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outubro 8, 2004
A revolução das formas colaborativas, por Ronaldo Lemos
Texto de Ronaldo Lemos, difundido na lista de discussão do digitofagia
(http://www.midiatatica.org/digitofagia/).
A revolução das formas colaborativas
Ronaldo Lemos
Criada a partir do termo "copyright", a noção de "copyleft" representa uma flexibilização da idéia de direito autoral herdada do século 19
O surrealismo é um movimento pela liberação da mente que enfatiza os poderes críticos e imaginativos do inconsciente". Esse trecho não é de minha autoria. Ele consta no verbete "surrealismo" da enciclopédia "Wikipedia". Se você achar que o texto não define adequadamente o surrealismo, não se acanhe. Você pode modificá-lo imediatamente. Basta ir ao website da "Wikipedia", uma enciclopédia on-line, e clicar na opção "editar esta página", introduzindo a seguir as alterações que quiser. Com mais de 230 mil verbetes, a diferença entre a "Wikipedia" e uma enciclopédia tradicional é que ela não possui um conselho editorial. Ela é construída integralmente a partir da colaboração de pessoas de todo o mundo, que livremente criam novos verbetes e alteram os antigos. O resultado, de excelente qualidade, está on-line para quem quiser conferir (www.wikipedia.com). Há inclusive planos para o lançamento de uma versão impressa, que será vendida em livrarias, mas mantendo o direito de copiar, redistribuir e alterar seu texto.
A "Wikipedia" só existe por causa do chamado "copyleft", uma brincadeira (que se tornou séria) com o termo "copyright". O "copyleft" significa liberdade para copiar, distribuir e modificar, desde que tudo que for agregado ao trabalho também continue da mesma forma livre. A idéia surgiu mais ou menos assim: no início da década de 80, um programador chamado Richard Stallman, indignado com a decisão da AT&T de proibir acesso amplo ao sistema operacional Unix, resolveu ele próprio escrever um sistema operacional e garantir que ele continuasse aberto, podendo ser modificado, copiado e redistribuído, desde que as pessoas que o modificassem subseqüentemente também o mantivessem "livre".
Sempre aberto
Nascia assim o sistema operacional chamado GNU, que veio a gerar o GNU/Linux (como os entendidos chamam o Linux). A grande peculiaridade desse sistema é que a colossal tarefa de desenvolvê-lo é distribuída entre colaboradores de todo o mundo, que, tal como a "Wikipedia", testam, aperfeiçoam e modificam o software, desde que ele permaneça aberto.
Além da "Wikipedia", do GNU/Linux e da miríade de outros programas de computador livres, há vários outros projetos colaborativos em curso. Existe um projeto de catalogação das crateras do planeta Marte mantido pela Nasa a partir das fotos enviadas pela sonda Viking. O projeto já catalogou mais de 1,2 milhão de crateras e continua aberto para qualquer pessoa analisar as fotografias do planeta e contribuir na catalogação.
Outro é o projeto Kuro5hin, uma revista de tecnologia e cultura cuja íntegra da produção editorial é feita por meio de um sofisticado trabalho cooperativo (www.kuro5hin.org).
O motor dessa revolução colaborativa é o "copyleft". Ele representa uma flexibilização, feita de baixo para cima, da idéia de direito autoral que herdamos do século 19. Enquanto as obras precisavam de suporte físico, o direito autoral propiciava os incentivos e a proteção adequada para fomentar sua circulação. Esses incentivos consistem em um grande "não!", ou seja, qualquer obra já nasce com "todos os direitos reservados". Isso se aplica até mesmo a rabiscos feitos em um guardanapo: quem quiser colocá-los na internet (hipótese remota, mas vá lá) também precisa de autorização prévia. Surge assim uma cadeia de intermediários que cuidam dessas autorizações, agenciando predominantemente apenas obras com valor comercial.
Assim, com o desaparecimento do suporte físico, no final do século 20 esse direito autoral tradicional passou de agente propulsor da circulação da cultura a seu principal inibidor.
