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março 1, 2015
Fábio Miguez, expoente do neoexpressionista, abre mostra que é um tributo aos mestres por Antonio Gonçalves Filho, Estado de S. Paulo
Fábio Miguez, expoente do neoexpressionista, abre mostra que é um tributo aos mestres
Matéria de Antonio Gonçalves Filho originalmente publicada no jornal Estado de S. Paulo em 27 de fevereiro de 2015.
Exposição na Galeria Nara Roesler abre neste sábado, 28
Há pouco mais de 20 anos, entre 1993 e 1994, o pintor Fábio Miguez, expoente da geração neoexpressionista e integrante do histórico grupo Casa 7, parou de pintar e começou a fotografar. Por pouco tempo. Logo voltou à pintura, ensaiando em pequenas telas temas que desenvolveria em trabalhos de dimensões maiores. Esse costume se manteve – e com ele um ceticismo em relação ao ofício que, segundo o crítico Alberto Tassinari, guarda semelhança com o de Cézanne, no sentido de que também o mestre francês duvidava da potência de suas pinceladas. Miguez, um pintor de formação erudita, acabou encontrando na tradição da própria pintura um motivo que o fez seguir em frente, apesar da dúvida, conquistando uma poética singular ao recorrer à ajuda de renascentistas como Piero della Francesca, modernos – De Chirico, Matisse, Volpi – e contemporâneos – Richard Diebenkorn e Agnes Martin, entre outros.
Sua exposição Horizonte Deserto Tecido Cimento, que será aberta neste sábado, 28, na Galeria Nara Roesler, é uma celebração de todas essas (boas) influências. O título da mostra, que reúne 40 pinturas recentes e trabalhos mais antigos, pertencentes ao acervo do Instituto Figueiredo Ferraz, evoca uma combinação do universo poético de João Cabral de Melo Neto com a dramaturgia de Samuel Beckett. São quatro substantivos ligados à ideia de construção e desolação, todos extraídos da obra dos dois autores, assim como imagens criadas pelos pintores anteriormente citados.
Não se trata, porém, de uma apropriação paródica. A economia compacta, minimalista, com que Beckett definia a experiência existencial é levada a sério, a ponto de uma das telas, Pó (II), produzida no ano passado, reproduzir a tumba da ressurreição de Cristo pintada no afresco de Fra Angelico que está no convento de San Marco, em Florença.
Na pintura de Fra Angelico, a frustração das mulheres diante da tumba vazia é compensada pela visão do Cristo subindo ao céu (que só os espectadores do afresco conseguem ver). A tela de Miguez é um aggiornamento desse jogo beckettiano entre ver e não ver, ser e não ser, estar presente e ao mesmo tempo ausente do mundo. Daí seu apego ao conceito cunhado por Piero della Francesca, de que pintura e perspectiva são sinônimos, o que conduz naturalmente aos pintores metafísicos – e De Chirico é citado nominalmente numa tela da série Shortcuts (Atalhos), de 2013.
Miguez conta que esse amor pelos mestres antigos vem do tempo da Casa 7, quando ele e Rodrigo Andrade fizeram, nos anos 1980, uma viagem pela Itália. “Vem daí essa paixão, e vale lembrar que Volpi passou por um processo assemelhado”, observa, referindo-se à passagem do pintor moderno brasileiro pela Itália nos anos 1950, quando, seduzido pelos pré-renascentistas, acabou enveredando pela trilha da abstração. Volpi usou fragmentos (e cores) dos mestres do gótico tardio e dos pré-renascentistas para criar seus “mastros”, “fachadas” e “bandeirinhas”. Por sua vez, Miguez presta tributo a Volpi em algumas telas (óleo e cera) da série Shortcuts, de pequenas dimensões (33 x 40 cm), mais intimistas e sem o jogo de palavras intercambiáveis que domina as pinturas maiores.
Outra homenageada na série Shortcuts é a pintora norte-americana Agnes Martin (1912-2004), quase sempre associada aos minimalistas – embora ela se definisse como expressionista abstrata. Agnes Martin prezava Rothko por ter atingido o “grau zero” da pintura. Seguindo seus passos, Martin reduziu sua pintura a poucos elementos, para forçar a percepção do transcendental.
É mais ou menos o que faz Miguez quando coloca a palavra “pó” ao lado da “tumba” de Fra Angelico, forçando um embate entre a planaridade hierática do gótico, a alvorada da perspectiva renascentista e a “pintura plana” defendida pelo crítico norte-americano Clement Greenberg (1909-1994), que expurgaria da tela a ilusão do tridimensional.
“Essa contraposição entre perspectiva e planaridade está presente em todas as pinturas da exposição”, diz Miguez, diante de uma tela da série Janelas, realizada entre o ano passado e este. É evidente nessas pinturas a referência às janelas do pintor moderno francês Henri Matisse, que resumiam sua tentativa de representar o mundo lá fora de maneira harmoniosa, sem ruído e agitação.
O cenário despojado da tela matissiana levaria o pintor norte-americano Richard Diebenkorn (1922-1993) a criar uma série de paisagens geometrizadas da Califórnia conhecida como Ocean Park, baseada na vista da catedral de Notre Dame pintada várias vezes por Matisse.
Há na exposição de Miguez telas que reinterpretam essa mesma pintura de Matisse, os melhores trabalhos de uma mostra exemplar que combina talento e erudição, reverência à história e ao mesmo tempo desconfiança dela. À alegria das cores de Matisse o pintor paulista contrapõe o ceticismo das palavras de Samuel Beckett e João Cabral de Melo Neto, tirando força desse confronto para seguir adiante, criando catedrais transitórias na tela.