces mais usuais procuram desenvolver interfaces mais amigáveis (intuitivas, orgânicas, naturais) e explorar as ações do corpo humano como o gesto, o toque a voz, a respiração para a construção do espaço eletrônico em tempo real.
Em ambientes interativos, por exemplo, também temos espaços para a interiorização do corpo humano, acrescentando em relação às instalações que não se utilizam de dispositivos midiáticos, a possibilidade de se conviver com dados materiais e imateriais/eletrônicos ao mesmo tempo.
Em Perceptos e afectos, por exemplo, projeto de curadoria desenvolvido por mim no ano de 2005, é possível perceber, a partir de três trabalhos a constituição destes espaços líquidos, mutantes e afetivos.
Em Projeção de Raquel Kogan somos convidados a nos deparar com uma situação ambígua e paradoxal: ver-se dentro e fora, ao mesmo tempo, de uma mesma imagem. O projeto consiste em uma imagem de vídeo, projetada em um vidro/espelho, cujo cenário é semelhante ao que geralmente acontece em um espaço expositivo: pessoas se movimentando e olhando para o objeto exposto - neste caso, o vidro reflexivo.
A concepção de espaço de Rachel Kogan em Projeção é a de um espaço múltiplo que se desenvolve a partir da função do observador. O ato de mirar-se a si mesmo, na duplicidade proposta pelo espelho e o de se colocar dentro e fora ao mesmo tempo de um mesmo espaço implica na afirmação da reversibilidade do espaço. Isto é, implica na afirmação de que os limites do espaço não são rigidamente construídos mas se desenvolvem de forma mutante a partir do local assegurado pelo expectador.
Em Zerozones de Rachel Rosalen, somos convidados a percorrer uma sala escura formada por um corredor de espelhos. Ao centro, 130 ovos de cerâmica por onde se projetam imagens advindas de 4 projetores colocados na parte superior da instalação. Disparadas e alternadas a partir do deslocamento corporal dos visitantes, as imagens de corpos, de textos poéticos e da metrópole contemporânea parecem explodir dos ovos que se refletem infinitamente no espelho.
O espaço aqui se constrói fenomenologicamente a partir do deslocamento corporal do visitante que, através dos sensores devidamente colocados no interior da instalação, disparam imagens que se projetam nos espelhos criando um espaço fluido e mutante. Neste trabalho, como diria Bérgson, corpo e espaços são imagens que se constroem de maneira inter-relacional. Este é um exemplo da maneira como o espaço pode ser afetado pela subjetividade do observador.
Em Infinito ao cubo de Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti somos convidados a imergir em um cubo de espelhos que se move de acordo com o deslocamento e peso dos participantes permitindo ao público imergir na multiplicidade das dimensões espaciais. O que está em jogo aqui não é a geometria do espaço construído, mas mais precisamente a forma como as relações entre corpo, tempo e espaço se compõem a partir da subjetividade de quem vivencia o trabalho.
Singular das pesquisas com interfaces mais sensórias, são as interfaces de imersão, que permitem ao interator mergulhar em um ambiente totalmente simulado - isto é, nos ambientes de realidade virtual. Este é , por exemplo, o caso de Op-era de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat: uma "ferramenta de experimentação multissensorial de conceitos de espaço".
Colocando óculos para ver em estereoscopia e utilizando dispositivos manuais, o interator é convidado a mergulhar em um espaço-tempo abstrato constituído por algoritmos computacionais. Os objetos computacionais, programados para serem visualizados, eram constituídos por pontos, linhas, gráficos, triângulos, círculos, quadrados, que interagem em tempo real com o interator de acordo com o seu movimento corporal.
Já em HeartScapes de Diana Domingues e do grupo Artecno, da Universidade de Caxias do Sul, o público tem a possibilidade de imergir em um coração virtual simulado, usando dispositivos que propiciam navegação espacial e a estereoscopia, além de biofeedbacks de sinais do corpo do interator.
Dentro do contexto da rede o que se percebe é a construção, muitas vezes,de espaços intersubjetivos compartilhados em tempo real que potencializam a idéia de que o espaço público da Internet é um espaço de vivência coletivo, uma urbis eletrônica, que se constrói a partir dos interfaceamentos -afetivos entre seus participantes como é o caso dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo Corpos Informáticos.
Nestes casos, o artista não é somente um construtor de espaços, mas um agenciador de espaços-interfaces construídos colaborativamente como vivências libertadoras. É a ação dos corpos, suas interfaces, seja com os dispositivos de captura, seja com outros corpos, que constroem o espaço eletrônico em tempo real.
Espaços de poder e estética da interface
Noções tais como a de fronteira, limite, território, cartografia, enfim, metáforas espaciais, vem sendo cada vez mais, em um mundo mediatizado e marcado pelas tecnologias telemáticas, colocadas em debate.
Para Jameson a pós-modernidade - contrariamente ao modernismo cuja experiência da temporalidade é a linha de toque das discussões mais significativas - é marcada essencialmente pelas discussões sobre o espacial.
Mas me parece Michel Foucault em Microfísica do Poder, quem delineia uma das questões essenciais sobre a noção de espaço: a sua íntima relação com o poder e o saber. Ou seja, para Foucault, uma determinada visão de espaço carrega consigo necessariamente uma dimensão política e de saber :
Reprovaram-me, afirma Foucault, " muito por essas obsessões espaciais, e elas de fato me obcecaram. Mas, através delas, creio ter descoberto o que no fundo procurava: as relações que podem existir entre poder e saber. Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de deslocamento, de transferências, pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz os seus efeitos (...)"
Já Félix Guattarri em Caosmose afirma a íntima relação entre a construção dos espaços e das subjetividades como uma das principais discussões da contemporaneidade:
"a redefinição das relações entre o espaço construído, os territórios existenciais da humanidade tornar-se-á uma das principais questões da re-poralização política", diz o filósofo.
Neste sentido, falar em espaços interfaceados e em artistas agenciadores de espaços significa, concomitantemente, entender, tal como nos mostra Foucault e Guattari o papel social da arte contemporânea como experiência e vivência , como construção intersubjetiva, fenomenológica, interfaceada.
Esta é uma, dentre outras discussões, que venho travando dentro de um conceito mais amplo que desenvolvi desde o final de meu doutorado; o conceito de interestética, ou melhor, da estética da interface (entre pessoas, entre áreas de saber, entre o humano e o maquínico) como uma das possibilidades para se pensar as prerrogativas mais gerais da estética contemporânea.
Priscla Arantes é crítica, teórica e pesquisadora em linguagem da arte e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É coordenadora e professora da Pós-Graduação "Mídias Interativas" do Senac-SP e da habilitação em "Arte e Tecnologia" do Curso de Tecnologias e Mídias Digitais da PUC/SP.
É autora de @rte e Mídia: perspectivas da estética digital (Ed. Senac/Fapesp), colaboradora da revista Cibercultura do Instituto Itaú Cultural, da Revista Trópico, entre outras. Desenvolve desde 2004 curadoria do BrasilMídiaDigital, um banco de dados que pretende mapear a produção brasileira que atua na interface entre arte, ciência e tecnologia.