A promessa da internet de digitalizar, preservar e transmitir toda nossa cultura, na íntegra, para as gerações futuras simplesmente não aconteceu. Como é impossível obter as permissões jurídicas necessárias para digitalizar a maior parte da informação, estamos preservando para as futuras gerações apenas uma pequena parcela cultural, sobretudo aquela que tem valor comercial, e perdendo todo o resto, que se deteriora juntamente com seu suporte físico.
A reação a isso surgiu com inspiração no software livre: inúmeros autores perceberam o dilema e passaram a desejar que suas obras pudessem ser acessadas, distribuídas e copiadas. Desejar até mesmo a modificação, aperfeiçoamento e reconstrução do seu trabalho, como nos exemplos acima. Para esses autores, surgiram iniciativas como o projeto sediado na Universidade Stanford chamado Creative Commons (www.creativecommons.org), representado no Brasil pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Ele cria instrumentos (licenças) para que um autor sinalize ao mundo, de modo claro e preciso, que sua criação é livre para distribuição, cópia e utilização, eliminando intermediários. O criador pode permitir, se quiser, alguns ou todos desses direitos, bem como a reconstrução do seu trabalho, por meio de remix, colagens, mesclagens e "sampling", gerando um poder revitalizador inacreditável e rompendo as barreiras entre autor e público.
Evolução do capitalismo
Um aspecto muito importante do "copyleft" é que ele não representa um rompimento com a lógica capitalista, mas sim uma evolução (ou revolução) feita dentro de seu próprio sistema. Software livre e cultura livre dão dinheiro, sim. Não por acaso a IBM e, mais recentemente, a Novell estão focando o desenvolvimento de produtos licenciados sob "copyleft". Aquela já investiu alguns bilhões de dólares no Linux. Com isso obtém retorno vendendo serviços e configurações especiais de hardware. Esta está seguindo o mesmo caminho. Na música, o rapper Jay-Z liberou recentemente todos os vocais de seu álbum de despedida para a recriação de outros artistas. Dentre os resultados, misturas do rapper com os Beatles ou mesmo com Metallica.
No Brasil, a banda pernambucana Mombojó liberou seu excelente disco de estréia, "Nadadenovo", na internet. A banda está escalada para tocar na noite mais importante do Curitiba Pop Festival, festival cujos 6.000 ingressos se esgotaram em menos de quatro horas. Nos EUA, o escritor Cory Doctorow vendeu mais de 10 mil cópias impressas de seu primeiro livro, colocando-o livremente para download na internet. Seu segundo livro, recém-lançado, repete a mesma política.
Em outras palavras, não se trata de repudiar o direito autoral como um todo, mas de restabelecer o balanço para devolvê-lo à sua função originária de propulsor cultural. Decai um modelo de negócios, surgem vários outros em paralelo. E socialmente mais benéficos, porque garantem a principal premissa para inovar e criar: acesso sem fronteiras à informação.
Em paralelo a essa revolução, o direito autoral segue caminho diverso, tornando-se cada vez mais fiel à sua imagem forjada no século 19. Nos EUA, o prazo de proteção autoral, que era originalmente de 14 anos, foi sucessivamente ampliado até chegar a 70 e, em 1998, estendido para 90, por pressão de grupos de mídia como a Disney. O ratinho Mickey, que cairia em domínio público em 2003, ganhou uma sobrevida no cativeiro por mais 20 anos. E com ele levou a obra de George Gershwin e todos os outros bens culturais que teriam caído em domínio público não fosse a mudança na lei. Estima-se que a maior parte deles irá se perder, pois não há fundos nem gente o suficiente para destrinchar o labirinto de autorizações para restaurar seus suportes ou fazer sua digitalização.
Os ventos da globalização sopram forte sobre o Brasil e com eles trazem pressões vindas de todos os lados para enrijecer nossa legislação autoral, como se a mesma já não fosse severa o bastante. Resta saber se em uma sociedade culturalmente tão rica quanto a brasileira e, ao mesmo tempo, tão carente de meios que possam fazer essa cultura emergir, saberemos optar pelos interesses que verdadeiramente nos dizem respeito e fazer com que o direito autoral se modifique, sim, mas para ser um instrumento de transição para o futuro, e não meramente um mecanismo de preservação do passado.
Ronaldo Lemos é mestre em direito pela Universidade Harvard e diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ).
Fonte: Centro de tecnologia e Sociedade/FGV .