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maio 4, 2014
Mostra celebra o universo sombrio de Iberê Camargo por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Mostra celebra o universo sombrio de Iberê Camargo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 3 de maio de 2014.
Iberê Camargo foi uma espécie de arquiteto da solidão.
Na mostra que celebra seu centenário, aberta hoje no Centro Cultural Banco do Brasil, fica claro como o artista, morto aos 79, há 20 anos, construiu um universo singular, quase todo azul e cheio de figuras à beira da morte.
Do subsolo, onde estão seus estudos e um amplo recorte de sua obra gráfica, ao terceiro piso, que concentra as enormes telas de sua chamada fase trágica, estão expostos desde os alicerces mais tímidos de sua pintura até seu auge expressionista.
Ocupando todo o antigo banco no centro paulistano, as 150 obras não respeitam uma cronologia, embora o fim de sua vida, a produção dos anos 1990, esteja em peso maior no terceiro andar e o segundo piso tenha as pinturas dos anos 1960 e 1970.
Mas Camargo não se divide em capítulos. Nada é estanque nessa obra contínua de exploração da matéria.
Sua pintura parece obcecada em afirmar a própria presença, o peso físico de estar aqui e agora mais do que qualquer noção de devaneio.
Nesse ponto, suas telas dos anos 1950, abarrotadas de carretéis, uma lembrança de infância que se tornou o símbolo máximo de sua obra, são composições espessas que parecem transbordar do quadro.
FASE DE TRANSIÇÃO
Mas entre os carretéis e a abstração plena dos anos 1960 e 1970, está uma de suas fases mais poderosas. São telas negras, de uma escuridão aterradora só rompida por vultos de carretéis esbranquiçados, quebrando o silêncio.
Essa série, que venceu o prêmio de pintura da Bienal de São Paulo em 1961, é um dos pontos altos da mostra, sinalizando uma transição na obra de Iberê Camargo.
Foi depois dessa espécie de expurgo da cor que apareceu sua fase mais gestual e abstrata, com tons coloridos.
Camargo parecia se entregar ali a um expressionismo histérico, em que mais do que a forma final dos quadros importavam seus gestos, a violência do pincel sobre a tela.
Ele parecia construir a antessala de sua fase trágica, mais silenciosa e toda azul. É difícil reduzir a obra do artista a um só momento, mas o terceiro andar da exposição é sem dúvida o ponto máximo de sua trajetória plástica.
Estão lá suas "idiotas", as figuras quase amorfas, de rostos cadavéricos e olhos ausentes, que aguardam solenes e patéticas o próprio fim.
Há algo de beckettiano nessa espera. Suas figuras desgarradas do plano terreno e em plena ascensão rumo a um firmamento acachapante afirmam a beleza do fim.