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setembro 8, 2010
Para desestabilizar, site da Fundação Iberê Camargo
Matéria originalmente publicada na seção Entrevistas do site da Fundação Iberê Camargo
Importante nome entre os jovens artistas contemporâneos do Brasil, Yuri Firmeza é mais conhecido por ser o homem por trás de Souzousareta Geijutsuka, o artista fictício que enganou a imprensa nacional em uma polêmica ação realizada em 2006 no Museu de Arte Contemporânea do Ceará, em Fortaleza. Mas sua trajetória vai bem mais além: foi selecionado pelo programa Rumos Itaú Cultural de 2005/2006, foi artista residente da Bolsa Pampulha em 2008 e recebeu, no ano passado, o prêmio CNI SESI Marcantônio Vilaça de Artes Plásticas. Publicou os livros Relações (2005), Souzousareta Geijutsuka (2007) e Ecdise (2008), e tem em seu currículo exposições no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza, no 7° Festival de Performance de Cali, na Colômbia, e na Fundación Centro de Estudos Brasileiros, em Buenos Aires.
Tensionando os limites entre ficcional, possível e real, Firmeza trabalha com fotografia, vídeo e performance. Na conversa a seguir, ele fala sobre sua trajetória e a condição de artista “fora do eixo”.
Como artista de Fortaleza, o que você acredita que significa, hoje, estar fora do eixo artístico de Rio de Janeiro e São Paulo? Que implicações esta condição tem (ou não) sobre a produção e circulação de trabalhos de arte?
Eu acredito que esta situação tem vários fatores negativos. Acho que nós estamos cada vez mais dependentes, infelizmente, de uma existência, por mínima que seja, de um mercado, de uma formação de crítica, de educadores – de todo um contexto que seja propício para que, de fato, se discuta e se pense a arte e suas relações com o campo social. E, infelizmente, em Fortaleza não existem galerias, há apenas um museu, que ainda funciona de forma muito embrionária, e as políticas públicas da cidade são, como em praticamente todo o Brasil, sempre muito interrompidas e fragmentadas. Não existe, também, um pensamento já na academia. Na universidade federal, não há formação em artes visuais. Ela existe apenas em um curso no CEFET, que é uma escola técnica, e em uma universidade particular, mas ambos com muitos problemas e muito incipientes. E o curso de artes da faculdade em que estudei [Faculdade Grande Fortaleza], onde estudaram também vários artistas como Waléria Américo, Milena Travassos, Euzébio Zloccowich, Murilo Maia, entre outros, foi desmontado.
Por outro lado, a inexistência de um mercado estruturado eu vejo como um aspecto positivo, porque os artistas começam a criar circuitos alternativos de circulação de trabalhos – como é o caso, por exemplo, do Alpendre, que foi um espaço muito forte nos anos 1990, sobretudo, como o Torreão foi em Porto Alegre. Ou seja, os artistas criam outras dinâmicas de circulação da obra e do pensamento que não necessariamente passam pelas instituições (que praticamente não existem) nem pelas galerias (que, de fato, não existem).
E há outro fator, que acho que é o “estar em trânsito”. Trânsito não só no sentido físico, mas também no sentido de transitar tanto nas instituições que existem, mas também fora delas. Pensar o circuito de forma plural, como circuitos, e entender o trabalho do artista não apenas como a produção de uma obra de arte, mas também a produção deste circuito, de um campo, que seja propício para o pensamento correr em rede.
Falando em circuitos alternativos, uma iniciativa diferenciada como a criação do artista fictício Souzousareta Geijutsuka, que você fez em 2006, ajuda a burlar a lógica habitual do sistema “mais estabelecido” das artes?
O Souzousareta foi um trabalho que aconteceu dentro de um museu de arte contemporânea, que na época era dirigido pelo Ricardo Resende. Mas acho que tem, sim, um pouco a ver com o que eu falei anteriormente, de transitar dentro e fora das instituições e deste circuito oficializado e “oficializante” da arte. É uma forma de tentar se inserir não com uma ideia de transgressão, mas muito de forma a causar curtos-circuitos, de forma discursivamente resistente. E há esta resistência discursiva no trabalho do japonês, que é justamente a infiltração dele não somente na instituição museu, mas também em todos os aspectos de legitimação de um artista enquanto tal: na mídia, com seu poder de sedução e de expansão daquilo que tem ocorrido; no museu, como espaço de consagração simbólica; com a curadoria e a crítica... Ou seja, o trabalho lida com uma série de agentes desse sistema de forma crítica, mas também sem ser ingênuo – no sentido de ir contra o sistema, ou de estabelecer um embate frontal com ele. O trabalho apostava muito mais na resistência discursiva.
Como surgiu a proposta para esta ação? Você foi convidado pelo Dragão do Mar para realizar este trabalho específico, ou ele foi pensado depois?
