|
julho 3, 2017
Maior mostra global, Documenta disseca a crise europeia em Atenas por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Maior mostra global, Documenta disseca a crise europeia em Atenas
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 17 de abril de 2017.
Um hotel abandonado aos pés da Acrópole é a cicatriz no horizonte mais visível do terraço de um novíssimo museu em Atenas. Suas ruínas grafitadas, como grande parte da capital grega, contrastam com os janelões brilhantes e as paredes branquíssimas das galerias que servem de pavilhão principal desta Documenta.
Maior mostra de arte contemporânea do mundo, o evento que acontece a cada cinco anos na pacata cidade de Kassel, na Alemanha, deu um "salto mortal", nas palavras de seu diretor artístico Adam Szymczyk, e transferiu metade da mostra para o epicentro da crise europeia.
Não foi uma mudança inocente, como deixaram claro os protestos na abertura da exposição há uma semana -parte do establishment artístico grego se ressentiu de virar um circo exótico para o evento alemão, pichando muros e criticando a escolha de um antigo centro de tortura da ditadura local como um espaço para performances.
Nesse sentido, Atenas, que ferve como um dos maiores pontos de entrada de refugiados na Europa e anda às turras com a política de austeridade fiscal imposta por Berlim, não é só o pano de fundo de mais um festival de arte.
Suas ruínas, quase erotizadas como pilares do espetáculo de uma metrópole em erosão, viraram fio condutor da mostra -a mais famosa delas, o templo do Partenon, visível de todos os pontos da cidade, orienta uma seleção de obras que se manifesta como uma alegoria da destruição.
"O Partenon é mais ar do que qualquer outra coisa. Ele embaralha os lados de dentro e fora da arquitetura num turbilhão", diz Szymczyk. "É um fragmento capaz de nos dar a imagem da coisa toda."
Outro pedaço de Atenas, um prédio que lembra o hotel dilapidado diante do museu, parece ter a mesma função na obra da alemã Maria Eichhorn. Num comentário nada sutil sobre a especulação imobiliária que varreu a Grécia no rastro de seu colapso financeiro há quase dez anos, a artista comprou o imóvel num bairro cobiçado por empreiteiras e butiques.
Mas nada vai acontecer ali. Eichhorn negociou com autoridades locais para manter o prédio sem uso, uma espécie de monumento vazio diante de uma cidade em convulsão.
ARQUEOLOGIA
O silêncio preservado naquele lugar se estende, aliás, para o resto da mostra, que ocupa quase 50 endereços de Atenas, entre museus, teatros, escolas, praças e bibliotecas.
No conservatório da cidade, partituras ou roteiros de performances são mostrados à exaustão, num exercício de arqueologia da experiência sonora na ausência do som.
Diagramas de um sintetizador, do coletivo grego KSYME-CMRC, abstrações geométricas da paquistanesa Lala Rukh transformadas numa animação, os estranhos -e inertes- instrumentos musicais feitos de lixo pelo mexicano Guillermo Galindo e páginas e páginas datilografadas de instruções para performances do grego Jani Christou e da americana Pauline Oliveros dão essa sensação de sonoridade latente, ou música inaudível.
Das mais belas e potentes obras da Documenta, um filme do americano Ben Russell mostra pessoas em transe numa pista de dança. É talvez a manifestação mais visceral dessa tentativa de dissecar o ruído -sua câmera não filma a banda, e o som se torna quase uma abstração, mas os corpos reagem frenéticos aos acordes furiosos como rajadas de metralhadora.
"Qualquer gravação incorpora os ruídos de sua própria reverberação no espaço e contra os corpos ali", diz Russell. "Então quando ouvimos alguma coisa estamos ouvindo nossos próprios corpos vibrando, o que é outro jeito de pensar a nossa presença."
Outros trabalhos também discutem a presença do corpo -dos outros- num território cada vez mais fechado.
O polonês Artur Zmijewski, numa das obras mais polêmicas da Documenta, filmou as condições precárias do campo de refugiados de Calais, no norte da França.
Mas o que parece ser um registro documental logo se transforma em manifesto, quando o artista entra em cena e pinta de branco o rosto negro de um refugiado, aludindo ao doloroso e violento processo de assimilação cultural que atravessa a Europa.
Falando do mesmo assunto sem a mesma profundidade, a canadense Rebecca Belmore pôs uma barraca de acampar feita de mármore, referência à estatuária clássica grega, no alto de um monte com vista para a Acrópole, a Europa entendida ali como destino manifesto dos oprimidos pelas guerras ao redor.
CALCANHAR DE AQUILES
A falta de delicadeza de obras como essa e outras, entre elas a performance em que a argentina Marta Minujín entregou azeitonas a uma sósia da chanceler alemã Angela Merkel fingindo pagar a dívida de Atenas com Berlim, é o calcanhar de Aquiles dessa Documenta tão experimental quanto irregular.
No fundo, esses trabalhos revelam a tensão que atravessa um evento que se apresenta como tentativa de aprender com Atenas, alusão a "Aprendendo com Las Vegas", livro dos anos 1970 que se tornou um dos maiores estudos do pós-modernismo e do impacto do capitalismo selvagem na construção das cidades.
"Queríamos aprender com uma situação de crise, aprender com as margens e não com o centro da Europa", diz Pierre Bal-Blanc, um dos organizadores da Documenta. "Era para sair da zona de conforto."
Essa tentativa de deslocamento, no entanto, acabou resultando num safári mal resolvido por cenas artísticas em geral ausentes do circuito de elite das mostras globais. É o caso das galerias inteiras dedicadas ao realismo socialista albanês, que parece ali instrumentalizado ou fetichizado para legitimar um discurso nostálgico e ambíguo.
Mas talvez isso que a mostra quer aprender já tenha se manifestado em pontos mais distantes. Entre as raras vozes de fora da Europa na Documenta, Regina José Galindo, da Guatemala, fez uma performance em que vestiu as roupas de uma mulher assassinada em seu país, lembrando que na crise econômica grega o número de agressões contra mulheres disparou.
"Isso aqui mudou minha perspectiva, mesmo vindo de um país que está sempre na merda", diz ela. "O que aprendemos com o sul do mundo é a resiliência, algo que o primeiro mundo não tem. Essa talvez seja a lição de Atenas."