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abril 29, 2017
Bienal de Veneza e Pompidou destacam obra de Paulo Bruscky por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Bienal de Veneza e Pompidou destacam obra de Paulo Bruscky
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 28 de abril de 2017.
No ateliê de Paulo Bruscky, pilhas imensas de papéis e objetos estranhos, de botas de borracha a ferros de passar, ameaçam soterrar o artista. Suas montanhas de tralha, entre obras acabadas e esboços de novos projetos, parecem aumentar ali dentro a tórrida sensação térmica do Recife.
É nesse laboratório claustrofóbico, ou calabouço imundo, que fervem as ideias desse homem. "Sou um dos artistas mais sujos do Brasil, com muita honra", diz Bruscky. "Não tem essa preocupação com aparência, preciosidade. O lixo aqui é de uma riqueza arretada."
Ele fala de Boa Vista, um dos bairros mais antigos da cidade. Os pedaços de madeira, móveis descartados, retalhos de tecido e todo tipo de coisa que encontra por essas ruas –com as esquinas mais estreitas do mundo, ele gosta de observar– acabam virando parte de sua obra, uma crônica visual de um cotidiano atravessado por tensões.
Essa eletricidade estranha das calçadas orienta os trabalhos que Bruscky vai mostrar na próxima Bienal de Veneza, no mês que vem, e também no Pompidou, em Paris, onde terá uma retrospectiva neste ano –duas mostras que cristalizam a narrativa em torno do artista que desafiou a ditadura na periferia do mundo e agora é celebrado pelo establishment.
Desde a década de 1960, Bruscky vem trabalhando como uma espécie de alquimista, vertendo os dramas das ruas em trabalhos mordazes, como o caixão rotulado "arte" que jogou num rio do Recife, a fita vermelha que estendeu de ponta a ponta numa passarela, atrapalhando o tráfego, as performances em que fotocopiou seu rosto gritando ou os classificados inusitados que ainda planta em jornais.
Um deles, de retórica futurista, anunciava uma máquina capaz de gravar sonhos.
Talvez daí o poeta Jomard Muniz de Britto, um dos pilares da intelligentsia pernambucana, chamar Bruscky de bruxo –um observador afiado da "beleza sórdida" ao seu redor, "transtornado pela transformação".
Essa angústia parece estar por trás do vício do artista em acumular e catalogar todas as coisas, das obras de arte que mandou e recebeu pelo correio –ele é um dos pioneiros do movimento que ficou conhecido como arte postal, tática usada para driblar a censura de regimes totalitários– a gravações dos sons que fazem as baleias ou o farfalhar das asas de borboletas –um esforço monumental contra o esquecimento.
"Tem artista que não quer saber o que veio antes, mas eu sempre pesquisei para saber tudo que vinha antes de mim", diz Bruscky. "Acho que numa outra vida eu fui arquivista."
Nesta encarnação, pelo menos, Bruscky, que se diz um "exímio datilógrafo", desenvolveu certa habilidade burocrática nas décadas que passou trabalhando como funcionário público, assinando e carimbando documentos, o que explica sua desenvoltura ao navegar pelo caos de seu ateliê, onde calcula ter guardado 170 mil objetos.
ARQUEÓLOGO
"É uma desarrumação arrumada", diz o artista Silvio Hansen, sobre o acervo que parece infinito. "O Paulo é um arqueólogo da arte."
Ou um "colecionador com intuição", como lembra Celso Marconi, crítico de arte que escreveu sobre Bruscky e filmou, em 1978, a performance em que o artista passou o dia dentro da vitrine de uma livraria com um cartaz perguntando para que servia a arte.
Esse questionamento, aliás, também estrutura a ação que Bruscky quer realizar em Veneza. Na abertura da mostra, uma gôndola vai adentrar os Giardini cheia de caixas, as mesmas usadas para embalar obras de arte. Vestindo um macacão, o artista vai então empilhar as peças criando uma composição aleatória.
Seu jogo de embalagens cegas, no caso, se articula como um ataque à circulação de obras que se tornaram troféus, ou objetos esvaziados de significado e disputados por um mercado cada vez mais voraz.
Mesmo seus trabalhos mais conceituais, antes ignorados pela indústria movida por galeristas e colecionadores, agora são alvo de especulação.
"O mercado dele teve uma projeção, deu um salto", conta Lúcia Santos, a primeira marchande a representar o artista, na Amparo 60, sua galeria no Recife. "Triplicou o valor das obras, mas ele ainda é uma pessoa simples, que almoça nos mercados e gosta de tomar a cervejinha dele."
BOÊMIO SOLITÁRIO
Bruscky, de fato, costuma ser visto –sozinho– noite adentro pelos bares da cidade. "Tem um percurso etílico de Paulo", diz Hansen. "Ele sai do ateliê, vai ao mercado da Boa Vista, ao Tepan, ao Empório Sertanejo. Ele é um boêmio fechado, solitário, que vai ao bar não em busca de amizade, mas pela liberdade."
Márcio Almeida, artista que chegou a realizar algumas obras em parceria com Bruscky, conta que o bar vira uma espécie de extensão do ateliê. "A gente combina de se encontrar, mas cada um senta na sua mesa. Quando quer me dizer alguma coisa, ele vem e fala, mas depois volta para a mesa dele. Ele tem essa personalidade forte, mas também tem o coração gigante."
O silêncio e a solidão que Bruscky parece cultivar refletem também as circunstâncias em que construiu grande parte de seu trabalho.
"Vivi muito isolado aqui, não tinha crítica de arte", lembra o artista. "Os outros me chamavam de louco, diziam que eu era um artista merda que só queria aparecer. Achavam um escândalo as coisas que eu fazia, mas chegou um ponto em que não discutia mais, senão não teria mais com quem beber."
Celso Marconi, que escreveu sobre as estripulias de Bruscky nos jornais do Recife, lembra que seus trabalhos eram, de fato, criados num gueto conceitual, distante da compreensão do público.
"Ninguém valorizava muito o que ele fazia, achavam que era maluquice ele meter a cara no Xerox", conta o crítico. "Mas eu gostava das pessoas que não gostavam da ditadura. Elas tinham um senso de revolta na cabeça. Faziam o que queriam, mas tudo era feito dentro de guetos."
Esse isolamento, no entanto, acabou rendendo uma aura de mito ao artista depois da ditadura, quando Bruscky foi se firmando como estrela do cenário artístico e influenciando novas gerações.
"É lindo entrar naquelas salas abarrotadas e ver todos aqueles objetos dele", conta o artista Jonathas de Andrade. "Ele criou uma identidade do artista do Recife. É um personagem da cidade que parece estar sempre num estado de performance."