O Dragão do Mar tinha um projeto chamado Artista Invasor, no qual eram convidados artistas para ocupar uma sala do museu paralela à “exposição oficial”. Quando recebi este convite do Ricardo Resende, fiz uma contraproposta, já que não me interessava ocupar uma sala, mas sim realizar performances em todo o local, sem horário prévio, tendo o território do museu como um espaço livre. Isto aconteceu em 2005, acho que no mês de agosto, e a exposição foi só em janeiro de 2006. Então, tivemos seis meses de conversa, de discussão... O Ricardo teve um papel de parceiro mesmo no trabalho, inclusive pensando junto algumas estratégias.
Neste sentido, como você mencionou antes, esta foi uma ação que questionou bastante o papel legitimador da mídia e dos espaços institucionais sobre a prática artística. Atualmente, que papel você acredita que está sendo desempenhado por essas instituições?
Acho que isto é muito particular. Acredito muito na atuação de um diretor de museu como alguém que, de fato, se coloca em relação estreita com o que o artista está produzindo, que tenta refletir junto e dar condições mínimas para que o artista pense seu trabalho sem muitos limites burocráticos, institucionais. Por outro lado (estou falando mais das coisas que vivi, é claro), tive uma experiência com curadores em projetos a longo prazo que pensam o museu estritamente como um lugar de conservação e de consagração simbólica da obra, um lugar quase como um sarcófago – que é justamente no que eu não acredito. Penso no museu como um processo mesmo, de construção de pensamento, de formação de público. Acho que o papel social do museu é muito mais ativo do que servir simplesmente como receptáculo de coisas mortas, de obras já consagradas.
Sua reflexão crítica sobre o sistema das artes é muito presente, e você já afirmou em outras entrevistas que considera sua produção de textos um elemento muito importante de seu trabalho. Por quê? Quais são as ligações diretas entre texto e obra – no seu caso e na arte contemporânea em geral?
Existem trabalhos que não necessitam de texto, que dão conta da proposta, que têm uma certa autonomia. No meu caso, gosto de pensar o texto não como uma muleta da obra, mas como um trabalho em si, que é atravessado pela obra, que emerge junto com a obra, que tem relação com a obra. Não vejo o texto como algo feito posteriormente ao trabalho, sobre o trabalho, nem que sirva de ferramenta intelectual para, depois, ser simplesmente ilustrado pelo trabalho. Acho que texto e obra vêm juntos. É um conjunto de elementos, e o trabalho se faz justamente com isso. No fim, ele acaba não sendo uma coisa centrada: torna-se um trabalho que “escorre”.
É o caso, por exemplo, de um trabalho meu que se chama Ecdise – quando os répteis trocam de pele –, um livro que eu entendo como intervenção urbana. Ele é resultado da minha participação na Bolsa Pampulha, em que, durante 13 meses, um grupo de artistas tinha que morar em Belo Horizonte e, depois, apresentar um trabalho de intervenção na cidade. Eu, mensalmente, publicava um texto numa página do caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, e considerava minha intervenção urbana como sendo esta intervenção no campo discursivo. Então, neste caso, o texto era quase como uma escultura mesmo – dentro da ideia de que “pensar é esculpir”, de Joseph Beuys.
Depois da Bolsa Pampulha, você foi um dos selecionados, em 2009, pelo Prêmio Marcantônio Vilaça, e isso permitiu que você trabalhasse junto com o curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff. Como foi esta experiência e de que forma ela influenciou seu trabalho?
Foi um privilégio atuar ao lado do Paulo Herkenhoff durante praticamente um ano. Foram importantíssimas as conversas que tivemos. Já tínhamos trabalhado juntos antes: nós havíamos nos conhecido em outra ocasião, quando escrevi um texto para uma exposição que ele organizou, e ele também já havia me convidado para uma mostra no Tomie Ohtake. Então, é uma pessoa que já vinha acompanhando meu trabalho. Foi legal, porque foi algo com continuidade, já mais próximo.
E foi como pensar junto, no mesmo sentido que falei que aconteceu antes com Ricardo Resende: eu chegava com o trabalho, com o pensamento, com os textos que vinha fazendo – nessa época, estava terminando minha dissertação de mestrado – e então nós conversávamos também sobre coisas da escrita, que estão diretamente atreladas à minha produção de obras. Paulo me sugeriu várias leituras, me apontou diversos outros artistas que dialogavam com o que eu vinha fazendo. Poder discutir com ele uma série de questões – que muitas vezes nem passavam diretamente pela construção dos trabalhos que estavam na exposição [do Prêmio Marcantônio Vilaça], mas que eram mais abrangentes – foi importantíssimo. Ele é extremamente crítico, sempre fala muito de erosões, de procurar desestabilizar. Acho bonito ouvir isto e pensar junto, porque são questões que me interessam.